Especialistas criticam foco em vacinas de Índia e Rússia
Governo autorizou compra de Sputnik e Covaxin; solução melhor, dizem cientistas, seria investir nas produções locais de Fiocruz e Butantan
Especialistas criticaram a opção do governo Jair Bolsonaro de investir mais de 2 bilhões para comprar as vacinas Sputnik V e Covaxin, ainda sem aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Sobre a indiana Covaxin, ainda não se sabe nem a taxa de eficácia. A autorização para a compra foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União neste sábado, 20. Os cientistas defenderam investir mais nas produções da Fiocruz e do Instituto Butantan, responsáveis pela produção local dos imunizantes de Oxford e da Coronavac, e também sugerem a negociação de doses excedentes de países desenvolvidos.
Segundo a publicação no Diário Oficial, as aquisições terão custo de R$ 693,6 milhões para o imunizante da Rússia e de R$ 1,614 bilhão a vacina indiana. Fontes do governo afirmam, porém que o pagamento só ocorreria após o aval da agência reguladora. A compra antes do registro na Anvisa, permitida por medida provisória, vem após forte pressão de prefeitos e governadores pela oferta de mais doses, diante da interrupção da campanha de imunização em várias cidades, e de lobby no Congresso e no governo para o uso dos dois produtos.
"O problema não é dinheiro. Discutir sobre preço agora é bobagem. A única saída para o Brasil é apostar na produção da Fiocruz e do Butantan", diz o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, fundador da Anvisa e colunista do Estadão. Segundo ele, a entrega da Sputnik ainda levaria meses. "E seria criminoso trazer a Covaxin sem ter aprovação da Anvisa." Apesar de a Índia ter autorizado o uso emergencial da vacina, os dados de eficácia ainda não foram divulgados. "A vigilância sanitária da Índia é bastante frágil, de terceira. A indústria da Índia tem três mil laboratórios. e no máximo 20 são bons. A Índia aprovar não significa nada." No Congresso, há tentativas de aprovar medidas provisórias que acelerem a liberação de vacinas que já tenham o aval da Índia, da Argentina, dentre outros países. A ofensiva encontra resistência da Anvisa.
A Sputnik V é representada no Brasil pela União Química, um laboratório que não tem experiência na produção de vacinas. A Covaxin será importada pela Precisa Medicamentos. Como revelou o Estadão, a Precisa tem como sócia a Global, uma firma que deve cerca de R$ 20 milhões ao Ministério da Saúde por medicamentos não entregues de uma compra feita pela pasta em 2017, durante a gestão do atual líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR). Em ação de improbidade, o Ministério Público Federal afirma que Barros pressionou funcionários da pasta para favorecer esta empresa em contratos. Ele nega a acusação.
Os especialistas veem como absurda a opção do governo de buscar laboratórios pouco transparentes em vez de tentar outras opções. "Vemos todos os dias a omissão, a inação. E quando alguma ação acontece, está permeada de interesses que estão longe de atender à saúde e às necessidade do povo", dz Ethel Maciel, epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). "Não vemos o movimento de o governo tentar comprar de laboratórios que possuem informações mais claras, como as vacinas da Moderna e da Janssem. Da Pfizer, vimos que perdeu o timing, mesmo a empresa tendo oferecido a compra ao Brasil."
A Pfizer informou em janeiro que ofereceu ao governo brasileiro a possibilidade de comprar um lote de 70 milhões de doses de sua vacina em 15 de agosto, com entrega prevista a partir de dezembro de 2020. Também fez outras duas propostas depois e em nenhuma houve avanço nas tratativas. Já o Ministério da Saúde criticou a proposta da farmacêutica americana e falou em cláusulas "leoninas". O imunizante da Pfizer tem mais de 90% de eficácia.
Situação exige estratégia diplomática do governo, dizem experts
Ethel acredita que o governo federal poderia negociar com países que possuem doses excedentes. "Houve uma reunião recente do G-7, que antes era G-8 e agora está sem o Brasil. A intenção deles é doar as doses que sobrarem para países pobres", diz. "Mas o Brasil não é um país pobre, não precisa de doação. Tem dinheiro para comprar essas doses, poderia ir atrás, negociar. Mas parece que falta competência para isso."
Diretor do Instituto Questão de Ciência, Paulo Almeida concorda e considera uma "medida diplomática obrigatória" o País ter essa atitude. Ele não vê "argumento racional" para dar preferência às vacinas da Rússia e da Índia em detrimento de outras com informações mais transparente. "É uma negociação bem nebulosa, para dizer o mínimo."
Almeida também acredita que as tomadas de decisões erradas do governo federal podem gerar novos movimentos em buscas das doses. "O Sistema Único de Saúde (SUS) e o Programa Nacional de Imunização são muito bons, é preciso deixar claro. Mas existe a possibilidade de outras vias entrarem na negociação, seja pela união dos Estados ou por empresas, pela iniciativa privada indo atrás dessas doses". Nesta sexta, um grupo de 17 governadores disse que vai tentar negociar doses por conta própria.