Elo obscuro: como a violência sexual e o HPV impactam a Saúde da Mulher
Neste mês, o Ministério da Saúde deu um passo importante no que tange a Saúde da Mulher (e não só dela) ao publicar Nota Técnica nº 63 que passa a incluir vítimas de violência sexual como grupo prioritário para vacinação contra o papilomavírus humano, o HPV.
Trata-se da infecção sexualmente transmissível mais comum no mundo e que está associada a 80% dos casos de câncer do colo do útero e mais da metade dos casos de câncer na vulva, pênis, ânus e orofaringe. Além disso, 90% das verrugas genitais são provocadas pelo HPV. Esses dados são da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), vinculada à Organização Mundial da Saúde (OMS).
O HPV é transmitido, principalmente, por contato sexual e a maioria das pessoas é infectada logo após o ato. Com bem descrito no documento oficial do Ministério da Saúde, "a violência sexual é uma questão de saúde pública e segurança, que exige do Estado políticas e ações integradas para responder a esta demanda".
E entre os agentes responsáveis por garantir o bem-estar social, mental e fisiológico da população, quero destacar o papel fundamental dos profissionais e serviços de saúde, com especial foco aos especializados em Saúde da Mulher.
É claro que a nota técnica se refere às vítimas de violência sexual sem distinção de gênero, idade e classe social, e é importante que seja assim. Contudo, sua publicação no período em que a sociedade realiza ações da campanha Agosto Lilás é representativa e traz à luz reflexões sobre o nosso papel de classe perante uma das diversas formas de violência que assolam a população feminina de nosso país.
Dados de São Paulo evidenciam que 30% das vítimas de violência sexual, atendidas nos serviços especializados, desenvolvem lesões pelo HPV, além de apresentarem vulnerabilidades sociais e comportamentais de risco, como abusos frequentes. Embora esse percentual não discrimine a quantidade de mulheres, é notório que elas são as principais vítimas de violências sexual e física.
Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em março deste ano, apontou que mais de 18 milhões de mulheres foram vítimas de violência no último ano. São mais de 50 mil vítimas por dia. Este mesmo estudo revela que uma a cada três mulheres brasileiras, com mais de 16 anos, já sofreu violência física e/ou sexual de parceiros ou ex-parceiros. Este número equivale a 33,4%.
Os dados são mais que alarmantes, são revoltantes! E entre tantas consequências traumáticas, as vítimas de violência são só precisam lidar com inúmeros ferimentos - àqueles que acometem seu corpo, sua alma e sua história - como também devem se preocupar com as infecções sexualmente transmissíveis que podem, ainda, evoluir para quadros de saúde muito graves, como é o caso do câncer de colo do útero.
Não parece coincidência que este tipo de câncer ginecológico é o segundo tipo mais frequente em mulheres que vivem em regiões menos desenvolvidas em todo o mundo. Recortando para o Brasil, são estimados mais de 17 mil casos novos em 2023, o que representa um risco considerado de 13,25 casos a cada 100 mil mulheres.
Este tipo de câncer é também a quarta causa de morte em mulheres em nosso país e o terceiro mais incidente, ficando atrás do câncer de pele não melanoma e do câncer de mama, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA).
O controle abrangente do câncer do colo do útero inclui três pilares protocolares essenciais. O primeiro deles é justamente a prevenção primária, ou seja, a vacinação contra o HPV. Dentre os 12 genótipos oncogênicos descritos, os tipos 16 e 18 são os responsáveis por cerca de 80% dos casos de câncer de colo de útero e por mais da metade dos casos de outros cânceres relacionados ao vírus.
O segundo pilar é a prevenção secundária, que envolve rastreamento e tratamento de lesões pré-cancerosas. É urgente facilitar o acesso da população ao acompanhamento periódico nas unidades de atendimento básico de saúde, seguida de prevenção terciária, que remete ao diagnóstico e tratamento do câncer invasivo.
O câncer de colo do útero se desenvolve de forma lenta, seguindo alguns estágios de evolução, e isso aumenta as chances de ser diagnosticado precocemente o que aumenta, proporcionalmente, as chances de cura. Em muitos casos, inclusive, o quadro pode até ser evitado, seja pela detecção por meio do exame preventivo, o conhecido papanicolau, ou justamente pela vacina contra o HPV.
A medida do Ministério Público vem para somar ao trabalho já realizado em nosso país para o rastreamento e prevenção da doença, que deve envolver educação para a sociedade, conscientização sobre a importância das consultas de rotina e adesão à vacinação. Mas vai além, traz à tona essa dilacerante realidade de muitas mulheres Brasil afora e que exige o nosso olhar atento e políticas públicas voltadas para a segurança e o combate efetivo da violência.
De fato, estamos avançando na matéria. A legislação, que representa um marco no combate à violência contra a mulher no Brasil - a Lei Maria da Penha - completou 17 anos no início deste mês. A lei 11.342 foi sancionada em 2006 e, além de focar em punição aos agressores, dá ênfase na prevenção e proteção às vítimas de modo multidisciplinar - e o setor de Saúde é um foco importante.
Essa abordagem transformou a Lei Maria da Penha em referência no combate à violência contra as mulheres até para outros países. Em 2020, o Projeto de Lei 3855 instituiu o "Agosto Lilás", o mês de proteção à mulher a fim de conscientizar a população pelo fim da violência contra elas. E, agora, esta nota técnica que, mais uma vez, traz holofote para a causa.
Entendo que nós, profissionais de saúde que atuam na linha de frente dos atendimentos às mulheres, devemos assumir o nosso dever de atuar de maneira preventiva e combativa a este cenário. Muitas vezes, somos os primeiros profissionais a ter contato com as vítimas. Precisamos estar atentos a sinais, principalmente àqueles não ditos, como lesões recorrentes, fraturas inexplicadas, ansiedade extrema, depressão ou outros sinais de trauma emocional. Ao suspeitar de violência, podemos fazer perguntas sensíveis de maneira empática para avaliar a situação e oferecer apoio, direcioná-las para o aconselhamento psicológico ou terapia, para ajudá-las a lidar com os efeitos traumáticos da violência.
Sem dúvidas, também é nosso papel registrar cuidadosamente as evidências, como descrições detalhadas, porque nossos pareceres têm efeito jurídico e boa fé importante perante a sociedade. Isso pode ser crucial para futuras investigações e processos legais.
É preciso, ainda, conhecer e saber como acessar os serviços disponíveis na comunidade em que vivem, como abrigos para vítimas de violência doméstica, serviços de apoio jurídico e grupos de apoio psicoterapêutico. Nós podemos encaminhar as vítimas para esses recursos para garantir que elas recebam a ajuda que precisam, com acolhimento e a multidisciplinaridade que o caso exige.
A violência contra as mulheres é um problema multifacetado que requer uma abordagem interdisciplinar, e amplificar a voz das vítimas, valendo-se da nossa posição social para falar sobre o tema, aumenta a conscientização sobre o problema e promove mudanças sociais significativas. Essa causa é de todos nós!
*Marcos Maia é médico ginecologista especialista em Oncologia Ginecológica. Organizador e co-autor do Guia Prático de Saúde da Mulher com participação na elaboração de capítulos sobre Epidemiologia e Saúde Coletiva. Possui especialização em Administração Hospitalar e de Sistemas de Saúde, pela FGV