Governo negocia compra de testes com fornecedores duvidosos
Processo só deve ser concluído na próxima semana e corre em sigilo
BRASÍLIA - O Ministério da Saúde negocia compra de testes rápidos que pode alcançar R$ 1 bilhão, sem licitação, com laboratórios que já tiveram lotes de exames e até parte de sua estrutura interditados por "resultados insatisfatórios" para a detecção da covid-19 e de outras doenças
A pasta lançou em 20 de abril um chamado para receber ofertas para a compra de 12 milhões dos testes. O processo só deve ser concluído na próxima semana e corre em sigilo, mas documentos sobre o andamento da compra foram entregues à reportagem por fontes que acompanham a negociação. O ministério recebeu 71 propostas. Apenas 15 seguem na disputa, pois cumprem com requisitos como oferecer produto registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A negociação do Ministério da Saúde é um dos pilares da estratégia de testagem do governo federal e representa mais da metade do total (22 milhões) de exames rápidos que o ministério deseja distribuir.
O ministério prevê receber os 12 milhões de testes em 5 parcelas, que serão cumpridas de 20 a 90 dias após a assinatura do contrato. Mais de uma empresa pode vencer a concorrência. A ideia é que a soma das ofertas alcance o total de unidades pedidas no edital.
A melhor oferta é da Sallus, de R$ 52,82 por unidade do produto. A empresa é uma das poucas, entre as classificadas, que promete entregar todos os 12 milhões de testes: o negócio totaliza R$ 633,84 milhões. A microempresa não tem histórico de negócios com o setor público. O produto oferecido pela Sallus foi registrado pela Biocon, de Belo Horizonte (MG). Pelas regras da Anvisa, a detentora do registro fica responsável pela qualidade do produto no Brasil. Procurada, a Biocon não respondeu se autorizou a Sallus a vender o seu produto. A reportagem não conseguiu contato com a Sallus.
Segunda colocada na disputa, a Bahiafarma promete entregar 2,4 milhões de testes a R$ 59 por unidade. No total, a proposta é de R$ 141,6 milhões. A Anvisa fez uma interdição cautelar, em 2019, na linha de produção da Bahiafarma de testes rápidos para dengue, zika e chikungunya, após uma análise encontrar "resultados insatisfatórios" sobre "especificidade e sensibilidade" dos produtos. A agência também determinou o recolhimento dos exames, além da suspensão da fabricação e comercialização pela Bahiafarma. O governo federal pagou cerca de R$ 120 milhões pelos testes do laboratório em 2016 e R$ 160 milhões em 2017.
Após a Sallus e a Bahiafarma, a Eco Diagnóstica apresenta o melhor preço: R$ 88 por unidade. A oferta é de entrega de 2 milhões de testes, por R$ 176 milhões.
A quarta colocada na disputa é a Medlevensohn, que propõe a venda de 1 milhão de testes por R$ 88,6 por unidade. A Anvisa fez uma "interdição cautelar" no último dia 11 sobre um lote do mesmo teste por "resultado insatisfatório no ensaio de sensibilidade". A medida ocorre por no máximo 90 dias, enquanto são feitas análises nos produtos.
Baseado na legislação aprovada para enfrentar a pandemia, os governos têm feito compras emergenciais, sem licitação. O Ministério da Saúde teve problemas com um contrato de mais de R$ 1 bilhão para entrega de 15 mil respiradores. A empresa de Macau, território da China, representada por outra com sede em Brasília, pediu parte do pagamento em uma conta da Suíça. O ministério desistiu do negócio e sequer chegou a desembolsar o valor do contrato, mas o imbróglio atrasou a distribuição do produto no País -- hoje o governo conta apenas com a produção nacional.
Teste rápido
Segundo autoridades que acompanham discussões sobre a covid-19, há forte pressão do Palácio do Planalto sobre o Ministério da Saúde para compra de kits de diagnóstico em massa.
O governo promete entregar cerca de 46,2 milhões de testes durante a covid, sendo 22 milhões do tipo "rápido". O restante é molecular (RT-PCR). Até agora, porém, foram distribuídos ape
nas 5,35 milhões de exames rápidos (24% do total), todos doados por empresas ao governo, e 3 milhões de testes RT-PCR (12,4% do total).
O teste rápido detecta anticorpos ao novo coronavírus. A qualidade do produto é alvo de críticas de autoridades de saúde. Uma análise do Ministério da Saúde, revelada pelo Estadão, aponta 75% de chance de erro em exames negativos de testes doados pela mineradora Vale ao governo, caso sejam aplicados em dias errados.
Como é necessária uma reação do corpo ao vírus para criar anticorpos, o teste rápido só deve ser aplicado após o sétimo dia de sintomas da covid-19. Segundo especialistas, o produto serve como ferramenta de auxílio para o diagnóstico, mas não confirma ou descarta a doença. Outra utilidade é usar o dispositivo para pesquisas epidemiológicas, aplicando em público controlado para saber, por exemplo, qual o percentual de pessoas que já foram infectadas -- e podem estar imunes à doença -- em determinada área.
Para exames de diagnóstico, autoridades de saúde recomendam o teste do tipo RT-PCR, que detecta o RNA do vírus a partir de amostras dos pacientes coletadas principalmente da nasofaringe com o "swab", uma espécie de cotonete. O exame, porém, é mais caro e demorado.
Outro lado
A Bahiafarma afirma que ainda não foi julgado o recurso administrativo sobre a interdição de seus testes rápidos para arbovirores (dengue, zika e chikungunya). "Ademais, em que pese a interdição citada, em revisão literária internacional realizada recentemente e apresentada à Anvisa, os testes rápidos de diagnóstico de arboviroses da Bahiafarma foram os que apresentaram as melhores performances entre os disponíveis no País", diz o laboratório público.
O Ministério da Saúde afirma que não há impedimento legal para microempresas e distribuidoras participarem do edital. A pasta também diz submeterá os testes comprados à análise do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS).
A Anvisa disse que a interdição de testes rápidos da Bahiafarma não impede o registro de produto do mesmo tipo, mas para a covid-19, pois a fabricante do produto não está sob questionamentos. "A fabricante Genbody Inc/Coréia, que é o fabricante do kit COVID, não foi elencada em nossas investigações como causa raiz dos problemas relacionados aos kits de arboviroses".
A MedLevensohn afirma que a interdição cautelar feita pela Anvisa é temporária e está "sub judice". A empresa alega que havia um erro na análise feita pelo INCQS sobre as amostras do lote. "O INCQS já fez a retificação do equívoco e a enviou à Anvisa, que diligentemente remeteu carta às Vigilâncias Sanitárias locais."