Descoberta tardia de doença rara dificulta acesso a remédio gratuito
Tratamento para AME tipo 1 custa R$ 6,4 milhões e acaba de ser incorporado ao SUS, mas falta de diagnóstico precoce traz barreira etária
À primeira vista, é inevitável que a sigla AME não remeta ao mais nobre dos sentimentos: o amor. Mas há também uma série de outras emoções e anseios entre as famílias em que crianças são acometidas pela Atrofia Muscular Espinhal (AME). A doença rara degenerativa tem raiz neuromuscular, e interfere no desenvolvimento motor de atividades como andar, respirar, engolir, entre outras.
Em casos mais severos, os primeiros sinais se manifestam poucas semanas após o nascimento, em que o bebê apresenta fraqueza para movimentos no pescoço, pernas e braços. Pode evoluir também para a deglutição e respiração. E em situações sem tratamento, a condição evolui para a paralisia do movimento cardíaco e de pulmões. A expectativa de vida nesses casos é de 2 anos.
Diante dessa luta contra o tempo, os pais que convivem com a condição de seus filhos agora passam por um cenário mais otimista. No último dia 14 de dezembro, o Ministério da Saúde anunciou a incorporação da mais potente medicação no combate a AME de forma gratuita ao Sistema Único de Saúde (SUS). Um alívio para pelo menos 400 famílias elegíveis no Brasil ao tratamento, que se não fosse pelo SUS, jamais poderiam pagar R$ 6,4 milhões para custear a dose única do medicamento.
Mais conhecido como Zolgensma, do laboratório Novartis, a medicação estará disponível dentro de 180 dias para crianças de até seis meses de vida com AME do tipo 1. Apesar da boa notícia, há incontáveis casos em que o caminho não é rumo ao hospital, mas aos tribunais. Devido as dificuldades no diagnóstico precoce, muitos bebês com AME tipo 1 já passam dos seis meses de vida, e não se encaixam mais na régua etária do SUS. O jeito é recorrer judicialmente por esse direito.
Direito e esperança
O casal Bruna e Bruno Fernandes, pais do Pedro, de cinco meses, diagnosticado com AME do tipo 1, passa por essa luta contra o tempo. A família decidiu abrir uma conta solidária na internet (https://www.vakinha.com.br/usuario/pedro-de-mattos-fernandes) para arrecadar fundos para o tratamento paliativo do bebê, enquanto tentam viabilizar judicialmente a medicação mais potente e definitiva.
Por enquanto, Pedro recebeu a terceira dose do Spinraza, medicamento alternativo aplicado diretamente na medula, e que retarda a evolução da doença. A medicação precisa ser administrada quatro vezes ao ano, pelo resto da vida da criança. O remédio, no entanto, não é o mais apropriado para o caso de Pedro, o mais raro e complexo. Outros gastos da família incluem aluguel de respiradores, sessões de fisioterapia e honorários com advogados.
“É muito difícil e doloroso falar sobre isso, mas enquanto o Pedro não tiver uma data marcada para receber o remédio, nós não vamos parar. Temos gastos de mais de R$ 50 mil com a advogada, que está cuidando do processo para o tratamento gratuito no SUS, e também contra o nosso plano de saúde, para termos o reembolso com terapias e fisioterapias. Só de respirador, o aluguel custa R$ 3 mil por mês. Relutamos de expor a história do nosso filho, mas os valores ficaram realmente muito altos”, revelou Bruna ao Terra.
No caso de não conseguirem na justiça o direito ao tratamento milionário de forma gratuita, o casal seguirá com o programa de doações pela internet para viabilizar a compra do Zolgensma com recursos próprios. A luta contra o tempo, no entanto, é a principal barreira, visto que a indicação na bula do Zolgensma recomenda o uso em crianças de até 2 anos de vida.
Tratamento precoce
Atualmente, uma em cada 10 mil pessoas são diagnosticadas com AME no mundo. São classificados quatro tipos da condição de acordo com os sintomas e fase da vida com que o paciente adquire a doença. No tipo 1, o mais grave, os sintomas acontecem até os seis meses de vida, mas nem sempre os pais e pediatras conseguem fazer essa leitura com rapidez.
Muitas vezes, as crianças são confundidas com “dorminhocas”, sonolentas ou mais quietas, já que mexem pouco as pernas e braços, e também não reagem a estímulos e brincadeiras. A parte cognitiva segue intacta, ou seja, o desenvolvimento cerebral não é alterado.
De acordo com o neurologista Paulo Sgobbi, coordenador das atividades ambulatoriais do Setor de Doenças Neuromusculares da Escola Paulista de Medicina (EPM-UNIFESP), o grande desafio está justamente no diagnóstico precoce, uma vez que os sinais podem ser sutis e exigem muita atenção dos pais. Nesse sentido, a comunidade médica e até mesmo a imprensa têm papel fundamental de educação.
“Não temos culturalmente essas discussões sobre o desenvolvimento natural das crianças. Os pais não têm parâmetro do que é normal ou não porque muitas vezes, têm o primeiro filho. Como médicos exploramos pouco o tema. O mesmo vale para a mídia. Os pais ficam sem referência”, alerta o neurologista.
Como resultado, quando o paciente começa a ter sintomas mais perceptíveis, ele chega ao neurologista de forma muito tardia. “Cada vez mais temos contato com a classe pediátrica sobre a suspeita de AME. Orientamos a encaminhar direto para o especialista ou solicitar um teste genético. Quanto mais precoce o diagnóstico e introduzir a terapia, melhor o resultado. Precisamos desenvolver na classe médica a conscientização, educação para aprenderem a reconhecer sinais do desenvolvimento da criança, e criar neles o senso de urgência”, reforça o Sgobbi.
No caso do menino Pedro, seus pais reconhecem as dúvidas que tiveram sobre a real gravidade da situação. “Não tínhamos comparação com outros bebês para saber se o padrão do Pedro estava normal. Com dois meses, comecei a ver que o bracinho não estava mexendo tanto. Tinha pouco tônus muscular, não sustentava o pescoço. O corpinho era muito mole, então, o pediatra recomendou a fisioterapia, só que ele não respondia bem ao tratamento”, conta Bruna Fernandes, mãe do menino.
“Quando peguei no colo as filhas gêmeas de uma amiga, entendi que os padrões eram realmente muito diferentes. Insisti com o pediatra, e ele recomendou uma consulta com um neurologista”. O diagnóstico veio poucos dias depois, lembra Bruna.
Para o dr. Sgobbi, aprender sobre os primeiros sinais de AME é a chave para que o paciente receba o tratamento adequado dentro da janela de seis meses de vida exigida pelo SUS. Apesar de pouco difundido, vale lembrar também que há testes genéticos que podem ser feitos logo após o nascimento do bebê, como complementar ao teste do pezinho. A partir do diagnóstico de AME, o tratamento já é administrado gratuitamente pelo SUS. Nessas situações, a criança sequer desenvolverá qualquer sintoma e viverá uma vida normal.
Aprenda a identificar possíveis sinais de AME
Tônus muscular
Preste atenção quando pegar o bebê no colo. Muitos pais relatam que a criança parece um “boneco de pano” por não oferecer resistência nas pernas, braços, cabeça e pescoço.
Respiração
Na hora da mamar, observe se a criança apresenta dificuldades de respirar. Em muitos casos de AME, o bebê parece engasgar e ter falta de ar.
Atraso motor
Observar se o bebê está rolando, engatinhando ou apresenta outras reações quando estimulado por brinquedos.
No caso de dúvidas, os responsáveis devem ser insistentes com o pediatra e pedir encaminhamento para um teste genético.
Como apoiar o tratamento do Pedro
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Pix para doações: ajudeopedro.ame@gmail.com