Febre entre funkeiros, tatuagem com anestesia geral vale o risco?
Médicos explicam como funciona o procedimento anestésico para quem deseja fazer grandes tatuagens sem sentir dor e os riscos para o paciente
O medo da dor que uma agulha de tatuagem pode causar em determinadas áreas do corpo fez com que artistas e anônimos passassem a recorrer a uma solução inusitada: tatuar completamente anestesiado e inconsciente.
O procedimento se popularizou depois que alguns famosos usaram a anestesia geral para fazer ou concluir suas tatuagens. Um dos espaços que oferece o serviço é a Azoto Tattoo, em São Paulo, que já tatua clientes anestesiados desde fevereiro de 2023.
Em entrevista ao Terra, a equipe da clínica explicou como funciona cada etapa do processo de tatuagem com anestesia geral. Para cada procedimento, eles contam com uma equipe de dois médicos anestesistas, um clínico geral, enfermeiro e auxiliar de enfermagem, além dos tatuadores que já desenvolviam seus trabalhos com a empresa.
O anestesiologista Rômulo Navajas explica que a ideia surgiu da percepção de profissionais da área estarem envolvidos em processos que não sejam estritamente cirúrgicos, como os procedimentos estéticos, dermatológicos e sedações para alguns exames diagnósticos.
“Falando sobre tatuagens, a dor sempre foi um entrave existente nesse meio, onde vários trabalhos não são concluídos, ou são terminados de uma maneira que não era a planejada por conta da dor. E o grande diferencial que nós obtivemos nesse grande projeto é que estamos melhorando a qualidade de vida dessas pessoas e realizando sonhos de pessoas que queriam ter tatuagem e não conseguiam decorrente a dor”, diz o profissional.
Vale o risco?
A ética do procedimento gera debate entre a categoria. "Não cabe a mim dizer se a pessoa deve ou não querer fazer uma tatuagem sob anestesia geral. Pessoalmente, eu não recomendaria", opina Rafael Duarte, médico anestesista e CEO da escola RD Medicine. O profissional, no entanto, pondera: "Não tenho substrato suficiente para diferenciar isso de qualquer anestesia para cirurgia plástica puramente estética, como silicone ou lipo, que acontece com extrema frequência por todo o Brasil todos os dias", diz.
"Se alguém pode deitar na mesa de cirurgia para botar um silicone e aumentar os seios, por que alguém não pode deitar na mesa de cirurgia para fazer tatuagem? É uma escolha da pessoa sobre o corpo dela."
Rafael Duarte, médico e CEO da escola RD Medicine
"É um procedimento estético que está baseado na livre escolha da pessoa em fazer a melhoria que ela quiser no corpo dela. Em tese, saúde não é só doença, saúde também é você estar bem com o seu corpo, melhorar sua aparência, sua autoestima. Para muitas pessoas, a escolha de fazer tatuagem é baseada nisso", explica Duarte.
No entanto, o médico reforça a importância de uma avaliação prévia da condição de saúde da pessoa que vai tomar uma anestesia geral. "Na maioria das vezes o paciente que faz tatuagem é um paciente jovem e de baixo risco, mas é importante que ele seja avaliado para doenças cardíacas e pulmonares prévias, para que evite complicações diante de um procedimento que tem que ser simples, rápido e sem nenhuma complicação ou sequela para o paciente."
Cuidados antes do procedimento
O anestesiologista Marcus Vinicius, que faz parte da equipe da Azoto Tattoo, explica que na clínica essa avaliação é realizada antes de fazer o procedimento. Nessa consulta os especialistas colhem dados que podem interferir ou aumentar os riscos da anestesia como:
- Doenças pré-existentes;
- Histórico de doenças;
- Controle de doenças existentes;
- Alergias;
- Uso de medicações.
Sobre a documentação necessária para realizar o procedimento, o técnico de enfermagem Dominique Eduardo conta que são exigidos exames de sangue, eletrocardiograma e termo de consentimento. "Só assim o médico anestesista vai avaliar se aquele cliente é apto para a tatuagem."
Fernando Ueno, quem também é anestesiologista na clínica, diz que a anestesia não dói. O paciente pode apenas sentir um breve incômodo durante a obtenção de um acesso venoso. “O restante do procedimento anestésico é indolor, e após o término da sessão o cliente não sente dor nas primeiras 24 a 48 horas”, garante o especialista.
Ambiente cirúrgico
Os enfermeiros são responsáveis por preparar o ambiente cirúrgico, verificando o funcionamento dos equipamentos, a esterilização dos instrumentos, materiais e as condições gerais da sala. "É essencial que tudo esteja impecável para minimizar os riscos de infecções e complicações."
Durante o procedimento, a equipe desempenha o papel de auxiliar os profissionais, fornecendo os instrumentos necessários, monitorando os sinais vitais da pessoa que será tatuada e sua posição na maca para evitar possíveis lesões musculares ou articulares.
Após o procedimento, os profissionais também monitoram de perto o paciente em recuperação. Eles administram medicamentos, verificam os sinais vitais e observam quaisquer complicações que possam surgir.
Quais os riscos?
Os riscos no centro cirúrgico são variados e podem envolver complicações médicas, infecções ou erros humanos. Os profissionais destacam:
Condições pré-existentes
Pessoas com deformidade das vias aéreas podem gerar dificuldades para os profissionais entubarem o paciente caso seja necessário. Naqueles que não abrem bem a boca, pode acontecer de não conseguir passar a máscara laringea e ter que entubar. Há risco também para pacientes obesos, com o pescoço mais largo, com dentes proeminentes e pessoas retrognatas, que tem a mandíbula muito para trás, e são classificados como via aérea difícil.
Broncoaspiração
É essencial que o paciente faça um jejum de pelo menos 6 horas antes da anestesia geral para que o estômago fique vazio e diminua o risco de aspiração. A pessoa sedada perde o reflexo de se proteger contra refluxos do conteúdo gástrico, que pode ser aspirado para o pulmão causando consequências severas de redução de oxigênio por conta de secreção gástrica no pulmão.
Infecções
A principal preocupação é a prevenção de infecções. A equipe de enfermagem se empenha em garantir a esterilização adequada, o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e a observância rigorosa das práticas de higiene, visando minimizar o risco de infecções.
Erros de processos
A equipe de enfermagem desempenha um papel importante na prevenção de erros de processos, como procedimentos realizados no paciente ou local errado, atuando como uma camada adicional de verificação.
Reações Adversas
Os enfermeiros monitoram o paciente durante todo o procedimento e, caso haja reações adversas à anestesia ou outros medicamentos, tomar medidas imediatas nos limites de suas responsabilidades.
Complicações pós-procedimento
Após o procedimento, a equipe de enfermagem junto a equipe médica realiza uma vigilância contínua no paciente, visando detectar possíveis complicações o mais cedo possível, garantindo intervenções rápidas caso necessário.
Quanto custa?
Quanto ao valor cobrado pela clínica, os profissionais dizem que o preço é calculado de acordo com o tamanho do trabalho, região do corpo a ser tatuada, tempo que vai ser gasto para realização e complexidade da arte.
Quem já fez?
Artistas como Mc Cabelinho, Mc Brisola e Vulgo FK já passaram pelo procedimento com a equipe. Os anestesistas destacam o procedimento de um rapaz que se arrependeu de uma tatuagem que tinha há 20 e não conseguia ficar sem camisa em público por causa disso.
“Após 2 tentativas em estúdios sem anestesia ou com pomada apenas, ele não conseguiu realizar a cobertura decorrente da sensibilidade à dor. Após a realização da tatuagem com anestesia na Azoto Tattoo, ele conseguiu fazer a tatuagem, sem dor, com melhor cicatrização e se emocionou demais após a realização pois realizamos um sonho que ele tinha de poder tirar a camiseta sem vergonha da tatuagem antiga, ou seja, podemos sim melhorar a qualidade de vida das pessoas”, lembram os profissionais.
Outras críticas
Em 2023, com a popularização da técnica entre tatuadores, a Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) desaconselhou qualquer tipo de anestesia para tatuagem. “Reiteramos que a segurança da anestesia está relacionada a ser administrada por um profissional médico com especialização em anestesiologia”, disse a entidade.
Ronaldo Silva, anestesiologista do Hospital AC Camargo, ressaltou em entrevista a Sociedade de Anestesiologia de São Paulo (SAESP), que além das normas exigidas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e CFM (Conselho Federal de Medicina), o anestesiologista precisa ter em mente questões éticas.
“É importante discutir a necessidade da anestesia com o paciente e com o tatuador, para que não se cometam atrocidades, como por exemplo, realizar uma anestesia geral para tatuar uma simples palavra ou um desenho pequeno. Isto parece, pra mim, ser pouco ético”, disse o profissional.
Para pessoas que já têm tatuagens, o médico comenta que existe uma discussão sobre a segurança da realização de bloqueios de neuroeixo ou regionais nas áreas já desenhadas.
Em sua tese de doutorado, o anestesiologista realizou testes em coelhos e observou que há inflamação das meninges e até mesmo áreas de aracnoidite adesiva nos animais nos quais os pesquisadores fizeram tatuagem lombar e realizaram raquianestesia.
Ronaldo conta que existem relatos também na literatura de lesões nervosas periféricas em indivíduos nos quais foi realizado um bloqueio regional através da tatuagem, o que sugere uma possível relação do pigmento com estes eventos.
“O princípio da precaução nos sugere, então, que devemos evitar a realização de anestesia em áreas tatuadas, e em algumas situações, por exemplo, mulheres grávidas que serão submetidas a anestesia regional, a utilização de guias para evitar que a agulha de bloqueio cruze a tatuagem. Mais trabalhos são necessários para nos ajudar a melhorar os índices de Segurança do Paciente com tatuagem”, afirma o especialista.
Os médicos da Azoto contam que receberam muitas críticas no início do projeto, mas sempre responderam todas as dúvidas em relação ao assunto e respeitam as opiniões de quem não concorda com o procedimento.
“Todo mundo tem o direito de não sentir dor. Prezamos por fazer um atendimento humanizado e com segurança. O grande medo que as pessoas têm é a falta de informação e estamos aqui para desmistificar esse conceito e atender da melhor maneira nossos clientes”, afirma a equipe médica da Azoto.