Automedicação é desafio da saúde na era das fake news
Especialistas alertam sobre os perigos da influência política e do descrédito à ciência no uso de medicamentos sem prescrição na pandemia
Saúde é coisa séria para os brasileiros. Pelo menos é o que mostra uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2013, em que 88% dos entrevistados colocaram a melhoria no setor entre suas prioridades. Já em 2018, antes das eleições, 4 a cada 10 brasileiros apontaram que a área deveria ser maior foco do novo presidente. Apesar disso, índices mostram que, na hora de cuidar do próprio corpo, o brasileiro deixa a desejar.
Junto de costumes como o sedentarismo, maus hábitos alimentares e descaso com consultas de rotina para check-ups, a automedicação está entre as práticas mais comuns no País. O perigo de tomar remédios sem orientação médica, no entanto, é bastante grave, capaz de impactar seriamente não só na vida do paciente como em todo o sistema de saúde.
Uma pesquisa divulgada pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF) em 2019 apontou que 77% dos brasileiros fazem uso de automedicação. Outro levantamento, feito pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) mostrou que 79% dos brasileiros com mais de 16 anos tomam remédios sem prescrição médica.
Os dados assustam organizações de saúde, especialmente em tempos de pandemia. “A visão e opinião da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) é de que a automedicação não é recomendada. Quando falamos sobre remédios, as pessoas devem contatar os médicos, os hospitais, o site do Ministério da Saúde, para investigar a recomendação sanitária”, indica Marcos Espinal, diretor do Departamento de Doenças Transmissíveis da OPAS.
Apesar de parecer inofensiva, a automedicação é capaz de causar reações adversas ao organismo. A simples combinação entre colírios e descongestionantes nasais pode gerar aumento de pressão. Mulheres que fazem uso de anticoncepcional podem engravidar se ingerirem um antibiótico. O uso prolongado de um antiinflamatório não-hormonal pode causar hemorragia digestiva.
Os exemplos não param e vão desde alergias, intoxicação e, em casos mais graves, podem levar à morte. O mais preocupante é que, muitas vezes, essas consequências só acontecem porque o indivíduo não buscou um médico antes de tomar a medicação.
As causas da automedicação
De acordo com especialistas, são alguns os fatores que contribuem para os altos índices de automedicação no Brasil. O primeiro deles é o difícil acesso a serviços de saúde, especialmente em áreas mais isoladas, quando comparado com o acesso a medicamentos.
Demora no atendimento, escassez de funcionários e materiais, consultas rápidas, falta de atenção dos médicos para com os pacientes… são inúmeros os motivos que fazem com que o brasileiro pense duas vezes antes de ir a um hospital todas as vezes que está com algum problema de saúde. “Muitas pessoas repetem prescrições antigas por terem dificuldade para utilizar os serviços de saúde”, explica Arnaldo Lichtenstein, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Por outro lado, a compra da maioria dos remédios é facilitada pelas leis locais. “Em alguns países, há maior dificuldade para comprar remédios. No Brasil, temos restrição com psicotrópicos e antibióticos, mas outros medicamentos podem ser adquiridos facilmente”, explica Donizetti Giamberardino, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e diretor técnico e chefe do Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital Infantil Pequeno Príncipe.
Wellington Barros, consultor do Conselho Federal de Farmácia e professor da Universidade Federal do Sergipe, também coloca a mercantilização do setor como um problema. “Houve uma banalização da farmácia como comércio de conveniência e nos medicamentos como produtos”.
A impressão de que há “uma farmácia em cada esquina”, como simplificou Giamberardino, é cada vez mais real. Se usarmos como base a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que deve-se existir uma farmácia para cada 8 mil habitantes, o Brasil está “sobrecarregado”, já que segundo últimos dados do CFF, há uma farmácia para cada 2,4 mil pessoas por aqui.
Carlos Alberto Bhering, professor de pediatria na Universidade de Vassouras, também observa esse fenômeno e cita ainda a abundância de propagandas de medicamentos a que a população é exposta. “No fim dos comerciais eles passam rapidamente aquele recado: ‘Ao persistir os sintomas, o médico deverá ser consultado’ e fica uma coisa quase subliminar logo depois de uma propaganda inteira que prega exatamente o contrário”.
No entanto, o médico também aponta a questão cultural como um fator importante: “Esse hábito está enraizado na cabeça das pessoas de todas as classes sociais, independente de acesso”, opina.
“Mesmo quem vai à consulta médica, que tem um diagnóstico firmado, é muito comum a não adesão ao tratamento prescrito pelo médico de forma completa. A pessoa não toma todos os medicamentos. Não considera que tem que tomar 7 dias de antibiótico se ela já está bem no quarto dia”, concorda Giamberardino. “Isso está relacionado à educação de saúde. As pessoas acabam ouvindo os pais, os amigos, e não os médicos. Como se indicar um remédio fosse algo simples”, completa.
De acordo com uma outra pesquisa sobre automedicação divulgada pelo ICTQ em 2014, 72% das pessoas que admitiram o uso de medicamentos por conta própria afirmaram confiar na indicação de familiares e 42,4% na de amigos. Além disso 68,1% das pessoas disseram que recomendam remédios para os outros. 46,1% confessam que não leem a bula antes do consumo.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também citou o fator cultural e falta de acesso para explicar o fenômeno e reiterou que busca soluções para minimizar os perigos. “A Anvisa, assim como o Ministério da Saúde, tem promovido ações de conscientização da população para o uso racional de medicamentos e dos riscos resultantes da automedicação".
Dentro da questão cultural, a desinformação, a falta de confiança nos profissionais de saúde e a noção de que cada pessoa sabe o que é melhor para a própria saúde ganharam um enorme combustível na última década: as fake news.
Epidemia de notícias falsas
Já famosas em tópicos como política, economia e cultura, as notícias falsas entraram de cabeça no universo da saúde com a pandemia da covid-19. Entre as mais famosas em grupos da internet, estavam as falsas informações de que o vírus teria sido fabricado em um laboratório na China e de que a doença sequer existia.
No entanto, a desinformação sempre esteve presente quando o assunto é saúde. Tradições familiares e tratamentos alternativos, quase sempre bem intencionados, foram os primeiros a desafiar a ciência e serem espalhados como opções que pudessem substituir indicações médicas. Hoje, grupos organizados, como o movimento anti-vacina, militam contra evidências científicas e profissionais de saúde, fortalecendo ainda mais a descrença na ciência.
Os especialistas pedem cautela, não descartam a eficácia de tratamentos alternativos sérios, mas reiteram a importância de se separar o joio do trigo. “É preciso primeiro verificar que tipo de terapia está falando. No caso da ozonioterapia, não é alternativa, porque não é uma coisa que pode se usar a exemplo de uma homeopatia, que não tem comprovação científica, mas é aprovada pelo CFM ou acupuntura, que tem comprovação e aprovação do conselho. A terapia com ozônio não é nem reconhecida, portanto é considerada charlatanismo”, pondera Lichtenstein, em referência a um tratamento que ganhou visibilidade durante a pandemia depois que o prefeito de Itajaí (SC), Volnei Morastoni (MDB), anunciou que a cidade faria parte de um estudo para avaliar a eficácia da ozonioterapia pela via retal no tratamento da covid-19.
“O conhecimento popular não pode ser desprezado. Diversos estudos apontam benefícios de plantas medicinais, por exemplo. Mas nós não podemos ignorar a patologia das doenças”, opina Rondineli Mendes, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. “Durante a pandemia da covid-19, muitas receitas se proliferaram nas redes sociais. Mas isso tem que ser usado com muito cuidado”, complementa.
Os médicos também pedem para que os pacientes se atentem a possíveis efeitos colaterais que podem ser causados por diferentes terapias. “As pessoas também pensam que remédios naturais não têm efeitos colaterais. Essa é uma falsa cultura e a sociedade tem que ser alertada. Não são só os remédios da alopatia que tem efeitos colaterais. Os remédios naturais podem causar efeitos tão sérios quanto”, alerta o vice-presidente do CFF.
Sobre a enorme quantidade de notícias falsas espalhadas nas redes sociais, especialmente no WhatsApp, os médicos demonstram preocupação maior. “Na pandemia percebi que houve uma falta de bom senso coletiva, o medo passou a tomar lugar da sensatez. Pessoas passaram a indicar e usar medicamentos sem comprovação científica”, relata Ana Cristina Gales, coordenadora do Comitê de Resistência Antimicrobiana e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Lichtenstein também aponta a covid-19 como um terreno fértil para notícias falsas. “Quando falamos do cenário da pandemia, isso se exacerbou demais. Ajudou a divulgar muitas medicações sem comprovação científica, tratamentos sem comprovação e gerou pânico.”
Ele ainda alerta para as sérias consequências que uma notícia falsa pode ter para a saúde. “Uma fake news sobre política pode eleger um governador, um presidente. Na medicina, a fake news pode matar. É a vida da pessoa que está em risco, diretamente. No começo da epidemia alguém falou que tomar álcool gel seria uma boa ideia e logo depois nós vimos mortes no Irã por causa dessa fake news”, lembra o professor da FMUSP.
No país do Oriente Médio, mais de 300 morreram e milhares foram hospitalizados após ingerirem a substância. Um estudo publicado em agosto pelo American Journal of Tropical Medicine and Hygiene apontou que, ao redor do mundo, foram mais de 800 mortes causadas diretamente por notícias falsas sobre a pandemia em redes sociais, além de 5,8 mil internações.
Além de remédios, tratamentos e dados enganosos, os profissionais de saúde ainda alertam para as campanhas difamatórias feitas contra institutos, médicos e pesquisadores.
“Já existe campanha anti-vacina de uma vacina que nem existe”, lamenta Mendes, se referindo às pesquisas para uma solução contra a covid-19. “Parece que a sociedade esqueceu dos benefícios trazidos pela ciência”, completa o pesquisador da Fiocruz.
“Pra quem não tem uma visão muito próxima da área, as fake news mudam a forma como as pessoas leigas enxergam a ciência. As pesquisas sérias muitas vezes são questionadas por conta dessas informações falsas”, aponta Bhering, que aposta na familiaridade das novas gerações com as redes para minimizar os efeitos das notícias falsas. “Os maiores proliferadores de fake news na área da ciência certamente são as pessoas mais idosas”, aponta o professor de pediatria, citando a ingenuidade dos mais velhos.
A clínica-geral Bárbara Moreira Machado, que trabalha na ala de covid-19 do Hospital Santa Marcelina, relata que, em três anos como médica, notou uma mudança recente no comportamento dos pacientes, que desafiam sua autoridade como profissional. “Muitos têm o hábito de procurar os sintomas no Google e já chegam pedindo determinados exames. Não querem nem que a gente faça o exame clínico”, explica.
Em relação ao coronavírus, ela conta que já foi pressionada por pacientes para prescrever medicamentos que estavam fora dos protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde. “Alguns pacientes nos acusam de não estarmos preocupados com a vida”, diz a médica.
As campanhas por remédios sem comprovação científica contra a covid-19 tiveram grande efeito. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo CFF, a prescrição de drogas que foram relacionadas à doença subiu de forma expressiva nos primeiros cinco meses de 2020.
O crescimento de receitas emitidas na plataforma Memed foi de 676,89% para cloroquina, 863,34% para a hidroxicloroquina e 1.921,04% para a ivermectina, medicamentos que, apesar de não terem eficácia comprovada pela ciência têm como seu principal incentivador o presidente da República, Jair Bolsonaro.
“E conheceis a verdade e a verdade vos libertará”
Enquanto o mundo vive um momento de extrema polarização política, as redes sociais e, em especial, as notícias falsas se tornaram armas para autoridades públicas alcançarem popularidade. Como não poderia ser diferente, a ciência e a saúde também se transformaram em trincheiras ideológicas, com o Brasil se tornando um dos maiores exemplos da politização da pandemia.
Acusado de ter discursos negacionistas sobre temas como o meio ambiente e a ditadura militar no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro - a exemplo de outros líderes controversos como o norte-americano Donald Trump e os ditadores de Venezuela, Nicolás Maduro e Belarus, Aleksandr Lukashenko - foi um dos que ignorou a gravidade da pandemia, que chegou a chamar de “gripezinha”, em tom de deboche, além de criticar duramente as medidas de isolamento social.
“E conheceis a verdade e a verdade vos libertará”. A passagem bíblica virou um dos maiores slogans do governo Bolsonaro e do presidente que, em um país traumatizado por casos de corrupção, apostou na honestidade como seu principal atrativo enquanto figura pública. Porém, o comportamento do presidente em relação à saúde durante a pandemia tem sido marcado por tantas polêmicas que chamou a atenção da imprensa internacional e autoridades sanitárias globais.
Ao acusar, sem provas, governadores de estado e médicos de forjarem atestados de óbitos falsos para inflar os números da doença e exigir que o Ministério da Saúde apresentasse relatórios diários com “menos de 1000 mortes” - fazendo com que a pasta até chegasse a interromper a divulgação oficial dos dados - Bolsonaro acabou “eleito” pelo Washington Post como o chefe de estado com pior atuação na pandemia.
Ao lado de outros chefes de estado como Trump e Lukashenko, o capitão da reserva também recebeu o prêmio Ig Nobel, que seleciona os mais “irrelevantes da ciência”. De acordo com a premiação, os líderes foram escolhidos por “usar a pandemia de covid-19 para ensinar ao mundo que políticos podem ter um efeito mais imediato na vida e na morte do que cientistas e médicos”.
Entre tantas atitudes que desafiavam a ciência, Bolsonaro rapidamente passou a endossar remédios sem comprovação científica para o tratamento da covid-19, em especial a cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina.
“Se fosse tudo tão fácil assim, outros países estariam fazendo a mesma coisa”, destaca Mendes em relação à maneira como o presidente está atuando frente ao atual cenário. “Às vezes a discussão fica mais pautada na ideologia e não no método científico e na busca de alternativas para o benefício da sociedade”, analisa o pesquisador da Fiocruz.
A opinião é compartilhada pelos demais profissionais de saúde consultados. “Infelizmente se mistura muito a questão político-ideológica com uma coisa tão séria quanto a ciência médica”, diz Bhering. “O Conselho Federal de Farmácia vê com muita preocupação a politização dos tratamentos contra a pandemia”, informa Barros.
A base bolsonarista no entanto, contra-ataca, afirmando que a OMS é uma “organização de esquerda” e que os médicos que não prescrevem os remédios endossados pelo presidente não querem curar os pacientes e têm a intenção de “atrapalhar o governo”.
Como consequência da atuação polêmica, foram feitas duas trocas no comando do Ministério da Saúde em plena crise sanitária, porque os líderes da pasta não concordaram com posicionamentos do presidente.
Luiz Henrique Mandetta, que assumiu o cargo no início do governo, foi demitido por orientar a população a seguir os protocolos de saúde recomendados pela OMS, O agora ex-ministro acaba de lançar um livro sobre sua passagem pelo governo. Na publicação, ele chama Bolsonaro de “negacionista da ciência” e diz que o interesse do presidente em remédios como a cloroquina só existiu porque ele queria que os brasileiros voltassem ao trabalho o mais rápido possível.
O também médico Nelson Teich assumiu e, menos de um mês depois, pediu demissão por não concordar com o presidente sobre o protocolo para uso da cloroquina. Agora a pasta está sob os cuidados do general Eduardo Pazuello, que assumiu de forma interina, mas foi efetivado no cargo após três meses por mostrar alinhamento com o presidente. Com o militar no Ministério da Saúde, o protocolo sobre o medicamento mudou, liberando a prescrição para casos leves da covid-19.
“Quem é de direita toma cloroquina”
O posicionamento do governo, que no início da pandemia era visto apenas como dissonante em relação a órgãos sérios de saúde - como a própria pasta e centros de referência de pesquisa - foi primordial para que o fenômeno da automedicação fosse alavancado.
Quando a seriedade da pandemia se mostrou inegável, com o Brasil se tornando um dos epicentros do coronavírus, Bolsonaro deixou as demais estratégias de lado, focando na promoção da cloroquina e hidroxicloroquina. O presidente, inclusive, apontou a si próprio como “prova” da suposta eficácia do tratamento, afirmando que fez uso dos medicamentos após contrair o vírus.
Também sempre presente na discurso bolsonarista, o conceito de “liberdade individual” foi invocado pelo presidente para defender o uso indiscriminado de medicamentos. “Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína”, chegou a afirmar. Apesar disso, Bolsonaro criticou publicamente o que chamou de “politização” da droga, culpando a imprensa e adversários políticos por falarem contra o uso de fármacos sem comprovação científica.
- No mais, essa mesma rede de TV desdenhou, debochou e desestimulou o uso da Hidroxicloroquina que, mesmo não tendo ainda comprovação científica, salvou a minha vida e, como relatos, a de milhares de brasileiros.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) August 9, 2020
Lichtenstein endurece o discurso, e diz que o governo usa de má-fé ao promover medicamentos. “Para começar, um presidente não pode prescrever nada porque ele não é médico, esse comportamento, inclusive, cabe processo de charlatanismo. Não é da alçada dele enquanto não médico. A prescrição de qualquer remédio é função exclusiva de um médico. Quem não for médico e estiver indicando medicamento, está cometendo crime de charlatanismo, exercício e prática indevida da medicina”, opina o professor de medicina da FMUSP. Na posse definitiva de Pazuello, o presidente, em tom de brincadeira, chamou a si mesmo de “Doutor Bolsonaro”, enquanto segurava uma caixa de hidroxicloroquina.
Apesar de não ter poder de prescrição, a fala do presidente tem peso. Bastou Bolsonaro defender a ivermectina, apontada como uma das esperanças para o tratamento da covid-19 em estudos preliminares - mas sem revisão, publicação oficial e indicação de órgãos globais de saúde - para que o fármaco ganhasse destaque entre a parcela da população que insiste em desafiar entidades renomadas que continuam afirmando não haver um remédio que previne a infecção. Aqui são as consequências do que ele disse
“A primeira vez que ouvi falar sobre a ivermectina foi através de uma cliente. O marido dela é médico e ela me disse que haviam vários protocolos seguros que ele passava para as pessoas que queriam tomar e eu cheguei a anotar”, conta a esteticista Ivani de Sales Ferreira, de 52 anos.
Com a alta popularidade do assunto , principalmente após a defesa do presidente, não foi difícil encontrar vídeos e publicações na internet que recomendassem o uso do medicamento. “Vi vários vídeos de médicos reconhecendo a ivermectina como prevenção à covid-19, então eu comprei”. Ivani não só tomou o remédio, como também deu para o marido e o filho. Segundo ela, “valeu a pena”, já que até hoje, ninguém teve a doença.
Em nome do CFM, Giamberardino lembra que parte da classe médica também defende os tratamentos recomendados por Bolsonaro e reitera que o conselho autoriza os profissionais a prescreverem os medicamentos para uso off-label, ou seja, para além do recomendado na bula. “São duas correntes no nosso país, isso não pode ser ignorado”, aponta.
A infectologista da SBI, por sua vez, critica os colegas que endossam remédios sem comprovação: “Acho um absurdo. Prescrever medicamento é um ato médico, e o médico deve prescrever isso com auxílio da ciência. Não acho que só porque a pessoa é médica que ela pode fazer todas as coisas, mas vejo, durante a pandemia, alguns médicos tomando a conduta inadequada por não se basearem em evidências. São pessoas que não querem ouvir a verdade”.
Barros invoca o “princípio da precaução” ao opinar sobre o tópico. “Quando não sabemos se algo pode ou não ter um efeito positivo, devemos optar por não utilizar”, explica.
Em condição de anonimato, uma médica imunologista de São Paulo também mostrou desconforto com os colegas que apoiam os medicamentos defendidos por Bolsonaro. “Absolutamente todos os que conheço fazem exclusivamente por opinião política-ideológica. Eles são, inclusive, propagadores de notícias falsas sobre a pandemia”, desabafa. as citações até aqui são opiniões das fontes
Apesar de serem minoria dentro da profissão, profissionais que defendem a cloroquina e a hidroxicloroquina tem espaço no governo Bolsonaro. Eles já se reuniram com o presidente e participaram de eventos do Ministério da Saúde, como o polêmico “Brasil vencendo a covid-19”, onde um grupo que dizia representar “mais de 10 mil médicos” discursou ao lado do presidente. Nas falas, mais afirmações de que a cloroquina e seus derivados “salvaram vidas”.
“Toda vez que um paciente vem com a justificativa de ‘Ah, mas falam que faz efeito. Tomei e fez efeito’, eu sempre questiono: ‘Mas e se não tomasse?’. Nunca vamos saber. As pessoas devem se basear em evidências científicas. Lembrar que existe até o efeito placebo”. explica Gales.
Além da falta de comprovação científica, os especialistas alertam contra o consumo irracional de remédios por outros motivos, como efeitos colaterais, aumento da resistência microbiana e utilização desnecessária dos serviços de saúde já defasados.
“Todo remédio tem seu lado de veneno”
A professora aposentada Márcia Dala, de 64 anos, levou um susto quando recebeu a ligação do hospital informando que a mãe estava internada. A surpresa foi maior quando os médicos afirmaram que ainda não tinham um diagnóstico sobre quadro de saúde de dona Idalina e que ela não teria alta tão cedo. “Minha mãe é uma mulher idosa de 86 anos, mas muito ativa. Ela começou a sentir fortes dores no estômago do nada e mal conseguia andar, então pediu para ser levada à unidade de saúde”, relembra Dala.
Sem saber o que podia estar causando o problema, os médicos passaram a investigar as medicações de uso diário da matriarca. A princípio, dona Idalina havia contado que tomava seis remédios diferentes por dia, mas a família desconfiou. Ao pressionar, descobriram que, na verdade, eram de 10 a 15 comprimidos ingeridos diariamente, dos mais variados tipos de remédios.
“Pedi ao meu filho que revirasse a casa dela e me trouxesse todos os medicamentos que encontrasse. Quando ele chegou, tinha duas sacolas de mercado cheias de caixas de remédio nas mãos. Peguei tudo e mostrei para a médica. Isso bateu com o que eles estavam prevendo: ela estava com hepatite medicamentosa”.
A inflamação do fígado se dá quando o indivíduo faz uso prolongado ou inadequado de medicamentos que atuam diretamente nas células do órgão. No caso de dona Idalina, ela além de tomar todo e qualquer remédio que os médicos prescreviam por tempo estendido, também os misturava indiscriminadamente.
O resultado do uso indevido dos fármacos rendeu uma semana de internação e, mais tarde, a retirada da vesícula, que os médicos consideram que tenha sido consequência do uso dos remédios.
De acordo com Giamberardino, que também é diretor técnico e chefe do Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital Infantil Pequeno Príncipe, em Curitiba, a automedicação é perigosa e apenas o médico pode fazer a prescrição adequada.
“A recomendação do CFM é sempre procurar orientação de um médico antes de tomar qualquer medicamento porque é ele quem sabe o que pode fazer melhor para o seu corpo. A arte de prescrever um medicamento está em você usar o que é de benefício daquele remédio. Se ele for mal usado, pode trazer problemas. É como dizem: ‘Todo remédio tem seu lado de veneno’”.
Especialistas afirmam que sobrecarga de órgãos e interação medicamentosa (quando duas ou mais drogas são ingeridas juntas) podem resultar em consequências graves ao paciente que toma remédio sem orientação correta - mas esses não são os únicos perigos da prática.
“O uso indiscriminado de antiinflamatórios, por exemplo, que são encontrados facilmente nas farmácias e comprados por qualquer pessoa, pode causar complicações sérias, como problemas gástricos, renais e alergias”, aponta Lichtenstein.
Apesar de concordar com o clínico geral, Gales garante que a restrição da venda de medicamentos não é, necessariamente, a solução mais eficiente para combater a automedicação.
Um dos problemas mais citados pelos médicos entrevistados pela reportagem foi o uso inadequado de antibióticos, medicamentos que só podem ser comprados mediante apresentação da prescrição médica, e a criação de bactérias super resistentes no organismo a partir de seu mal uso.
“É muito comum a pessoa usar o antibiótico que sobrou do último tratamento na próxima infecção e muitas vezes não é tomado pelo tempo suficiente e nem para a condição que deveria”, afirma a infectologista, que prevê problemas futuros nesses casos.
Se o paciente não usar o antibiótico pelo período indicado, é possível que ele melhore no início e depois piore, porque o antibiótico não vai cumprir seu papel e pode fazer com que a bactéria presente no organismo só se torne resistente à droga e fique super poderosa. Sem orientação médica, o paciente também pode acabar tomando um antibiótico para tratar uma infecção não bacteriana, o que não é indicado.
“Eu estou cansada de ver pacientes que se automedicam e chegam no pronto-socorro por causa dos efeitos colaterais, gente que usa antiinflamatório não-hormonal e acaba com uma úlcera ou hemorragia digestiva alta”, admite a consultora da SBI.
Segundo ela, muitas vezes quem prescreve o medicamento é o médico, mas é de praxe avisar sobre os riscos e como devem ser tomados os medicamentos. “Muitas pessoas não seguem as indicações”, assegura.
Como consequência, as internações e os cuidados com os pacientes no sistema de saúde por causa de automedicação são altos, mas dificilmente podem ser calculados. “Não sei falar se existe um dado técnico sobre os impactos da automedicação no SUS, por exemplo, já que é algo subnotificado, mas muito comum”, analisa..
Lichtenstein também defende que efeito adverso de remédio é uma das grandes causas de mortalidade no mundo. “Estamos falando de efeitos adversos terríveis. Quando ele impacta na mortalidade, impacta na ocupação de leitos, na demanda por pronto-socorro e em toda a cadeia do sistema de saúde”, alerta o clínico geral.
Seguindo os dados da pesquisa do CFF, o professor faz uma conta rápida que ilustra um cenário bastante preocupante do impacto da automedicação diante de um sistema de saúde tão deficitário como o SUS. “Ao menos ¾ da população brasileira se automedicam, ou seja, 150 milhões de pessoas se automedicando no País. Não é que todo mundo vai ter efeito colateral, mas se 1% tiver, já é o equivalente a 1,5 milhão de pessoas, o que já é bastante para um sistema de saúde atender, não é mesmo?”, questiona.
Recuperar a confiança
Se antes o brasileiro já via motivos suficientes para tomar a medicação que julgasse necessária sem o auxílio de um profissional, com a pandemia esse costume se intensificou.
A maioria dos especialistas ouvidos pela reportagem acredita que o cenário afastou ainda mais o paciente do hospital, fortalecendo o consumo de fármacos sem prescrição. Além disso, posicionamentos políticos se intensificaram a ponto de intervir na maneira como a ciência e a medicina são vistas, resultando na busca por remédios sem comprovação científica para uma “possível prevenção” a uma doença nova. “Nesse momento da pandemia nós observamos a busca de soluções mágicas para problemas de saúde”, exemplifica Barros.
As adversidades, sejam elas do passado ou do presente, só reforçam a necessidade de combater um fenômeno tão perigoso. Recuperar a confiança da sociedade e evitar que mais vidas sejam prejudicadas pela desinformação é um desafio que pesquisadores, médicos, farmacêuticos, governo federal e órgãos sanitários devem considerar como prioridade.
Para o pesquisador da Fiocruz, é de extrema importância que a ciência seja valorizada. Cautela e criticidade para não reproduzir informações que possam gerar dúvidas são essenciais para que os profissionais da linha de frente, a existência do SUS e as instituições científicas voltem a ser pontos de referência para todos.
“Nós, acadêmicos, reconhecemos a necessidade de uma melhor estratégia de comunicação direta com a sociedade, para que as informações cheguem nas pessoas de uma forma mais palatável”, defende Mendes.
A indústria farmacêutica também tem sua parcela de responsabilidade. O fácil acesso a diversos remédios sem que haja uma recomendação médica prévia e monitorada e o incentivo de uso deles por meio de propagandas contribui, há anos, com a situação delicada. Bhering resume: “É preciso dificultar o acesso a medicamentos e fazer uma campanha para frear o consumo”.
A orientação por parte do farmacêutico é outro ponto que deve ser reforçado, conforme aponta o consultor do CFF. “Um dos principais papéis do farmacêutico é o de orientação. E ele é cada vez mais importante nos tempos modernos. O nosso papel social é prover medicamentos, produtos, serviços e orientação para a saúde das pessoas”, lembra.
Ainda que os remédios sejam concedidos de forma mais controlada, é também necessário recuperar a confiança entre paciente-médico. “Essa é uma discussão que sempre deve haver em uma consulta. Sabemos que as consultas são muito rápidas por causa das pressões econômicas e sociais, mas o ideal é fazer o diagnóstico e tentar orientar os pacientes sobre os medicamentos prescritos. É a conversa com o paciente que ajuda a combater a automedicação”, defende o professor da FMUSP.
Com instrução médica, há casos em que o paciente pode participar do tratamento. “É dever do médico educar e falar sobre as interações dos medicamentos e explicar os sinais de alerta para o paciente saber quando procurar o serviço de saúde e quando pode se automedicar”, acrescenta Lichtenstein.
O olho-no-olho do consultório é fundamental para restabelecer elos de fidelidade, mas a conscientização da população é também tarefa do Governo Federal. Apesar de o Ministério da Saúde ter materiais alertando sobre problemas da automedicação e reforçando que a indicação de medicamentos é uma responsabilidade médica, não foram raras as vezes que o presidente da República defendeu publicamente o uso da cloroquina, impactando na pressão de pacientes para a aquisição do medicamento sem indicação.
Como resposta, a Anvisa precisou aumentar o controle sobre o tipo de receita exigido para a compra do fármaco e limitar a quantidade de venda por consumidor.
“Tanto quanto outros órgãos do Governo Federal, temos uma página sobre a covid-19 em destaque em nosso portal, a qual é atualizada em tempo real. Também trabalhamos em conjunto, sempre que necessário, com o Ministério da Saúde e outros órgãos e entidades para promover a divulgação de conteúdos oficiais”, informa a agência reguladora.
A exemplo da Anvisa, o Ministério da Saúde também tem uma página na internet dedicada a desmentir fake news sobre a covid-19. No entanto, apesar de não haver nenhuma menção a ineficácia do hidroxicloroquina anteriormente, o portal está passando por uma atualização e até o fechamento desta reportagem a seção que tratava sobre o tema estava fora do ar.
Problema antigo, a automedicação ganhou novo fôlego com as redes sociais e, no caso do Brasil e alguns outros países, apoio do Estado. Rejeitada pelas entidades de saúde e pela maioria dos profissionais da área, a prática passou a ser incentivada por alguns médicos e políticos. Ao defender a “liberdade” de tomar cloroquina, Bolsonaro segue dizendo que o Brasil vai “vencendo a covid-19”. O país é o segundo com mais mortos e terceiro em número de infectados pelo coronavírus.