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A ideologia por trás da tradição de pôr bebês para dormir em caixas de papelão na Finlândia

A caixa do bebê, dada de presente pelo governo a grávidas desde 1938, trouxe benefícios a várias gerações e ainda inspirou programas semelhantes no mundo inteiro.

5 fev 2019 - 08h17
(atualizado às 08h49)
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"É um coelho!", exclama Adnan Racaj. "Não, é um elefante", corrige sua parceira, Heidi Lempiö, enquanto abre uma enorme caixa que acabou de pegar no supermercado local. A caixa de papelão colorida está repleta de itens para seu primeiro bebê, que deve nascer em fevereiro. Este ano, ela contém 63 itens.

"Kela lhe deseja felicidades e parabeniza toda a família", diz Lempiö, de 38 anos, ao ler um cartão tirado de dentro da caixa. Ela é advogada e seu marido, Racaj, de 36 anos, técnico de informática. Eles vivem em Espoo, cidade próxima à capital finlandesa Helsinki.

A caixa não é um presente de uma tia generosa ou um amigo. Kela é a agência de seguridade social do governo. Todos os futuros pais da Finlândia recebem a mesma caixa do Estado.

Mas quem paga por ela e qual é o objetivo do presente? E será que o programa da caixa do bebê traz benefícios econômicos para o país?

Programa histórico

Quando a caixa do bebê foi introduzida, em 1938, o valor total dos itens girava em torno de 450 marcos finlandeses (o equivalente a US$ 2,6 ou R$ 10), cerca de um terço do então salário mensal dos trabalhadores de indústrias. Ela é dada de presente pelo Estado e seu objetivo era melhorar a saúde materna e infantil, assim como enfrentar o baixo crescimento populacional entre as duas guerras mundiais.

Em 1936, mostram estatísticas da Kela, 4.543 crianças morreram antes de completar um ano, o que representava 66 mortes a cada mil nascimentos. Gripe, pneumonia, diarreia, coqueluche e tuberculose eram as principais causas de mortalidade infantil na época.

Caixa contém 63 itens
Caixa contém 63 itens
Foto: Kela / BBC News Brasil

No período, 80% da população viviam em vilarejos majoritariamente pobres e agrários. Os serviços de saúde eram limitados, e as mães davam à luz em casa, nem sempre em condições de higiene adequadas, então as primeiras caixas de bebês incluíam uma folha de papel limpa para o parto.

Pessoas comuns também tinham conhecimento limitado sobre questões de saúde relacionadas à gravidez, segundo Reija Klemetti, gerente de pesquisa e especialista em saúde sexual e reprodutiva do Instituto Nacional para a Saúde e o Bem-Estar em Helsinki.

"Um problema comum era a sífilis", explica Klemetti. "Era importante encaminhar as grávidas aos cuidados pré-natais antes de 16 semanas de gravidez para identificar se ela tinha sífilis, garantir tratamento e prevenir prejuízos graves ao bebê e à mãe".

Mais soldados e contribuintes

Outro argumento para a existência da caixa era a necessidade urgente da Finlândia de ter mais bebês. No início do século 20, após as mortes ocasionadas pela Primeira Guerra Mundial, o declínio populacional foi uma grande preocupação de políticos europeus.

"Bebês saudáveis aumentariam o número de contribuintes saudáveis", afirma a etnóloga finlandesa Sanna Särkelä. "Eles também queriam potenciais soldados para uma possível nova guerra mundial. "Nos anos 1930, o governo temia que uma nova geração de finlandeses fosse requisitada pelo Exército para lutar contra as ameaças da Alemanha de Hitler e da União Soviética de Stalin".

As primeiras caixas de bebê eram oferecidas em troca de um compromisso: a mãe precisava visitar um médico, uma parteira ou uma clínica de pré-natal para um check up médico. Ainda hoje, o programa incentiva que as grávidas busquem cuidados pré-natais.

De acordo com Karoliina Koskenvuo, chefe da equipe de pesquisa da Kela, a relação direta entre assistência médica e a caixa do bebê salvou vidas por ter identificado problemas precocemente tanto nas mães quanto nos bebês. Em 2017, a Finlândia tinha 3,9 mortes infantis a cada mil nascidos vivos e natimortos, dez vezes menos do que nos anos 1930. A mortalidade maternal também caiu consideravelmente, de 71,8 a cada 100 mil partos em 1960 para 5,7 em 2016.

Claro que isto não tem relação apenas com a caixa do bebê - unidades médicas e programas de imunização também se desenvolveram rapidamente neste período, e mais mulheres deram à luz em hospitais. Os padrões de vida também melhoraram, e o conhecimento sobre nutrição e saúde avançou, tudo contribuindo para a redução das mortes.

Experiência compartilhada

Desde 1949 a caixa do bebê vem sendo distribuída a todos os futuros pais da Finlândia. Ela se tornou uma experiência compartilhada de conexão entre gerações e até parte da identidade nacional da Finlândia. "Meus pais ainda têm a caixa deles", conta Heidi. "Eles guardam decorações de Natal nela".

Caixa tem um colchão, para ser transformada em berço | Foto: Milla Kontkanen
Caixa tem um colchão, para ser transformada em berço | Foto: Milla Kontkanen
Foto: BBC News Brasil

Até o atual presidente Sauli Niinistö recebeu uma caixa ano passado por conta do nascimento de seu filho em fevereiro. "Como ele poderia recusar a caixa?", comenta a socióloga Anna Rotkirch, que coordena o Instituto de Pesquisa Populacional da Federação da Família Finlandesa. "É um hábito muito finlandês. Ele ajuda a criar coesão e confiança na sociedade ao dar a todas as crianças um começo parecido para a vida".

Gerações de finlandeses cresceram usando exatamente as mesmas roupas de bebê que vinham na caixa. Alguns acreditam que isto reflete a abordagem igualitária da Finlândia e estabelece um senso de responsabilidade social compartilhada.

"É uma espécie de símbolo da sociedade igualitária finlandesa. Todo mundo tem a mesma caixa, seja rico ou pobre", diz a nova mãe Heini Särkkä. "A caixa tem tudo o que o bebê precisa. Ela dá um bom começo de vida especialmente para famílias pobres".

As roupas da caixa mudam todo ano, então é fácil para as mães identificarem os bebês nascidos na mesma época. "Isto geralmente se torna um assunto de conversas, e é possível se conectar com mães de crianças da mesma idade", comenta Särkkä.

Ativistas como Rotkirch também sugerem que as roupas da caixa têm uma função niveladora, ou seja, os pais não precisam pensar sobre qual marca comprar ou o quão a riqueza de um parente se reflete nas roupas de seus filhos.

Da caixa para o berço

Quando o programa foi lançado, as aconchegantes caixas eram usadas no lugar de berços, mas esse hábito vem mudando.

"O aumento da riqueza possibilita que muitos pais hoje possam ter um quarto e um berço para o bebê", diz Rotkirch.

Segundo estatísticas do país, 87% dos finlandeses têm mais de um quarto. A caixa do bebê se tornou, portanto, um lugar secundário para o sono, onde o bebê pode tirar uma soneca durante o dia. Dados da Kela mostram que, em 2011, 42% dos pais usavam a caixa como cama, o que caiu para 37% em 2017.

"É uma ideia fofa ter seu bebê dormindo numa caixa", diz Heidi Lempiö. "Mas eu não gostaria de ter que me curvar até a caixa à noite para pegar o bebê para amamentar. Planejamos ter um berço próximo à nossa cama no mesmo nível que nós".

O presidente Niinistö também confessou que seu bebê não dormia na caixa.

Na Finlândia, a Síndrome da Morte Súbita Infantil é relativamente rara. Não há estudos conclusivos, mas acredita-se que as caixas do bebê são em parte responsáveis pelos baixos índices, já que garantem um lugar separado para o bebê dormir de costas em uma superfície firme.

Ideologia em uma caixa

A medida do governo de oferecer a todos os pais uma caixa envia a mensagem de que o Estado valoriza a vida de cada criança, segundo Rotkirch.

Os idealizadores do programa sequer são conhecidos da maioria. Talvez isto seja um reflexo da sociedade finlandesa: a caixa se torna parte da relação entre o Estado e sua nova geração, e não é usada por um único político como uma ferramenta para aumentar sua popularidade.

E houve nomes importantes envolvidos no processo. O pediatra Arvo Ylppö, por exemplo, lutou pelo estabelecimento de maternidades e clínicas de bem-estar infantil na década de 1920.

"Os primeiros pacotes de maternidade não tinham nada sobre planejamento familiar e apresentavam o nascimento de uma criança saudável como um ato patriótico", diz a etnóloga Sanna Särkelä. O manual Äidille, escrito pelo médico Rakel Jalas, dava conselhos básicos de cuidados do bebê, mas também trazia uma mensagem ideológica: "tornar a maternidade algo sagrado, puro e desejável".

"Na época, a produção de bebês saudáveis, e do maior número possível deles, era apresentado quase como um serviço militar feminino", ela explica.

Mas o conteúdo da caixa mudou junto com a sociedade finlandesa. Todas as roupas são de gênero neutro para meninos e meninas. Isto manda o recado de que as meninas são iguais aos meninos.

A Finlândia se tornou uma das economias mais avançadas da Europa em parte pelo incentivo a recolocar as mulheres na força de trabalho.

"Nos anos 1970, um número crescente de mães de crianças pequenas entraram na força de trabalho. Isso foi reflexo do aumento das políticas de igualdade de gênero para estimular a participação da força de trabalho feminina e incentivar a participação masculina nos lares", afirma Rotkrich.

Ou seja, era incentivado que o pai se envolvesse com os cuidados dos filhos. Então, na mesma época, a parteira Leena Valvanne contribuiu com um novo livro para a caixa, intitulado Estamos tendo um bebê.

Desde 2011, as caixas de bebês não vêm com nenhum livro ou panfleto, mas os itens ainda são escolhidos para enviar mensagens aos pais. "Cada item está lá por uma razão, mandando um recado", afirma Särkelä.

Uma chupeta vinha nas caixas entre 1995 e 2000, por exemplo, e uma mamadeira foi incluída entre 1998 e 2000. Mas quando ficou claro o benefício da amamentação, os itens rapidamente desapareceram da caixa.

Questões ambientais também têm importância. "Dá para notar as mudanças da caixa do meu primeiro filho para a do terceiro", lembra Rotkirch. Na terceira criança, as fraldas descartáveis foram substituídas pelas laváveis. "Isso realmente mudou a maneira como eu lidei com o meu terceiro filho".

Um comitê se reúne a cada ano para decidir o que incluir. Este ano, foram incluídos itens como botas nas cores azul e branca da bandeira finlandesa, calças de lã, leggings e uma colher. Já os preservativos e lubrificantes têm uma mensagem dupla: evitar a gravidez indesejada enquanto desfrutam do sexo pós-bebê.

"É uma surpresa o que vem incluído", afirma Heidi. Alguns itens ela considerou bastante úteis para as mães: creme de mamilo para amamentação e almofadas de peito para mães que amamentam.

Contrato social

Se a caixa foi concebida como uma resposta à pobreza e às doenças, por que mantê-la na Finlândia altamente desenvolvida da atualidade?

Anniina Kuokka, coordenadora das políticas da família da Kela, explica que o governo quer dar às crianças "um começo de vida igualitário", independentemente da renda familiar.

Investimentos ao programa permanecem imutáveis e giram em torno de 9 a 11 milhões de euros (R$ 38 e 46 milhões) por ano. O orçamento se manteve estável mesmo durante a crise financeira de 2008 e apesar do impacto interno causado pela desaceleração do principal parceiro comercial, a Rússia.

"Aumentamos o valor da caixa duas vezes recentemente, em 2001 e em 2017. O último aumento foi de 30 euros, o que é cerca de 20%", afirma Karoliina Koskenvuo, diretora de pesquisa da Kela.

Rotkirch diz que a preocupação na queda da taxa de nascimento é uma das razões por trás da mudança. Ela ainda ressalta que vários partidos na Finlândia têm discutido um bônus para recém-nascidos e cuidados gratuitos aos bebês. "O apoio do Estado de bem-estar social perpassa todos os partidos, vai da direita à esquerda", acrescenta.

Também há considerações importantes: a caixa serve como uma cola social entre as gerações. Muitas pessoas acreditam que ela se tornou uma ferramenta para estimular certos valores que tornam a Finlândia o que ela é hoje.

"Estou apaixonada pela caixa do bebê. É como um presente de Natal do Estado", afirma a nova mãe Heini Särkkä.

A caixa apresenta o Estado finlandês como uma entidade benigna e promove a lealdade. E esse sentido de lealdade, de acordo com Rotkirch, pode ajudar a explicar outras características na sociedade finlandesa, como a coesão social, a confiança e os baixos índices de corrupção.

Tornando-se global

Pesquisadores na Finlândia identificaram quase cem programas de caixas de bebês semelhantes em cerca de 60 países, afirma Annariina Koivu, pesquisadora da Universidade de Tampere.

A maioria dos programas começou nos últimos três anos, com exceção de um no Chile que funciona há cerca de uma década. Eles são adaptados às condições e necessidades locais.

"As caixas do bebê algumas vezes incluem itens como uma rede contra mosquito para a prevenção da malária; camisinhas masculinas e femininas para o planejamento familiar e a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis; ou os chamados kits do parto limpo, incluindo uma lâmina estéril e um grampo de cordão umbilical para garantir partos mais seguros em áreas onde os sistemas de saúde são deficitários", diz Koivu.

Projetos na região do Mediterrâneo Oriental, por exemplo, são direcionados principalmente a refugiados e desabrigados. No campo de refugiados de Za'atari, na Jordânia, a ONU Mulheres distribui um pacote de maternidade em que as próprias refugiadas produzem os itens e, assim, ainda têm uma renda.

Mas nem todos os programas fora da Finlândia foram um sucesso. O programa Qunita foi introduzido na Argentina em 2015, mas foi interrompido no ano seguinte em meio a denúncias de corrupção. Alguns programas são de curto prazo, como o de Cingapura, lançado para celebrar o 50º aniversário da nação.

Mas o principal benefício das caixas, onde quer que estejam, está no elo criado entre profissionais médicos e grávidas. E mais amplamente, no quanto ajudaram receber bem todas as crianças que ganharam uma caixa no mundo.

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