Câncer: mistério centenário é desvendado com ajuda de manipulação genética
Descoberta pode facilitar o desenvolvimento de remédios capazes de atacar células específicas, responsáveis pelo surgimento de um tumor
WASHINGTON POST - Usando ferramentas modernas de manipulação genética, pesquisadores descobriram que a intuição dos cientistas de mais de cem anos atrás estava correta: células com números incomuns de cromossomos são vetores do câncer.
O estudo, publicado na revista Science, renova a atenção da ciência diante de uma ideia à moda antiga, que poderia indicar uma nova maneira de atacar as células do câncer com medicamentos.
Os cientistas começaram a reparar no fenômeno quando examinaram células de câncer no microscópio no início do século 20. Eles observaram que, conforme as células se multiplicavam, algumas acabavam contendo um grande número de cromossomos, estruturas que, sabemos hoje, são portadoras dos genes. Em outras, o número era pequeno demais.
Essa observação notável levou um embriologista alemão a sugerir que números anômalos de cromossomos não seriam apenas uma característica do câncer: talvez fossem a sua causa. O interesse na ideia foi sumindo conforme os cientistas começaram a descobrir dezenas de genes individuais que causam o câncer, desenvolvendo medicamentos contra eles.
Mas o distúrbio cromossômico das células do câncer continua sendo uma anomalia evidente, uma característica em comum presente em 90% dos casos da doença. Todos sabiam que aquilo estava lá, mas não sabiam ao certo o seu significado.
"Foi algo realmente ignorado até certo ponto, e a razão disso era simplesmente o fato de ser um tema muito desafiador para se pesquisar", disse Uri Ben-David, professor-assistente de genética molecular humana e bioquímica da Universidade de Tel Aviv, que não se envolveu no estudo. "Durante muitas décadas, ninguém deu atenção a isso. Era como o elefante na sala das pesquisas na área do câncer."
No novo estudo, os cientistas descobriram como abordar o mistério usando uma técnica inteligente da ferramenta CRISPR. O trabalho deles mostrou que, sem os cromossomos adicionais, certas células de câncer ficam impossibilitadas de gerar tumores em animais.
Foco nos cromossomos
Os humanos possuem 23 pares de cromossomos, longas estruturas como fios, fitas de DNA e proteínas que transportam nossos genes. Normalmente, quando as células se dividem, os cromossomos fazem cópias de si mesmos, separando-se em seguida e formando novas células, organizadas e simétricas. Mas, nos casos de câncer, essa coreografia sai do prumo, e as células resultantes têm números anormais de cromossomos.
Durante décadas, um enigma comum na ciência limitou a pesquisa desse fenômeno: essas aberrações seriam a causa do câncer, ou simplesmente um indício de que a célula já tinha adoecido? Na época, não era fácil adicionar ou remover cromossomos, e os cientistas tinham que buscar suas respostas principalmente em correlações intrigantes.
Outro estudo expôs células de melanoma a uma substância química que perturbou ainda mais seus cromossomos; tais células desenvolveram resistência mais rapidamente a um medicamento específico, indicando que anomalias cromossômicas podem desempenhar um papel na capacidade do câncer de resistir aos medicamentos.
Outro estudo descobriu que, proporcionalmente à instabilidade cromossômica das células do tumor de um paciente, maior a probabilidade de um câncer agressivo de prognóstico ruim.
Novamente, a questão da causa e do efeito se fez presente: a perturbação dos cromossomos afetava o desenvolvimento do câncer, ou seria efeito dele?
Com a invenção da tecnologia de manipulação genética CRISPR, uma década atrás, os cientistas ganharam a capacidade de acrescentar, excluir ou ajustar os genes. Mas excluir um cromossomo inteiro já é outra história.
Para alcançar a engenharia na escala do cromossomo, Jason Sheltzer, biólogo do câncer da Faculdade de Medicina de Yale, e sua equipe tiveram que recorrer a uma técnica do CRISPR. Primeiro, inseriram um gene do vírus causador do herpes nos cromossomos adicionais de uma célula cancerosa. Inicialmente, escolheram o cromossomo 1q, um dos primeiros a ganhar ou perder cópias adicionais no desenvolvimento do câncer de mama.
Então, eles usaram um tratamento contra o herpes, ganciclovir, para combater os cromossomos modificados. A técnica matou as células com cópias adicionais, deixando para trás as células de câncer com número normal de cromossomos.
Quando eles tentaram desenvolver tumores a partir dessa subpopulação de células de câncer, descobriram que essas células não eram mais capazes de gerar tumores no microscópio ou em camundongos vivos. Para Sheltzer, é uma evidência clara de que os cromossomos adicionais são um fator no desenvolvimento da doença, e não apenas efeito dela.
"Eles desempenham um papel central", disse Sheltzer.
Por enquanto, a técnica é uma ferramenta, não um tratamento. Ainda não se vislumbra uma maneira de pensar em restaurar o número original de cromossomos nas células do câncer como forma de deter a doença.
Mas isso pode indicar um caminho para o combate ao câncer no futuro. A compreensão genética do câncer levou a tratamentos que combatem mutações específicas envolvidas na sua progressão. Mas o câncer é um adversário ardiloso e, com frequência, desenvolve resistência às abordagens terapêuticas.
Identificar que os cromossomos adicionais são fundamentais no desenvolvimento do câncer significa que os pesquisadores podem atacar a doença a partir de um novo ângulo: localizar e matar as células que contêm cromossomos adicionais.
Como os cromossomos contêm centenas de milhares de genes, essa abordagem aumentaria o número de alvos. Mesmo se o câncer se tornar "resistente" a um determinado medicamento ao perder seus cromossomos adicionais, o estudo indica que, ao fazê-lo, essas células perderiam sua capacidade de causar o câncer.
Essencialmente, o cromossomo adicional se torna uma nova vulnerabilidade terapêutica, disse Sheltzer. Como as células contêm muitos outros materiais genéticos, tais células podem "se tornar sensíveis a medicamentos contra um determinado gene, mesmo que ele não esteja relacionado ao câncer". / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL