Brecha criada pelo Congresso para aval de vacinas fere autonomia da Anvisa, dizem especialistas
Parlamentares incluíram em medida provisória facilidade a aval de imunizante contra a covid-19 que tenha sido aprovado em agências estrangeiras; governo quer comprar Sputnik
BRASÍLIA - Ex-presidentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), especialistas da área de saúde e representante da indústria de medicamentos criticaram a regra aprovada pelo Congresso Nacional que abre margem para a entrada de vacinas no País mesmo sem o crivo da autoridade regulatória brasileira. O Senado aprovou nesta quinta-feira, 4, uma medida provisória que dá cinco dias para a agência conceder aval emergencial a vacinas autorizadas em outros países, como Rússia e Argentina.
Primeiro presidente da Anvisa e colunista do Estadão, o médico Gonzalo Vecina afirma que a regra abre margem para colocar no Brasil vacinas sem dados robustos de eficácia e segurança. "Essa medida provisória destrói a Anvisa", disse ele, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
O Estadão mostrou que o presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, defende o veto presidencial ao texto e estuda até mesmo ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a mudança. "Se isso prosperar, a Anvisa passa a ter papel meramente cartorial, deixa de ter seu poder de análise. O texto acrescenta essa questão que seria automática (a aprovação), completamente isenta de análise", disse o chefe da Anvisa.
Nesta semana, o líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas - Paraná) já havia ameaçado 'enquadrar' a Anvisa e afirmado que os diretores do órgão estão "nem aí" para a pandemia. Depois, Barra Torres cobrou retratação do parlamentar e Bolsonaro, em transmissão nas redes sociais, chegou a desautorizar o deputado e sair em defesa da agência.
Para o presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini, o texto aprovado no Congresso retira a autonomia da agência. "Não podemos em razão da pandemia matar a Anvisa", afirmou. "Nos preocupa muito esse movimento de retirar a total independência e competência da Anvisa."
O advogado Paulo Almeida, diretor executivo do Instituto Questão de Ciência, afirma que a Anvisa se torna "carimbador de opinião de institutos internacionais" com a mudança na MP. "O Congresso tem histórico recente de legislar em assunto técnico de saúde, o que não dá certo: a liberação da fosfoetanolamina (pílula do câncer). A consequência é a judicialização", disse.
Professor de epidemiologia da USP, Paulo Lotufo avaliou que o Congresso deu "tratorada" na Anvisa. Ele vê risco à soberania nacional, pois o Brasil abriria mão de análises próprias sobre a segurança de vacinas para a covid-19.
Ex-presidente da agência e médico sanitarista, Claudio Maierovitch afirma que é grave a classe política querer "fazer força" para eliminar a análise das vacinas. "A Anvisa está jogada aos leões. Só a agência está exposta. O governo não se movimentou lá atrás para a compra das vacinas e se omite também agora", disse ele.
A medida provisória aprovada pode servir como uma espécie de via rápida para pular etapas hoje necessárias para que um imunizante seja usado no Brasil. A vacina russa Sputnik V já foi aprovada no seu país de origem, na Argentina e no México. Pela legislação atual, esse aval pela Anvisa só pode ser dado a imunizantes aprovados nos Estados Unidos, Japão, China, Europa e Reino Unido.
Em seu parecer, o senador Confúcio Moura (MDB-RO) fez uma alteração na redação do trecho para indicar que a permissão da agência estrangeira, a ser considerada pela Anvisa, pode ser tanto na modalidade de registro definitivo ou de uso emergencial. Por se tratar de um ajuste de texto, a proposta não precisará voltar para análise na Câmara dos Deputados e segue para sanção presidencial.
Ministério mira compra de 30 milhões de doses da Rússia e da Índia
Nesta quarta-feira, 3, o Ministério da Saúde afirmou que negocia a compra de 30 milhões de doses do imunizante russo e da vacina indiana Covaxin. A Anvisa, porém, ainda aguarda mais informações sobre a segurança e a eficácia destas vacinas. A agência anunciou que retirou algumas exigências para que os imunizantes possam ser usados no País. Entre eles, a necessidade de que estudos de fase 3 estejam em andamento no País para conceder este aval, passando a se valer de dados de estudos conduzidos internacionalmente. Nesses casos, o prazo previsto para análise é de 30 dias, de acordo com determinação da agência.
Diretor de Negócios Internacionais da União Química, que deve distribuir a Sputnik V no Brasil, o ex-deputado federal Rogério Rosso (PSD-DF) defende a alteração. Segundo ele, o Congresso tem percebido "a necessidade de o povo brasileiro ter mais vacinas". "Esse tipo de ambiente não é positivo. Todos nós temos de estar juntos. Fala-se que existe pressão para salvar vidas. Eu falo com o papa se precisar. Vou estender uma faixa na frente do Vaticano. Brasileiros na Rússia já estão tomando a vacina", disse. /COLABOROU MARLLA SABINO