Doenças raras na infância: a odisseia das famílias em busca de um diagnóstico
Raro: que não é comum, incomum, extraordinário; que não se vê com frequência, pouco frequente.
Doenças raras, portanto, são incomuns por definição, mas coletivamente não são nada raras. Juntas, afetam um enorme número de pessoas. Cerca de 13 milhões de brasileiros têm uma doença considerada rara. E entre os pacientes, 75% são crianças. É sobre elas e suas famílias que vamos falar hoje e nas próximas semanas de fevereiro, o mês mundial de conscientização sobre doenças raras.
Uma doença é rara quando atinge 65 a cada 100 mil pessoas, critério da Organização Mundial da Saúde (OMS) — ou 1,3 a cada 2 mil pessoas. Há cerca de 7 mil doenças raras documentadas: os nomes são por vezes complexos e compridos, uns mais conhecidos, outros obscuros. Afetam cerca de 3 a 8% da população mundial ou mais de 350 milhões de pessoas em todo o mundo.
Mesmo afetando milhões, o percurso que cada paciente enfrenta para obter respostas é único. E pode ser bem demorado: o portador de uma doença rara chega a passar por dezenas de especialistas ao longo de muitos anos (de 5 a 10 anos na América Latina, em média) até encontrar o diagnóstico correto. Na chamada “odisseia diagnóstica”, pode ser submetido a exames e procedimentos desnecessários ou receber orientações incorretas sobre sua enfermidade.
Estudos apontam que 80% das doenças raras decorrem de fatores genéticos e 20% de causas externas (infecciosas, inflamatórias, autoimunes e outras). Se encontrada a resposta, há outra busca: o acesso a um tratamento adequado. Cada doença é diferente da outra e exige cuidados e atenções também distintos. Somente 5% das 7 mil doenças documentadas têm tratamento aprovado. A maior parte (95%) envolve medicina paliativa e terapias de reabilitação.
Mas olhar todos os números não dá a dimensão de como é viver com uma doença rara ou cuidar de alguém que tenha alguma. Especialmente se ocorre na infância, quando 30% perdem a vida antes dos cinco anos de idade. As doenças raras são a segunda maior causa de mortalidade infantil no Brasil (a primeira é a prematuridade).
Doenças raras em números
- 350 milhões de pessoas têm doenças raras em todo o mundo (estimativa da Orphanet);
- 13 milhões de brasileiros têm doenças raras (fonte: Ministério da Saúde);
- 75% dos pacientes com doenças raras são crianças/ 30% morrem antes dos 5 anos de idade;
- Uma doença é rara quando atinge 65 a cada 100 mil pessoas, critério da OMS;
- 7 mil doenças raras estão documentadas no mundo;
- Só 5% das doenças raras têm tratamento aprovado;
- 80% das doenças raras decorrem de fatores genéticos e 20% de causas externas;
- Em média, o paciente consulta 17 especialistas desde o primeiro sintoma até o diagnóstico (fonte: NIH - National Center for Advancing Translational Sciences);
- O diagnóstico pode levar de 5 a 10 anos na América Latina.
Sistema moroso para quem tem pressa
Encurtar a jornada dos pequenos pacientes é urgente: em dezembro de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma resolução indicando que os países incluam as doenças raras nos programas prioritários de saúde. No Brasil, iniciativas já foram criadas e outras estão em andamento, como contaremos na sequência. Mas problemas complexos exigem soluções complexas — e esta pauta não foge desta máxima. Em paralelo às ações de governos e políticas públicas e às avançadas pesquisas na área de terapias gênicas, corre a linha também urgente de disseminar informação.
"Ainda enfrentamos a falta de conhecimento sobre os sintomas de cada doença. Pela baixa incidência, boa parte dos profissionais de saúde não as conhecem tanto, o que impede um diagnóstico precoce", afirma Roberto Giugliani, médico geneticista que é pioneiro na área no país, professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e cofundador da Casa dos Raros, primeiro Centro de Atenção Integral e Treinamento em Doenças Raras da América Latina, inaugurado em Porto Alegre no ano passado como organização privada com fins filantrópicos.
Ou seja, justamente por serem menos frequentes, tais doenças não costumam ser a primeira hipótese de diagnóstico dos médicos da atenção básica. E, quando há a suspeita de doença rara, o sistema de saúde acaba se torna moroso justamente para quem tem pressa.
No desenho atual da jornada, o paciente é atendido no posto de saúde e, em caso de suspeita, encaminhado ao centro de referência em doenças raras mais próximo de onde mora. Esta frase escrita de forma resumida pode fazer tudo parecer muito simples, mas a fila é longa. Há milhares de pacientes na lista de espera, o que pode resultar em anos até a primeira consulta. E como as doenças raras costumam exigir manejo multidisciplinar e avaliações de mais especialistas, na hora de marcar mais um atendimento haverá nova fila para o paciente.
Outro complicador: há mais demanda do que capacidade de atendimento. Por exemplo, enquanto no Rio Grande do Sul há dois centros de referência em doenças raras (o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, na capital gaúcha, e o Hospital Universitário de Santa Maria, na região central do Estado, que atualmente está inativo), não há nenhum no Amazonas.
Da mesma forma, a falta de acesso a aconselhamento genético também prolonga a odisseia. Dos 354 médicos geneticistas registrados no Conselho Federal de Medicina (CFM) no Brasil, apenas 1 está radicado no Amazonas. O número total é insuficiente para o país: a OMS preconiza um geneticista para cada 100 mil habitantes. Para efeitos de comparação, os Estados Unidos têm 5 mil geneticistas, segundo o Research Triangle Institute (RTI) International, igualmente aquém da demanda por lá.
Redes sociais, jornalismo e associações familiares ampliam alcance das informações
Quebrar o ciclo vicioso das famílias que perambulam com as crianças de médico em médico, enquanto a doença progride, é um dos principais desafios. Há outros grandes obstáculos nessa corrida contra o tempo, mas antes de prosseguir na leitura vamos esclarecer a razão de estarmos falando deste tema hoje.
Há uma grande probabilidade de você ter chegado até este link do Terra buscando notícias sobre uma doença específica ou conjunto de sintomas pelo Google. E saiba que isso também faz parte da odisseia diagnóstica das famílias de qualquer parte do mundo.
"Quando os pacientes procuram informações sobre doenças raras, recorrem a muitos recursos diferentes. Reportagens, textos de profissionais médicos, pesquisas online, mídias sociais, sites de organizações e grupos de apoio online", detalha Eric Sid, coordenador do GARD, Genetic and Rare Diseases Information Center, vinculado ao instituto nacional de sáude dos EUA (National Institutes of Health/NIH). "Em geral fazem a busca logo após os primeiros sintomas e consulta ao médico. É por isso que o jornalismo faz toda a diferença, dando voz às histórias de quem tem uma doença rara."
Esta reportagem integra um movimento internacional de divulgação de conhecimento. Organização sem fins lucrativos surgida na França, a Fondation Ipsen financia um programa de jornalismo da US National Press Foundation (Washington) para ampliar o alcance de informações ao público leigo. Assim como você está lendo em português sobre a doença rara do seu filho, outros pais e mães de países como Índia, Malásia, Argentina, Paquistão e Vietnã também estão se informando graças a esta iniciativa. E assim podem se conectar e saber que não estão sozinhos.
Nas próximas quatro semanas, até 29 de fevereiro, Dia Mundial das Doenças Raras, vamos trazer a cada quinta-feira histórias de famílias com bebês e crianças que vivem com condições raras, além do panorama da realidade brasileira, com o raio-x do que falta melhorar e as perspectivas futuras.
Um dos pontos mais desafiadores é a ampliação no SUS (Sistema Único de Saúde) do teste do pezinho, que detecta seis doenças nos primeiros dias de vida do bebê. Com a nova lei Nº 14.154 sancionada em 2021, o exame passará a rastrear 50 doenças, algo que só é possível em laboratórios particulares. A implantação está sendo feita por etapas em ritmos diferentes em cada região. Enquanto Rio de Janeiro e Distrito Federal estão avançados na ampliação, já detectando 54 e 58 doenças, respectivamente, outros Estados seguem estagnados.
A demora atrasa o diagnóstico precoce, que é a porta de entrada para os cuidados eficazes, justamente nesta fase que é a mais importante do desenvolvimento humano. Já as crianças com doenças identificadas rapidamente na triagem neonatal (como fenilcetonúria, síndromes falciformes, fibrose cística e outras) recebem tratamento cedo e têm uma infância com mais qualidade de vida. Este é o tema da reportagem do próximo dia 8/2.
Na semana seguinte, 15/2, mostraremos a força das redes de apoio virtuais, grande parte formada por famílias que compartilham suas causas e exercem advocacy, unidas para mobilizar governos e sociedade. Na busca por respostas, pais e mães se organizam em associações que geram impacto.
Os avanços na pesquisa científica serão abordados no dia 22/2, com destaque para as aplicações das terapias genéticas e novas tecnologias, assim como o uso das técnicas de sequenciamento que ficaram mais disponíveis nos últimos anos. Entrevistamos a primeira pessoa curada com CRISPR, a ferramenta de edição de DNA, descrita como “a mais importante descoberta científica do século 21”.
Encerramos o mês no dia 29/2 com os direitos dos pacientes com doenças raras, os caminhos para buscar ajuda especializada e as histórias de quem recorre à Justiça para obter a assistência necessária para as crianças terem acesso a tratamentos e medicamentos de altos valores.
Iniciativas unificam dados sobre doenças raras e vão acelerar diagnóstico e atendimento
Há uma década, desde janeiro de 2014, o país adotou a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que reforça o direito ao atendimento gratuito e total às pessoas com doenças raras no SUS. A meta é organizar a rede de atendimento para prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação.
Como o desafio é tão gigante quanto o tamanho do país, tramita a proposta de criação de um subsistema de atenção às doenças raras. Este projeto de lei (PL 6085/2023) avançou na semana passada para ser avaliada pela Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados. Também na última semana de janeiro a Comissão de Saúde aprovou o Estatuto da Pessoa com Doença Rara, prevendo igualar aos direitos do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
O parecer também prevê a criação de um registro eletrônico unificado no Brasil, o Cadastro Nacional de Pessoas com Doenças Raras (CadRaras), cujos dados deverão ser usados para formulação e avaliação de políticas públicas, além de contribuir para estudos. Outras comissões da Câmara ainda precisam analisar estes textos.
A ausência de dados centralizados sobre doenças raras sempre foi um entrave tanto para a pesquisa científica quanto para a prática médica. Mas agora já é possível dimensionar o cenário no Brasil. Criado no fim do ano passado, financiado por órgãos nacionais de pesquisa, o Instituto Nacional de Doenças Raras (InRaras) unifica informações sobre a epidemiologia e a odisseia diagnóstica dos indivíduos com doenças raras no país.
Entre os objetivos estão mapear fluxos de acesso aos exames genômicos e oferecer sequenciamento genético para casos sem resposta. O InRaras é um dos institutos de ciência e tecnologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e da UFRGS, coordenado pela professora-chefe do Serviço de Genética Médica do HCPA, Ida Schwartz, e sub-coordenação de Têmis Maria Félix, do mesmo departamento. Outras instituições dedicadas à pesquisa de doenças raras, distribuídas nas cinco regiões do Brasil, integram o InRaras, como as universidades federais de Brasília, Bahia e Pará.
"São muitos os desafios neste campo, desde a suspeita diagnóstica até o acesso aos métodos de diagnóstico e ao tratamento. Mas unindo os diversos esforços e iniciativas que já existem, com atuação em rede, podemos fazer mais avanços, entendendo a epidemiologia, com dados mais fidedignos", reflete Ida, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.
A mencionada atuação em rede está disponível, inclusive, para qualquer família consultar abertamente: a Rede Raras (https://raras.org.br) é um projeto de pesquisa, financiado pelo Ministério da Saúde e com patrocínio do CNPq, para coletar dados epidemiológicos de doenças raras no país e apresentar de forma organizada. É um “trabalho hercúleo”, nas palavras da coordenadora Têmis Félix, por orquestrar desde 2020 o trabalho de mais de 150 pessoas, desde pesquisadores até equipe de T.I. A Rede teve verba refinanciada até 2025.
"A ideia é a Rede Raras ser um embrião para o registro de doença rara no país. Está trazendo frutos não só para acadêmicos, mas para a sociedade como um todo", comemora Têmis, antecipando que os próximos passos são conectar a Rede com outras redes semelhantes, como o portal internacional Orphanet (www.orpha.net).
Referência para América Latina priorizando os casos mais urgentes
Desafogar a fila de espera por atendimento é uma das prioridades da Casa dos Raros, que citamos brevemente no começo da reportagem. O cofundador da organização filantrópica em Porto Alegre, professor Roberto Giugliani, é o fundador do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas, referência na América Latina. Assim que foi inaugurada, a Casa dos Raros já registrou uma lista de espera de 2 mil pessoas interessadas em atendimentos gratuitos.
Em convênio com a Secretaria Estadual de Saúde do RS, a instituição recebeu R$ 3,15 milhões para agilizar o diagnóstico e o tratamento de doenças raras em todo o RS. Mas a Casa já recebeu pedidos de consultas de pessoas de todos os Estados do país e até do Exterior. O convênio tem duração de 42 meses, com previsão de atender 1.050 pacientes infantis e adulto, encaminhados pela Atenção Primária à Saúde dos municípios do RS.
Haverá ainda um setor de pesquisa e um programa de educação e treinamento, para capacitar profissionais com as melhores estratégias de diagnóstico e tratamento. Os atendimentos estão sendo realizados por um médico geneticista e equipe multiprofissional ao mesmo tempo, priorizando após a triagem os casos mais urgentes.
"Nossa premissa é identificar os casos que precisam de mais urgência no atendimento, em situações em que a intervenção realmente faça uma diferença na vida destes pacientes, e não raro esta situação ocorre justamente na infância", destaca Giugliani, presidente do Conselho de Administração Casa dos Raros. "Vamos somar esforços à estrutura existente, atuando em parceria, para reduzir o tempo de espera das famílias."
A doença é rara, mas o diagnóstico não pode ser. A seguir, acompanhe dois retratos de uma espera por respostas: a odisseia diagnóstica de duas famílias brasileiras e seus filhos: Santiago recebeu seu diagnóstico de ultrarraro com apenas 42 dias de vida, enquanto Theo levou 6 anos até sua mãe ter o exame definitivo em mãos.
Seis anos até o diagnóstico
A inconfundível caixinha amarela de Maizena traz o slogan: "Faz mais do que você imagina". Pura verdade: é com amido de milho ingerido em intervalos regulares que as pessoas diagnosticadas com glicogenose hepática controlam a saúde.
A doença afeta o armazenamento do glicogênio, substância que funciona como "estoque de carboidratos" para o corpo. Condição genética e hereditária, é um erro inato do metabolismo que atinge 1 a cada 25 mil pessoas. O portador tem hipoglicemia após pequenos períodos de jejum. Pode causar atraso no crescimento estatural, aumento do tamanho do fígado e doença inflamatória intestinal, além de episódios de hipoglicemia, levando a convulsões e, em casos graves, à morte.
Na casa da família Ferreira, de Campinas (SP), a glicogenose chegou em dose dupla. O primeiro a manifestar sintomas foi o filho Theo, em 2013, e depois o mais novo, Augusto, em 2016. Foram seis anos até o diagnóstico oficial de Theo, que já estava em tratamento com o irmão. Entre um e outro nasceu Dora, em 2015, sem a doença. A rotina dos pais — Élen de Santos Ferreira, do lar, e Sillas de Paula Ferreira, técnico em eletrônica — é ajustada para ministrar o “medicamento” Maizena aos filhos de 4 em 4 horas.
Leia aqui o depoimento completo da mãe de Theo e Augusto
A maisena, que para todos é um alimento, para nossos filhos é o remédio
Miopatia Centronuclear: apenas 11 mil pessoas no mundo
Assim que recebeu o “positivo” do teste de gravidez, o casal Augusto Rocha, administrador e empresário, e Marina Bignetti, administradora, se empenharam em ler livros sobre parentalidade e assistir a todos os documentários possíveis sobre gestação e primeira infância. Mas nada os preparou para tudo o que viveriam desde o primeiro dia da chegada de Santiago, nascido em junho de 2023.
Internado na UTI neonatal do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, o bebê foi diagnosticado como portador de uma doença genética chamada Miopatia Centronuclear, com incidência menor 1 caso a cada 100 mil pessoas e que tem sete variantes. A de Santiago é causada pela falta da proteína Dinamina 2 (DNM2), o que o coloca em um grupo de, aproximadamente, 11 mil pessoas com o mesmo diagnóstico no mundo. Esta estimativa é do próprio pai, que passou a conciliar suas tarefas profissionais com o enérgico empenho em busca de informações e contatos para compreender a doença do filho e possíveis caminhos para a cura.
É Augusto quem narra a jornada do bebê, que fará 8 meses de vida neste fevereiro:
Leia aqui o depoimento completo do pai de Santiago
Ao ouvir o diagnóstico, a mensagem que ficou na cabeça foi a seguinte: ‘começou o velório'
*Esta é a primeira de uma série de 5 reportagens, conteúdo produzido com apoio da bolsa de jornalismo da US National Press Foundation: Covering Rare Diseases.