Como a Guerra Fria deu origem à ritalina, a droga da 'concentração infantil'
Durante a década de 1960, era comum, no s Estados Unidos, que crianças hiperativas recebessem um medicamento para ajudá-las a se concentrar nas aulas.
A chamada "pílula da matemática", a Ritalina, continua sendo um dos tratamentos mais usados em vários países para tratar o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
Seu principal componente, o metilfenidato, da família das anfetaminas, tem a propriedade de estimular a concentração e reduzir a impulsividade.
Essas qualidades eram consideradas necessárias dentro da transformação, durante a década de 1960, do sistema escolar dos EUA, que queria competir com a União Soviética no contexto da Guerra Fria, de acordo com o historiador Matthew Smith, da Universidade de Strathclyde (Escócia) e autor do livro Hyperactive: The Controversial History of ADHD (Hiperativos, a controversa história do TDAH).
Quando a droga foi sintetizada, em 1944, pelo químico italiano Leandro Panizzon, não estava previsto que crianças pudessem tomá-la.
Então como ela acabou virando a solução predileta dos pais e psiquiatras para os pequenos hiperativos?
Fármacos no pós-guerra
Existe uma lenda urbana de que Panizzon batizou o medicamento de Ritalina em homenagem a sua mulher, Margarida, que chamava pelo apelido carinhoso de Rita.
"Ela tomava o comprimido antes de jogar tênis. Aparentemente, sofria de pressão baixa e isso lhe dava um empurrão na partida", destacou Smith.
O laboratório onde ele trabalhava, Ciba, começou a comercializar o fármaco para adultos com a mensagem de que era mais forte que uma xícara de café mas não tão intenso nem com efeitos secundários de outras anfetaminas mais potentes.
"Havia uma corrida científica e espacial com a União Soviética e por isso o novo sistema educativo exigia que as crianças permanecessem sentadas em suas carteiras fazendo tarefas", disse.
Na época de seu surgimento, o mercado de medicamentos passava por várias mudanças e avanços.
No pós-guerra, começaram a ser tratadas doenças como tuberculose, e teve início a vacinação contra a pólio.
"As pessoas começaram a recorrer a fármacos como solução para tudo", disse Smith, que acrescenta que drogas psiquiátricas também geraram otimismo e que isso se manteve por mais duas décadas até a descoberta de efeitos secundários e de seu potencial viciante.
Fórmula para crianças
Em uma pesquisa de 1937, o psiquiatra Charles Bradley fez uma descoberta: depois de administrar anfetaminas a um grupo de crianças para tratar dores de cabeça, ele notou que elas tinham o surpreendente efeito de estimular sua concentração.
Sua descoberta foi investigada duas décadas depois, quando o psicólogo clínico Keith Conners, em 1964, da Universidade Johns Hopkins em Baltimore (EUA), fez o primeiro ensaio clínico aleatório com ritalina em crianças com "transtornos emocionais".
O jovem pesquisador estava intrigado com a possibilidade do tratamento com drogas, porque os baseados em terapia não pareciam dar resultado.
O estudo mediu concentração, níveis de ansiedade e impulsividade.
A resposta das crianças foi imediatamente positiva.
Estavam emocionadas de tomar um remédio que ajudava com suas tarefas. Sentiam que já não eram crianças problemáticas ou más
"Estavam emocionadas de tomar um remédio que ajudava com suas tarefas. Sentiam que já não eram crianças problemáticas ou más", disse Conners à BBC.
Depois que Conners e seus colegas publicaram os resultados, a Ritalina começou a ser usada com mais frequência para tratar hiperatividade em crianças americanas.
Segundo o historiador Matthew Smith, os professores começaram a indicar crianças com problemas de conduta a psiquiatras, que quase sempre diagnosticavam transtorno de hiperatividade.
"O sistema escolar pressionava as crianças a se sentarem quietas nas carteiras e se concentrarem", disse Smith.
Consumo 'excessivo'
Apesar de haver ajudado a popularizar o medicamento na sociedade americana, Conners acredita que hoje ele é usado em excesso.
"Quando começamos, não conseguíamos convencer as pessoas de que havia crianças com TDAH. Agora parece que elas são encontradas até embaixo das pedras", disse ele à BBC.
O psicólogo considera que este transtorno está sendo diagnosticado de forma excessiva e que outros fatores são ignorados.
"Um número significativo de crianças em idade escolar é dignosticado com TDAH quando, na realidade, pode ser que sejam muito jovens para a série em que estão. Ou podem ter outras desordens parecidas com o TDAH", disse.
No Brasil, a discussão sobre consumo excessivo da droga entre crianças também ocorre.
Um boletim divulgado no ano passado pelo Ministério da Saúde diz que, segundo o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, o Brasil era, em 2010, o segundo maior consumidor de Ritalina do mundo.
O ministério recomendou que os Estados aumentassem o controle sobre prescrição e distribuição da droga para evitar a "medicação excessiva" de crianças.
O documento diz que há estimativas discordantes sobre a ocorrência de TDAH em crianças e adolescentes no Brasil, que variam de 0,9% a 26,8%.