Dimas Covas é o homem por trás da Coronavac no Brasil
Católico, diretor do Butantã recorre a textos de São Tomás de Aquino para manter o equilíbrio; aposta em parceria chinesa veio depois de seus contatos com responsáveis por imunizantes em todo o mundo
Na quarta-feira, 9, o hematologista Dimas Tadeu Covas acordou por volta das 3 e meia da manhã e mergulhou em seu pequeno ritual diário de orações - uma maneira de começar o dia que ele descreve como "o momento em que faço minha reflexão, me examino, defino prioridades, procuro me ligar ao absoluto". Até aí, nada de novo no front. Sair da cama ainda de madrugada e aproveitar para rezar um pouco - às vezes com a ajuda de um terço, às vezes não - tem sido rotina para ele nesses meses de pandemia.
A grande novidade viria logo a seguir. Naquela manhã, Covas chegou ao Instituto Butantã e viu de perto um frasco da Coronavac, a primeira vacina contra a covid-19 feita em solo brasileiro. Produzido na noite anterior em uma área de segurança máxima onde só entram técnicos paramentados, o imunizante faz parte de um lote de 900 mil doses que dará origem a uma produção de 1 milhão de exemplares por dia. Uma das vacinas que prometem acabar aos poucos com o flagelo que já matou 185 mil brasileiros, a Coronavac é um líquido incolor. "Límpida como a água", descreve Covas. E é também resultado de um embate entre ciência e política com lances duríssimos, em que o médico empenha toda a sua energia, 24 horas por dia.
Dimas Covas é o homem da vacina. Diretor do Instituto Butantã há três anos, prospectou potenciais parceiros para produzi-la em São Paulo, bateu o martelo com o laboratório chinês Sinovac, fechou acordo de transferência de tecnologia, coordenou a importação de insumos, comanda a fábrica de onde saem os frascos e, sobretudo, banca sem fraquejar: "a Coronavac é uma das opções mais seguras do mundo". Se der tudo certo, entrará para o rol dos grandes heróis da ciência brasileira. No momento, no entanto, é um cientista sob pressão.
Desde o começo da pandemia, emagreceu 10 quilos, dorme mal, passa o dia pendurado no celular, vê muito pouco a família - que está em Batatais, no interior de São Paulo, enquanto ele permanece em um flat na capital. Convive o tempo inteiro com os desdobramentos sem fim da peleja entre o presidente da República que critica, faz chacota e dificulta a chegada da Coronavac porque ela foi desenvolvida em parceria com um laboratório da China, hoje uma das maiores potências científicas do mundo, e o governador de São Paulo que bota pressão para que o imunizante seja aprovado logo.
"É uma responsabilidade muito grande, uma pressão imensa. Mas, a despeito de todo o sacrifício pessoal, pode ter certeza: me preparei durante toda minha vida para enfrentar esse tipo de situação, ela não me amedronta nem por um minuto. Faço isso por convicção interna, pela visão do meu papel no mundo. Isso me deixa muito confortável", diz ele.
Dimas Covas é extremamente católico. "Em alguns momentos, sou inclusive fervoroso", define. Foi agnóstico a maior parte da vida até que, aprofundando seus interesses por teologia, teve uma epifania nos escritos do frade e filósofo italiano São Tomás de Aquino. A influência do pensador na maneira como Covas se movimenta na vida é acachapante. "Sem dúvida nenhuma o maior lógico que já existiu depois de Aristóteles, Tomás de Aquino é meu grande mestre. Ele me ensinou a pensar - e agora me orienta".
Para manter o equilíbrio nesses tempos de exceção, recorre a trechos de textos tomistas, sempre nas madrugadas, quando consegue cavar um pouco de tempo. A adesão ao legado do filósofo é tanta que o médico costuma registrar pensamentos, memórias e poemas com caligrafia gótica, usando as canetas-tinteiro e os papéis de diferentes gramaturas que garimpa em suas viagens - apenas para ter o prazer de escrever como se estivesse em uma abadia medieval. Sujeito de fala pausada, Covas se anima à beça quando conversa sobre os teólogos da ciência modernos. Costumava publicar textos sobre o tema no blog www.opusmaterdei.blog, temporariamente abandonado por culpa do coronavírus. "Se sou católico, é porque sou cientista!", anuncia.
Além de ter fé suficiente para dividir entre a religião e a ciência, o sujeito que hoje assume responsabilidade total pela vacina que acredita ser a mais viável para os brasileiros tem também uma trajetória profissional bojuda. Filho de um carteiro e de uma dona de casa, Covas nasceu e cresceu em Batatais, a 355 km da capital - onde ainda moram a mulher, a biomédica Claudia, e a filha Giulia, de 17 anos; Lorenzo, o filho de 23 anos, estuda na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.
Foi um adolescente fissurado por Freud, por filosofia, por ciência. Entrou para a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo por causa da imensa reputação da instituição na área da pesquisa. A princípio, tinha um objetivo difuso de um dia unir Psicologia e Filosofia à Biologia. Mas, no meio do curso, se encantou pelos estudos do câncer no sangue - leucemias, linfomas etc. Foi fazer residência em Hematologia e estava no meio do doutorado quando, na década de 1980, estourou o que até hoje considera um escândalo nacional agudo, um dos maiores baques de sua trajetória médica e um momento em que intuiu que a ciência não pode tudo.
Vírus até ali desconhecido, o HIV começou a infectar também pacientes fora dos grupos de risco que precisavam de transfusões de sangue. "De repente, 60% dos meus pacientes com hemofilia foram contaminados por transfusões que eu prescrevia, sem saber que o sangue não era seguro. Foi um choque muito grande", lembra. A comunidade científica começou a se organizar para criar maneiras de garantir a qualidade dos bancos de sangue e Covas foi convidado para integrar um grupo que implantaria uma rede de hemocentros no estado de São Paulo. Logo depois, foi encarregado de montar o Hemocentro de Ribeirão Preto.
"Ali começou o que seria a grande dedicação da minha vida, o meu envolvimento com a Saúde Pública, a minha formação como gestor e a oportunidade de colocar em prática toda a minha criatividade científica", resume. Público e regional, o Hemocentro de Ribeirão Preto é uma rede que se espraia por quinze cidades, atende 10% da população do Estado, tem cerca de 450 funcionários e 100 pesquisadores, fornece sangue e trata pessoas que precisam de transfusões. Mas, além da assistência, o lugar seguiu à risca a tradição de pesquisas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e virou berçário de estudos sobre biotecnologia, diagnóstico, novos tratamentos e moléculas recombinantes.
O Hemocentro de Ribeirão Preto engloba também dois outros grandes centros, até hoje coordenados por Covas. Um deles é o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Células-Tronco e Terapia Celular no Câncer (INCT-C). O outro é Centro de Terapia Celular (CTC), apoiado pela Fapesp. Foi dali que saiu, no ano passado, o feito que ele considera o ápice de sua carreira científica: a cura de um portador de linfoma não Hodgkin com células CAR-T, terapia feita com células reprogramadas do próprio paciente. Primeiro do gênero feito no Brasil, o tratamento teve repercussão imensa. Dois meses depois, o paciente, um idoso de Belo Horizonte, levou uma queda em casa, teve traumatismo craniano e morreu - o que aumentou ainda mais o alcance do caso. "Foi uma celeuma. Mas o meu grupo foi muito bem-sucedidos, isso me deu muito orgulho. É o auge da minha trajetória".
Quando o tratamento foi feito, Covas já ocupava a direção do Butantã - mas o episódio ajuda a explicar um pouco como foi parar lá. O médico representa uma escola com visão extremamente prática da ciência. Ligado ao desenvolvimento em biotecnologia, acredita em pesquisas que levem a algum lugar: ou a um medicamento, ou a um tratamento, ou a um diagnóstico. Nunca, jamais, a pesquisa só pela pesquisa. É uma corrente que conta com críticos que apontam os perigos de amarrar a liberdade da ciência a fins necessariamente utilitários. Mas Covas vai que vai nesse caminho.
Orgulha-se de um rol de resultados palpáveis de seu trabalho: foi o primeiro no Brasil, por exemplo, a desenvolver proteínas recombinantes para tratamento de hemofilia, remédio hoje usado de forma corriqueira, e a desenvolver patentes no setor. Por causa dessa atuação intensa e pé no chão na hematologia, acabou em contato próximo com o Butantã quando se resolveu que, além de fazer vacinas e soros, o lugar abriria também uma fábrica de hemoderivados. Covas nem gostava muito da ideia - achava que o caminho era desenvolver o recombinante, e não coletar sangue e plasma para obter esses fatores. Ainda assim, se aproximou da instituição.
Em 2017, o Butantã se enfiou numa crise cascuda, que incluiu denúncias de desvios e culminou no afastamento do imunologista Jorge Kalil de sua direção. Covas foi chamado às pressas para uma conversa com o então secretário de Saúde do Estado de São Paulo, David Uip, que conhecia desde os tempos em que o desafio da vez era controlar o HIV. Pelo que conta, acabou convidado à queima-roupa para assumir o Butantã. "Ele me deu cinco minutos para pensar. Topei, mas com o espírito de ajudar o David e na expectativa de que seria uma transição para colocar o Instituto em ordem", lembra. Olhando a instituição de perto, concluiu que ela sofria de crise de identidade. "Fazia pesquisa, produção, ensino, cultura. No conjunto, parecia ter sentido, mas quando você analisava melhor, era só um ajuntamento de coisas".
Sentado na cadeira de diretor, Covas botou seu software pragmático para rodar. Anunciou que o grande ativo do Butantã são as sete vacinas que produz e fez um plano de voo para colocá-las no mercado internacional - a meta para 2020 era incluir o instituto entre os três maiores produtores do mundo, atrás de gigantes multinacionais como a francesa Sanofi e a britânica GSK e disputando lugar com a americana MSD. Refez a fábrica da vacina contra a gripe e a embicou no mercado como a maior do Hemisfério Sul - com produção anual de 80 milhões de frascos só para o Brasil e capacidade de outros 80 milhões para o mundo. No ano passado, viajou pelo planeta atrás de parcerias. Com a MSD, fechou o primeiro acordo de transferência de tecnologia entre o Butantã e uma multinacional - que fez aporte inicial de 100 milhões de dólares para ter acesso ao mapa da mina da vacina da dengue.
Enquanto as ambições comerciais corriam soltas, o Butantã ficava ligado também na ameaça iminente de uma epidemia. O Instituto participa de alguns organismos internacionais que discutem o tema, entre eles um formado pela Fundação Bill e Melinda Gates e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cujas prospecções levavam a crer que o próximo vírus que faria o mundo tremer seria o influenza H7N9. Como o Brasil se encaixa no perfil dos países mais ameaçados por esse vírus, o Butantã correu para desenvolver uma vacina, já em fase estudo clínico.
O Sars-CoV-2, vírus que causa a covid-19, no entanto, apareceu antes. "Todo mundo olhava com certo desdém: vai ser mais um Sars (síndrome respiratória aguda grave) ou um Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio) que vai dar apenas uma certa epidemia ali na Ásia. Quando começou a se espalhar, já em janeiro, montamos no Butantã o primeiro comitê para enxergar seriamente o assunto, que precedeu o que foi montado pelo governador. Ali já discutíamos aspectos relacionados com diagnóstico, testes, estratégias de enfretamento e, claro, vacinas", diz Covas.
Até o ano passado, o Butantã ocupava a vice presidência do DVCMN (Developing Countries Vaccine Manufacturers' Network), consórcio com mais de 40 produtores de vacinas de países em desenvolvimento. "A gente conhece todo mundo: os indianos, os chineses, os europeus, os latino-americanos", explica. A romaria mundial feita pelo médico na busca por parceiros comerciais para os imunizantes do Butantã também contribuiu para deixar esses contatos mais sólidos. A nuvem negra da pandemia foi se aproximando, e o médico ativou uma comunicação desenfreada com esse grupo para apurar quem tinha projeto de vacina, em que pé estava, para onde caminhava. Amarrou alguns acordos confidenciais para troca de informações, inclusive com a Universidade de Oxford.
No giro pelo exterior feito no ano passado, parte da equipe do Butantã havia visitado farmacêuticas estatais e algumas fábricas privadas na China, entre elas a Sinovac. Pouco depois, representantes da companhia chinesa também foram conhecer o Butantã. Com esse canal aberto, a empresa avisou que tinha uma vacina feita para uma outra epidemia, a do Sars-CoV-1, que já estava em estudos pré-clínicos para ser adaptada para o Sars-CoV-2. Covas também fechou com eles um acordo para troca de informações, mas seguiu em contato com outras empresas. Conversou com a AstraZeneca (que produz a Oxford/AstraZeneca, principal aposta do governo Jair Bolsonaro, embora também tenha princípios ativos produzidos na China), falou com o grupo russo que desenvolvia a Sputnik V. A certa altura, formou sua convicção: nada era melhor do que a oportunidade que tinha com a chinesa Sinovac.
Covas apostou seu pescoço na CoronaVac por quatro motivos: a Sinovac é parecida com o Butantã em tamanho e portfólio de vacinas, o que transformava a negociação em uma conversa entre iguais; a equipe do Butantã conhece e domina a tecnologia da vacina chinesa, a mesma usada por aqui para fazer a de raiva humana e da dengue; a Sinovac precisava muito de uma parceria com um país que ainda estivesse enfrentando a pandemia para fazer testes clínicos; e, por fim, seria ideal que esse parceiro tivesse inserção na comunidade internacional, porque a empresa chinesa é uma companhia pouco conhecida no mundo.
"Eram as condições ideais, para nós e para eles. Tanto que fizemos um acordo de desenvolvimento da vacina, não um acordo comercial travestido. O acordo da AstraZeneca, por exemplo, no fundo é comercial: envolve a transferência da vacina mediante pagamento e, lá na frente, uma possível transferência de tecnologia. Fizemos o contrário. Somos os responsáveis pelo estudo clínico que vai aprovar a vacina no Brasil e na China, a nossa contribuição é enorme. Vamos dar pedigree à Coronavac".
O diretor do Butantã ficou tão animado com os termos do acordo que, a certa altura, chegou a prever que o Brasil teria chances reais de ser o primeiro país a ter a vacina. "Não fosse a da Pfizer, produzida em situação excepcional, e as dificuldades burocráticas inacreditáveis que enfrentamos aqui, já teríamos vacina com condições de uso para os brasileiros".
Covas passa o dia trocando mensagens pelo WhatsApp com o governador João Doria (PSDB), a quem chama apenas de João. Duas vezes por semana, participa de reuniões do secretariado para tratar das sempre tensas questões que envolvem a vacina. Diz que opina a todo momento na parte técnica, mas jamais entra nas táticas políticas, embora quase sempre concorde com elas. "Damos as informações científicas, aí eles montam estratégias como a que foi feita na semana passada, do lançamento do plano estadual de vacinação. É um movimento que coloca muita pressão no Ministério da Saúde e no presidente da República e está dando resultados: acordou os governadores e os prefeitos para o fato de que precisamos dessa vacina, ela está muito próxima e nenhuma ação efetiva havia sido tomada".
Aos 64 anos, Dimas Tadeu Covas se define como um cientista sem traquejo para a política, dado a episódios frequentes de sincericídio. Faz parte da frequentemente criticada massa de médicos que votou em peso em Bolsonaro nas eleições. "Votei nele no 2º turno, motivado pela crença na alternância de partidos no poder. Achei que as coisas poderiam mudar." Agora, senta a pua na politização da vacina puxada pelo governo federal: "o País é governado por bordões disparados pelo Twitter. É Vachina, é se é da China, não presta, é a China vai botar um chip na sua cabeça... É um retorno à Idade das Trevas, um grau de degradação educacional e moral do país que eu não conhecia. A ciência no Brasil sempre foi cultuada, nomes dos nossos grandes cientistas estão nas nossas ruas. De repente, não é mais importante que a vacina seja feita pelo Butantã, com seus 119 anos de tradição científica", diz ele. "O fato de o instituto estar fazendo a vacina em associação com uma empresa da China, hoje uma potência científica maior do que o Estados Unidos, já é suficiente para dizer que o que ele está fazendo não vale, é ruim. É uma violência enorme, uma coisa estúpida, desnecessária, que causa mal aos brasileiros". O médico nunca viu o presidente Jair Bolsonaro pessoalmente. Se encontrasse hoje com ele, diria: "perca algum tempo e venha conhecer o Instituto Butantan, venha ver as pessoas que trabalham aqui. Não é possível, o senhor vai mudar de opinião".
Qualquer que seja o desfecho dessa história, a militância pela vacina feito pelo médico e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto já entrou para a crônica da ciência no Brasil. Ele, francamente, não está nem aí: "atualmente, eu só penso, só falo, só trabalho ao redor dela: a vacina".