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Bolsonaro quer facilitar medicamentos sem licença sanitária

Governo acredita que mudança evitaria atrasos com burocracias para importações urgentes; mas indústria critica medida

4 fev 2020 - 05h11
(atualizado às 08h14)
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O governo Jair Bolsonaro quer reduzir entraves para a distribuição a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) de medicamentos sem registro sanitário concedido pelo Brasil. A proposta é permitir que a importação destes produtos seja autorizada automaticamente, eliminando análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a qualidade da droga.

Proposta é permitir que a importação destes produtos seja autorizada automaticamente, eliminando análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a qualidade da droga
Proposta é permitir que a importação destes produtos seja autorizada automaticamente, eliminando análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a qualidade da droga
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil / Estadão Conteúdo

Integrantes da cúpula do Ministério da Saúde afirmam, reservadamente, que a mudança evitaria atrasos com burocracias da Anvisa para importações urgentes. Já ex-diretores da agência e a indústria farmacêutica no Brasil, críticos à sugestão, dizem que a nova regra abre brecha para o governo driblar preços de medicamentos ofertados no Brasil, mas sob risco aos pacientes.

A mudança valeria apenas para compras do governo federal em situações excepcionais, como em situação de emergência de saúde pública ou falta do produto no mercado local. A condição é que o Ministério da Saúde se responsabilize por todas as etapas do processo, tarefa hoje compartilhada com a Anvisa.

Pela regra atual, o ministério pede autorização da agência para a importação de medicamento que não foi avaliado ainda no Brasil -sem registro, no jargão. A Anvisa analisa uma série de documentos e se manifesta sobre o pedido do governo em 10 dias. O prazo cai para 48 horas em casos de "emergência de saúde pública de importância nacional ou internacional".

Quando o medicamento não estiver em lista de produtos autorizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), será exigido, por exemplo, registro sanitário em país membro do ICH (Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos de Produtos Farmacêuticos de Uso Humano), uma espécie de OCDE das autoridades sanitárias. O Brasil é membro do grupo, que conta ainda com autoridades da Europa, Estados Unidos, Japão, China, entre outras.

"Não existe razão para fazer isso. Se há problema de abastecimento (de medicamentos), tem de ser resolvido solidariamente entre a agência e o ministério", disse o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e primeiro presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina.

Os próprios diretores da Anvisa sugeriram mudar a resolução da agência sobre importação, a RDC 203/2017. Uma consulta pública de apenas 15 dias será feita sobre a proposta, até 18 de fevereiro, período mais curto do que normalmente é adotado. O órgão, na sequência, irá analisar sugestões ao texto e votar em reunião de diretoria colegiada uma proposta final.

A resolução que o governo deseja alterar já serviu como barreira para impedir a distribuição de medicamentos de empresas contratadas pelo governo que não apresentavam todas as certificações sanitárias exigidas no Brasil. O ex-ministro Ricardo Barros (PP-PR), agora deputado federal, disse em 2018 que a agência favorecia "lobbies" da indústria farmacêutica ao impedir importações.

Uma compra deste tipo, feita na gestão de Barros, chegou a ser investigada pela Polícia Federal por suposta falsificação de documentos. No ano seguinte o Ministério Público Federal (MPF) denunciou o ex-ministro em ação de improbidade por "inobservância" da legislação sanitária em compra de medicamento, o que ele nega.

O que muda com a autorização automática?

Um exemplo recente de como funciona a análise sobre importação excepcional é a busca por fornecedores de imunoglobulina que o governo federal faz desde o começo de 2019.

O medicamento traz benefícios para pacientes de diversas doenças, como do vírus HIV, mas por uma disputa de preço com a indústria nacional, o Ministério da Saúde abriu licitações para buscar o produto fora do País. No meio da briga, o governo Bolsonaro chegou a tentar uma compra de empresa da Ucrânia que não tinha sequer registrado o seu produto em países do ICH. Nos bastidores, a Anvisa deixou claro à época que não havia possibilidade de a compra prosperar. O ministério recuou, abrindo nova licitação.

A pasta agora aguarda a chegada de milhares de frascos de imunoglobulina, sem registro da Anvisa, de empresas da China e da Coreia do Sul. Por exigências da agência brasileira, os produtos tiveram de ser testados por laboratórios locais, como o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), para que a importação fosse liberada.

O receio de críticos sobre a mudança que está em debate é que a Anvisa deixe de fazer questionamentos como os que evitaram a compra da Ucrânia, por exemplo, pois a liberação da entrada no Brasil seria automática.

A preocupação de associações de pacientes é que as compras de medicamentos sem registro pelo governo se tornem mais frequentes. "Gostaria que a Anvisa reavaliasse a proposta, para que pacientes não sejam condenados a receber qualquer medicamento por conta de preços mais baixos. O preço não pode ser determinante, e sim a eficácia do medicamento", declarou Regina Próspero, vice-presidente do Instituto Vidas Raras.

Jogo político

O Estado apurou que o apoio de parte dos gestores da Anvisa à mudança passa pelo interesse em agradar o governo, mirando três vagas de diretores do órgão que serão preenchidas por Bolsonaro em 2020.

A mudança de postura da Anvisa sobre a sua própria regra coincide com a ascensão do médico e contra-almirante Antonio Barra Torres, que tornou-se em dezembro presidente interino do órgão e apresentou a sugestão. Amigo de Bolsonaro, ele foi indicado em janeiro deste ano a presidente efetivo do órgão, mas a confirmação do cargo depende de aprovação pelo Senado.

"Em casos anteriores o Ministério da Saúde confrontou a Anvisa, que não aceitou abrandar as regras e se render a vontade do ministro de plantão. Neste momento o cenário é o contrário", avalia Vecina, primeiro presidente da agência.

Fontes do ministério, no entanto, argumentam que empresas usam a regra atual da Anvisa como uma barreira para controlar o preço de medicamentos vendidos ao SUS, tido como um dos maiores mercados de saúde do mundo.

Em nota, a Anvisa afirma que "é necessário buscar respostas prontas" quando há uma emergência por falta de medicamentos. Segundo a agência, a proposta é que seja do Ministério da Saúde a "responsabilidade objetiva", a "definição da situação de necessidade" e "o atesto da qualidade dos produtos a serem importados". Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou.

Para a Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (ProGenéricos), no entanto, o controle sanitário, mesmo em casos excepcionais, deve ser mantido na Anvisa. "Só a agência tem a capacidade técnica para fazer uma análise correta da qualidade e eficácia dos medicamentos colocados à disposição dos consumidores", afirma a entidade em nota.

Já o diretor da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA) Roberto Altieri afirma que a mudança pode ferir a legislação. "A Anvisa tem como atribuição primordial dar anuência às importações". Para ele, a atenção deve ser redobrada justamente por serem compras de medicamentos sem registro sanitário no Brasil.

Para Vecina, a nova regra da Anvisa pode ainda desestimular que empresas peçam registro de medicamentos no Brasil. "(Pois) esse mesmo medicamento pode entrar por uma 'porta dos fundos'."

Estadão
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