Como as hemorroidas de Luís 14 da França ajudaram a valorizar a cirurgia
As hemorroidas não discriminam ninguém, e afligem igualmente figuras históricas e contemporâneas, desde imperadores, reis, czares, grandes militares, líderes religiosos e todo tipo de celebridades, algumas das quais sofreram complicações durante anos.
Ao longo da história, diversas figuras, do imperador romano Calígula ao cardeal Richelieu, passando por Ivan, o Terrível, e o compositor Schubert, sofreram de um problema que até hoje afeta grande parte da população mundial: hemorroidas.
Hemorroidas são veias dilatadas e salientes na região anal. Podem ser internas ou externas, normalmente acompanhadas de dor e coceira.
Alguns dessas figuras, inclusive, padeceram de outro mal, ainda mais doloroso: fístulas anais - canais ou ligações anormais que surgem entre o ânus e o reto, normalmente causadas por um abcesso ou outras doenças.
Mas se hoje a cirurgia é uma opção para resolver o desconforto causado por essas duas condições, nem sempre foi assim.
João de Áustria, irmão do rei espanhol Felipe 2º e herói da batalha de Lepanto, morreu de hemorragia após uma fracassada operação para a retirada de hemorroidas.
Uma fístula que os cirurgiões da época não conseguiram curar levou Henrique 5º da Inglaterra a óbito.
E há até quem atribua a derrota de Napoleão Bonaparte na famosa batalha de Waterloo às hemorroidas de que ele sofria.
Em 1686, entretanto, ocorreu um acontecimento que mudou para sempre o destino das pessoas que padeciam desses problemas, além de contribuir significativamente para dignificar o trabalho dos cirurgiões, que até então não usufruíam de muito respeito.
Trata-se da operação de fístula do francês Luís 14, o todo-poderoso Rei Sol.
Enemas e purgantes
Luís 14 sofreu durante 10 anos de uma terrível fístula que o impedia de levar uma vida normal.
Sentar era uma tortura para ele, caminhar se tornara um pesadelo, andar a cavalo significava ver as estrelas.
Isso sem falar na hora de fazer número 2.
Ele havia tentado de tudo para se curar dessa condição, mas sem sucesso: todos os tratamentos falharam.
"Luís 14 consumiu cerca de 2 mil purgantes e mais de 1,5 mil enemas, segundo cálculos de historiadores, além de todos os tratamentos médicos que tanto fizeram sofrer o monarca", conta José Antonio Rodríguez Montes, professor emérito de Cirurgia da Universidade Autônoma de Madrid, membro da Real Academia Nacional de Medicina da Espanha e grande conhecedor da história da proctologia, especialidade médica e cirúrgica que trata as doenças do cólon, reto e ânus.
Claude François Félix de Tassy, o primeiro cirurgião de Luís 14, convenceu o rei de que a cirurgia era o único recurso para sua cura.
O problema é que naquela época as medidas de higiene eram precárias, muitos dos que se diziam cirurgiões eram meros charlatões e fazer uma operação muitas vezes significava a morte.
"Bisturi real"
Porém, Luís 14 decidiu se colocar nas mãos de Claude François Félix de Tassy, que em 18 de novembro de 1686, auxiliado por Bessières (cirurgião do rei), D'Aquin e Fagon (médicos da corte) e com a presença de dois boticários e do confessor real, operou a fístula de que o Rei Sol sofria.
A intervenção realizou-se numa das luxuosas salas do Palácio de Versalhes com o auxílio de um bisturi especial que passou a ser conhecido como "bisturi real".
Os detalhes dessa intervenção cirúrgica aparecem no Journal de la Santé du Roi Louis 14, mantido na Biblioteca Nacional de Paris, e os dados mais técnicos no "Tratado sobre a fístula", editado em 1689 por Louis le Monnier.
A operação foi um sucesso retumbante. A tal ponto que, apenas dois meses após a intervenção cirúrgica, em 15 de janeiro de 1687, Luís 14 foi considerado definitivamente curado.
O rei, finalmente livre da fístula que o atormentava por tantos anos, agradeceu a Felix de Tassy com grande generosidade.
Ele o recompensou com 300 mil libras (equivalente a R$ 166 milhões atualmente), uma propriedade rural em Moulineaux (na região da Normandia, no norte da França) e um título de nobreza.
Mas essa operação cirúrgica, dada a relevância do paciente e o sucesso com que foi concluída, também contribuiu para tornar a profissão do cirurgião notavelmente digna.
"A operação da fístula de Luís 14 não representou apenas uma afirmação do método operatório, mas um grande passo no reconhecimento dos cirurgiões em detrimento dos médicos, já que a cirurgia ganhou prestígio graças ao favor real", explica Rodríguez Montes.
Na verdade, o sucessor de Luís 14 ao trono francês, Luís 15, fundou a Real Academia de Cirurgia da França, onde, aliás, existe um retrato de Claude François Félix de Tassy com a inscrição "O primeiro cirurgião de Luís 14".
Inspiração musical
E não foi só isso. A operação da fístula do Rei Sol também serviu para dar origem ao hino nacional inglês.
Como a cura do rei era motivo de alegria para todas as pessoas, um dos melhores músicos da época, Jean Baptiste Lully, decidiu compor um hino exaltando a cura de Luís 14 sob o título "Grand Dieu sauve le Roi" ("Grande Deus salve ao Rei "), que mais tarde se tornou o hino da monarquia até a Revolução Francesa e a subsequente morte de Luís 16 na guilhotina.
"Em 1714, GF Handel estava visitando a França, onde 'Grand Dieu sauve le Roi' era a música mais conhecida da época, e ele ficou com aquela canção na cabeça. Em 1º de agosto, quando George I (da casa Hannover) se tornou rei, Handel, que havia sido seu músico de câmara, mudou-se definitivamente para Londres, onde suas melhores composições seriam lançadas. Depois de fazer pequenas modificações naquela música que ouvira na França e incluir alguns arranjos, ele a ofereceu a George 1º como sendo sua, dando origem ao 'God save the Queen (Deus salve a Rainha)' ou 'God save the King (Deus salve o Rei)', o atual hino britânico", explica Rodríguez Montes.
Tudo isso graças aos problemas de um rei com seu traseiro.