Em ano de covid-19, dengue não para de fazer vítimas no país
Especialistas temem que covid-19 leve população a se descuidar no combate a outras doenças que assolam o país, especialmente a dengue
Nas ruas da cidade de São Paulo, o trabalho das equipes de zoonoses não para. Enquanto a pandemia do novo coronavírus avança e leva moradores a ficarem em casa, os agentes se protegem como podem durante as visitas a residências em busca de um outro causador de doença: o mosquito Aedes aegypti.
"É claro que estamos com medo, usamos luvas e máscaras quando entramos nas casas. Mas os números da dengue também estão alarmantes", disse a coordenadora de uma das equipes de combate à dengue que prefere não ter o nome citado na reportagem.
O Aedes aegypti, conhecido dos brasileiros, é vetor não apenas da dengue. O mosquito também é capaz de transmitir a humanos doenças como chikungunya e zika.
Considerando-se os boletins divulgados pelos estados, a soma dos casos prováveis de dengue ultrapassa 300 mil, até o começo de março. São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul concentram a maioria deles.
Levando-se em conta os dados mais recentes divulgados pelo Ministério da Saúde para 2020, que disponibiliza notificações recebidas até a segunda semana de fevereiro, os casos de dengue subiram 71% em relação ao mesmo período do ano passado. Foram 32 mortes confirmadas neste ano, o dobro das 16 registradas nas primeiras semanas de 2019. O número total registrado na última temporada de verão, no entanto, deve ser muito maior, pois a chegada do coronavírus ao Brasil pode ter atrasado a divulgação dos boletins epidemiológicos no ministério.
"Estamos em plena estação de dengue", comenta Expedito José de Albuquerque Luna, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). "A notificação deve estar sendo negligenciada nos estados devido à pandemia."
A explosão da dengue no início de 2020 segue a tendência de 2019, quando houve uma alta de 488% em relação ao ano anterior.
"Dengue é uma doença urbana, e o inseto é adaptado a nós, que somos o alimento dele. Em cidades de países subdesenvolvidos, como o Brasil, há muitas pessoas vivendo em situação precária e sem saneamento básico. Por isso é tão difícil acabar com a doença", analisa Luna.
Vigilância e negligência
Apesar da gravidade da pandemia do novo coronavírus e das 25 mortes contabilizadas até a manhã desta segunda-feira (22/03), é urgente não descuidar do combate a doenças transmitidas principalmente pelo Aedes aegypti.
"A dengue está aí há anos. A cada verão se tem uma epidemia. Mas a ação para evitar isso é mais difícil", compara Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz.
Para um combate eficiente, avalia Nascimento, influenciam o estágio da pesquisa científica, tecnologia e dos interesses científico e político em relação à doença. "Quando a dengue surgiu, ela acometia uma população mais pobre, porque o mosquito precisa de água limpa para se reproduzir. E quem tem que acumular água limpa é quem não tem água encanada em casa", pontua a pesquisadora.
Segundo a médica, foi apenas quando a dengue se expandiu para a zona sul do Rio de Janeiro e começou a se manifestar como dengue hemorrágica que houve um interesse maior. "Mas, mesmo assim, não foi um interesse resolutivo", critica.
A corrida pelo desenvolvimento de uma vacina eficiente contra a dengue continua. A única liberada até o momento é do laboratório Sanofi-Aventis. Mas é controversa: não pode ser usada em menores de nove anos e é recomendada apenas para quem já teve dengue uma vez. Um acompanhamento de longo prazo com voluntários que participaram das pesquisas mostrou que a pessoa vacinada que contrai dengue pela primeira vez pode desenvolver uma forma mais grave da doença.
Expedito José de Albuquerque Luna, pesquisador da USP, acompanha um estudo que avalia um grande uso dessa vacina no Paraná em pessoas que já tiveram dengue. Os primeiros resultados devem ser divulgados a partir de maio.
Outros surtos em andamento
Antes da covid-19, a doença respiratória causada pelo novo coronavírus, fazer suas primeiras vítimas no Brasil, a dengue já não era a única doença a assombrar a população. Outra ameaça atual é o sarampo, doença viral grave, especialmente para crianças menores de cinco anos que sofrem com desnutrição e baixa imunidade. A transmissão é parecida com a do coronavírus: ocorre a partir de gotículas de doentes ao espirrar, tossir, falar ou respirar.
Depois de décadas sem circular no Brasil, o sarampo contaminou 19,3 mil e matou 15 no país em 2019, segundo informações reportadas à Organização Mundial da Saúde (OMS). Até o começo de fevereiro deste ano, 338 novos casos foram confirmados no Brasil, com três mortes. Para conter o vírus, a estimativa é que mais de 3 milhões de brasileiros entre 5 e 19 anos, ainda não imunizados, sejam vacinados, informou o Ministério da Saúde.
"A vacina evita que as crianças tenham sarampo. O que é necessário para que a população seja vacinada? Política pública. Os órgãos de saúde precisam ter uma política clara para essa questão", critica Dilene Raimundo do Nascimento, médica e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz.
A volta dos óbitos provocados pelo sarampo, analisa Nascimento, pode ser explicada. "Houve um relaxamento das campanhas de imunização. Então, tivemos a volta do sarampo, que é algo absurdo", lamenta.
A preocupação com contaminação viral se estende à febre amarela, que pode ser combatida com vacina há mais de 80 anos. Desde junho de 2019, 503 pessoas foram infectadas.
Há cinco décadas acompanhando epidemias pelo mundo, o infectologista Hélio Bacha, da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, pontua ainda outros males que assolam a saúde pública.
"A zika, claro, foi uma grande epidemia, mas não havia óbitos. Havia, fundamentalmente, malformação e sequelas graves", pontua Bacha. Desde janeiro, foram notificados 579 casos prováveis de zika no país, segundo dados oficiais. "Por outro lado, os danos para os pacientes que nasceram com microcefalia provocada pelo vírus zika são duradouros, o que é muito triste."