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David Uip: Não é pelo fato de estar de volta que não sofri

Infectologista conta que decidiu dividir o drama que passou para alertar as pessoas sobre a gravidade da doença

7 abr 2020 - 10h10
(atualizado às 10h40)
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Nos 14 dias em que ficou isolado por causa de uma infecção pelo novo coronavírus, o infectologista David Uip, de 67 anos, conta ter vivido várias angústias: tinha medo de desenvolver a forma mais grave da doença, sofria por estar afastado das ações do Centro de Contingência do governo do Estado, que ele coordena, e ainda tinha de lidar a distância com as notícias de colegas médicos também contaminados e em estado grave. "Dói na alma ver um amigo internado", desabafou.
Infectologista conta que decidiu dividir o drama que passou para alertar as pessoas sobre a gravidade da doença
Infectologista conta que decidiu dividir o drama que passou para alertar as pessoas sobre a gravidade da doença
Foto: Flavio Corvello / Futura Press

Em entrevista ao Estado, ele conta que decidiu dividir o drama que passou para alertar as pessoas sobre a gravidade da doença e reforçar que ninguém está fora de risco. "Se eu não demonstrasse tudo o que me aconteceu, as pessoas iam falar que não era nada. Como não é nada? Eu sei o que eu passei. Não é pelo fato de eu estar de volta que eu não sofri, que eu não tive risco", afirmou. Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Em que momento você suspeitou que poderia estar infectado?

No domingo retrasado eu passei visita no (Hospital) Sírio-Libanês o dia inteiro. Estava com muitos pacientes internados. No final do dia, o governador (João Doria, do PSDB) me convocou para ir ao Hospital das Clínicas para conhecer os novos leitos de UTI e, na sequência, ir a uma entrevista no Palácio (dos Bandeirantes, sede do governo estadual). Nesse momento, não consegui ficar no palácio, estava muito cansado, extenuado. Fui para casa e, na madrugada, comecei a ter febre e tosse. De manhã, fui para o Sírio. Fiz a tomografia e o exame. A tomografia estava normal e o exame no final do dia soube que era positivo. Já esperava porque eu já tinha perdido o olfato e o paladar e eram os sintomas que eu estava vendo nos meus pacientes. Aí fiquei com febre baixa, muito cansado. Nunca tive falta de ar, ficava cansado fisicamente. Eu só tinha conforto deitado mesmo. Foi indo até que segunda passada repeti a tomografia. E aí sim deu um pequeno foco de pneumonia no pulmão esquerdo. Fiquei até quarta-feira com sintomas e depois melhorei.

Você não chegou a ficar internado, certo? Como foi o acompanhamento? Tomou algum remédio?

Tenho duas médicas que trabalham comigo há 30 anos, infectologistas, que cuidaram da minha parte clínica e o (Roberto) Kalil, que cuidou da parte cardíaca (mais tarde, o próprio Kalil foi diagnosticado com covid-19) . Obedeci ao que os três determinaram. Fiquei em repouso. Em momento algum achei que precisava de hospital, achei que dava, como deu, para ficar em casa.

Quais foram os sintomas que mais te chamaram a atenção?

Um deles é a perda do olfato e do paladar. E o extremo cansaço, extremo mesmo. Nunca fiquei tão cansado em toda a minha vida. É uma sensação como se você não tivesse força para levantar da cama. O bom momento é quando você está deitado.

Quais foram os dias mais difíceis?

Já conheço essa doença há um tempo e já tive muitos pacientes. Sabia que se algo complicasse, seria entre o sétimo e o décimo dia, que foi exatamente o que aconteceu com o foco no pulmão identificado na tomografia. Então não tem como não criar uma ansiedade, é um sentimento normal. Você cria uma expectativa do que vai acontecer no dia seguinte. É difícil dormir, é difícil acordar, não é simples.

É difícil por causa dos sintomas físicos ou por causa da angústia mental e psicológica?

As duas coisas.

Você já viveu outras epidemias. Já tinha vivido uma angústia como essa?

Em 1973, 1974, eu era estudante de Medicina. Foi aí que surgiu a doença meningocócica, que foi grave. Me lembro de famílias tirando os filhos de São Paulo. Depois, em 1982, nosso consultório fez o primeiro diagnóstico de aids em um brasileiro. Mas só fomos descobrir que existia um vírus que causava essa doença um ano depois. No meio dessa história, quando a gente ainda não tinha teste diagnóstico, eu trabalhava no Hospital das Clínicas, inclusive na Unidade de Terapia Intensiva de doenças infecciosas. Um dia eu estava num estágio no pronto-socorro, entrou um paciente e eu me acidentei com a agulha. Esse paciente morreu, foi para a autópsia e se descobriu que ele tinha morrido de uma doença nova que era causada por esse vírus novo. Como não tinha teste, fiquei anos sem saber se eu havia me contaminado ou não. Só quando surgiu o exame, eu fui saber que não. Depois, eu era diretor do Instituto Emílio Ribas durante o surto de H1N1, então passei por muitas epidemias durante toda a vida.

Mas você não foi infectado pelo H1N1?

Não que eu saiba. E teve uma outra história ainda. Em 2016, por conta de um seguro de vida, fui fazer exames. Eles deram muito alterados, mas não eram meus, eram do meu pai, que tem o mesmo nome que eu. Mas, de qualquer forma, por conta dessas alterações, me pediram outros exames. No teste de esforço, cansei e minha pressão subiu. O médico viu que tinha alguma coisa errada. Fui para o Sírio para fazer uma angiotomo, isso era 13h, Kalil me internou e às 15h eu fiz um cateterismo e pus três stents. Eu tinha duas coronárias com 96% de obstrução. Então foi uma coisa extremamente grave.

Como foi sua rotina em casa? Você conseguia se desligar mesmo sendo coordenador do Centro de Contingência de Coronavírus do Estado de São Paulo?

Foi um sofrimento. Não deixei de participar, mas fui muito poupado pelo governador, pelo grupo, sabendo que não havia condições porque eu estava cansado. Mas é angustiante você ficar fora de uma coisa que está acontecendo na sua frente.

Teve alguma mudança na sua percepção sobre as medidas de isolamento necessárias depois que você viveu isso como paciente?

Foi só o apelo que fiz questão de falar na coletiva de imprensa. Se eu não demonstrasse tudo que me aconteceu, as pessoas iam falar que não era nada. Como não é nada? Eu sei o que eu passei. Não é pelo fato de eu estar de volta que eu não sofri, que eu não tive risco. As pessoas precisam entender que é grave e que precisam fazer o distanciamento social. Precisamos aumentar o distanciamento social. 50% não é pouco, mas também não é o suficiente. Precisamos chegar a 70%. As medidas estão adequadas, mas precisamos de um pouco mais de adesão da população.

Você enfrenta também a situação de colegas muito próximos infectados e com quadros mais graves, como Raul Cutait e o próprio Kalil. Como é passar por tudo isso vendo colegas também sofrendo com essa doença?

Sou médico do Kalil e meu grupo continua cuidando dele, do Raul Cutait e de muitos outros médicos. Mesmo quando estou distante, estou informado o tempo inteiro. Meu grupo, de nove infectologistas, está cuidando de vários amigos e vários profissionais de saúde. É muito sofrido. Dói na alma você ver um amigo muito próximo, seja lá quem for, numa situação de internação. Isso tudo é muito difícil.

Você disse na coletiva de imprensa que teve de se reinventar? De que forma?

Quando eu pus os três stents foi numa quarta-feira e na segunda-feira eu estava trabalhando. Então eu ficar em casa é uma coisa complicadíssima. Sei que fiquei muito rabugento e muito chato enjaulado. Mas tive de aceitar essa limitação. E tive dois sentimentos importantes: de fé e de paz. Fui muito apoiado pela Tereza (esposa), pelos meus filhos, pelos meus irmãos, pelos meus genros e fundamentalmente pelos meus netos. Não vejo meus netos há quase dois meses, mas as mensagens eram muito revigorantes. Você vê seu neto e fala: 'meu Deus do céu, preciso continuar'.

Estadão
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