De estádio a presídio: estados adaptam mais de cem hospitais
Planos envolvem criar 13,9 mil leitos de enfermaria e UTI para atender crescente número de pacientes do novo coronavírus
Levantamento do jornal o Estado de S. Paulo identificou ao menos 108 iniciativas de prefeituras, de governos estaduais e da União em 19 Estados e no Distrito Federal, somando cerca de 13,9 mil leitos de enfermaria e UTI disponíveis, em implementação ou em planejamento. As iniciativas são inspiradas em exemplos internacionais, como da China, e em recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em meio à pandemia, até o Central Park, em Nova York, vai ganhar uma estrutura do tipo.
Na Bahia, por exemplo, a gestão estadual aproveitou a estrutura de três hospitais privados que estavam fechados, além de outros espaços de clubes, somando 673 leitos em duas cidades. No Distrito Federal, os hospitais serão erguidos no Estádio Mané Garrincha e no Complexo Penitenciário da Papuda, com total de 240 leitos.
As iniciativas são de portes e propostas variados, que vão de poucas dezenas a alguns milhares de leitos. Entre as prefeituras, as estruturas foram adotadas desde as capitais, que concentram a maioria dos casos até municípios de menor porte, como Salinas (MG), de 40 mil habitantes, com 80 leitos previstos para atender pacientes do covid-19 em um hospital veterinário. Na capital paulista, o Complexo do Anhembi e o Pacaembu foram adaptados para receber 2 mil leitos, dos quais mil estão em operação, mas a Prefeitura planeja montar mais uma estrutura na zona leste (entre os locais em estudo, estão o Sesc Itaquera o estádio do Corinthians). O Riocentro é a maior aposta da Prefeitura carioca, com capacidade para 500 leitos.
As iniciativas de maior porte se concentram nas regiões mais afetadas pela doença e que estão com os sistemas de saúde à beira do colapso, embora grande parte do investimento segue em leitos de enfermaria. No Pará, por exemplo, os quatro hospitais de campanha do governo estadual somarão 720 vagas, das quais 660 de enfermaria e só 60 são para pacientes "em estabilização", isto é, que tiverem uma piora no quadro durante a internação.
Nesse cenário, algumas iniciativas enfrentam questionamentos na Justiça, pelo Legislativo e por tribunais de contas. Em Santa Catarina, uma licitação para um espaço em Itajaí foi suspensa porque a proposta escolhida pelo governo estadual não seria a de menor valor. No Rio, o governo e polícia também investigam possíveis irregularidades em iniciativas do Estado.
Há, ainda, gestões que apostam exclusivamente na ampliação de leitos em espaços já em funcionamento e na aceleração de obras de hospitais em andamento. No Paraná, o governo afirma fazer ajustes no sistema para também reaproveitar leitos de cirurgias eletivas suspensas. Já outros, como o Espírito Santo, dizem que hospitais de campanha ainda estão em estudo.
No âmbito federal, o primeiro hospital de campanha teve as obras iniciadas no dia 7, em Águas Lindas (GO), a cerca de 50 quilômetros de Brasília. Outros 80 imóveis da União em 27 Estados foram reservados pelo Ministério da Economia para receber hospitais de campanha, incluindo o Parque Olímpico do Rio e o Pátio do Pari, na capital paulista. A criação de estru nesses espaços será avaliada "conforme a necessidade da população local", conforme nota enviada à reportagem.
SP procura espaço na capital para receber leitos de UTI
A gestão João Doria (PSDB) está à procura de um espaço para instalar 200 leitos de UTI para pacientes graves com suspeita e confirmação da covid-19. O chamamento foi publicado na semana passada e a expectativa é divulgar o escolhido ainda esta semana. "Pode ser área de exposição, hotel, desde que tenha capacidade, porque UTI tem de ter ambiente climatizado, com filtragem de ar e pressão negativa (tipo de isolamento para prevenir contaminações)", conta Adhemar Dizioli Fernandes, coordenador geral de Administração da Secretaria Estadual da Saúde.
Antes disso, em 1º de maio, o Estado pretende inaugurar o hospital de campanha do Complexo do Ibirapuera, também na capital. Ele reunirá duas tendas instaladas no gramado do estádio, com leitos para 268 pacientes, divididos em baixa complexidade (240) e em estabilização (28). Toda a estrutura é provisória, com desmontagem prevista para setembro.
Além disso, o Ambulatório Médico de Especialidades (AME) de Heliópolis, zona sul da capital, será adaptado para receber apenas pacientes de coronavírus, com 176 leitos de enfermaria e 24 de UTI.
Fernandes comenta que o Estado chegou a estudar um hospital de campanha em um Centro Educacional Unificado (CEU) e no anexo de um hospital de Heliópolis, mas que a adaptação do AME foi financeiramente mais viável - até por ocupar majoritariamente espaços sem uso pela diminuição de cirurgias eletivas. A previsão é de entrega em 20 dias.
Arquiteto e urbanista, ele explica que a prioridade é ampliar a capacidade da rede na capital e na região metropolitana, pela concentração dos casos. Se situação se agravar no interior, acredita que não seja difícil encontrar espaço adaptável. "Todo lugar tem um campo de futebol, que, para a gente, é perfeito. Assim que tiver um agravamento na região, é deflagrar o processo e instalar. Espaço não é problema."
Sobre o Hospital Sorocabana, alvo de uma campanha de moradores da zona oeste paulistana para ser reativado durante a pandemia, o urbanista diz que o espaço tem estrutura antiga, que demandaria projeto e revisão de instalações hidráulicas, elétricas e até do elevador, o que dificultaria a reabertura neste momento. "Uma obra dessas demora um ano."
Em âmbito municipal, ao menos 23 prefeituras paulistas abriram ou preparam a inauguração de hospitais de campanha. A lista inclui desde a capital, com Pacaembu e Anhembi, até municípios da região metropolitana, como Guarulhos, Osasco e Cotia (que tem até uma espécie de atendimento "drive thru" para triagem), o litoral (Guarujá) e municípios do interior (como São João da Boa Vista, que utiliza 15 contêineres para receber pacientes).
Não basta aumentar leitos de enfermaria, dizem especialistas
A médica Ana Maria Malik, coordenadora do FGVSaúde, aponta que ampliar o atendimento depende de investimentos maiores do que a aumentar os leitos de enfermaria. "Precisa ter o profissional e tudo o que vem no leito (de tecnologia)", ressalta.
"O leito, você consegue improvisar, mas não adianta ter a cama se não for acompanhada de hospital equipado, se não tiver intensivista (médico especializado em pacientes em estado crítico), enfermeiro, fisioterapeuta que saiba lidar com problemas respiratórios", comenta. "Se não tem sistema de saúde funcionando como um todo, vira um curativo, tapa o buraco em vez de asfaltar."
Professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Airton Stein ressalta que a instalação de hospitais de campanha exige investimento em estrutura temporária e que, portanto, a primeira alternativa deve ser a avaliação da infraestrutura já existente. Em localidades com elevado número de casos e rede sobrecarregada, como São Paulo e Rio, adotar esse tipo de estrutura é mais necessário do que em municípios de pequeno porte.
Em Salgueiro (PE), de quase 60 mil habitantes, por exemplo, optou-se por reformar um prédio público, com custo de R$ 58 mil, somados os valores para montagem de estruturas. Já em Suzano, com cerca de 150 mil habitantes, na Grande São Paulo, recursos federais e estaduais arcaram com os R$ 527 mil da instalação de um hospital de campanha com 80 leitos de baixa e média complexidade em uma arena esportiva.
Stein comenta que uma das dificuldades para avaliar as carências da rede e avaliar quantos leitos precisam ser criados é a subnotificação dos casos. "Em uma situação dessas, há muito risco de errar. É importante ter ações multifacetas, não tem pílula mágica.".
Urbanistas criam diretrizes para adaptar espaços para hospitais de campanha
O coletivo Urbanistas Contra o Corona criou um material com recomendações para transformar espaços em centros de triagem e hospitais de campanha. Dentre as sugestões, estão a adoção de técnicas construtivas que exijam pouca mão de obra e com agilidade de implementação (como sistemas de drywall e contêineres), adaptação de equipamentos públicos e privados existentes, reaproveitamento da infraestrutura de espaços hospitalares e construção de espaços provisórios em áreas livres.
O material também aponta os estacionamentos de hospitais (e áreas livres do entorno) como ideais para receber hospitais de campanha, por exigirem menor deslocamento do paciente em caso de agravamento do quadro clínico.
Outra sugestão é adaptar escolas, pois têm uma subdivisão de espaços. Nesse caso, por exemplo, o pátio pode funcionar como um local de triagem, enquanto as salas recebem os leitos e o refeitório serve para o preparo das refeições.
Segundo a urbanista Claudia Pires, uma das idealizadoras do coletivo e membro da Comissão de Política Urbana do Instituto de Arquitetos do Brasil em Minas, o material foi enviado a gestores municipais, mas teve pouca receptividade, salvo exceções.
O grupo está mapeando espaços que poderiam receber estruturas durante a pandemia, como imóveis vazios ou subutilizados e hotéis. "A rede hoteleira está subutilizada neste momento no País, e já tem estrutura de serviço, de governança, muita parecida com a de alguns hospitais", diz Claudia, também doutoranda em Urbanismo na USP.