Script = https://s1.trrsf.com/update-1731943257/fe/zaz-ui-t360/_js/transition.min.js
PUBLICIDADE

Maconha liberada pelo STF? Entenda novo critério para diferenciar usuário e traficante

Após descriminalizar o porte da droga, Corte definiu limite de 40g ou seis plantas fêmeas para caracterizar uso pessoal. Julgamento não tratou da venda de drogas, que continua sendo ilegal no país.

20 jun 2024 - 13h18
(atualizado em 27/6/2024 às 08h39)
Compartilhar
Exibir comentários
Mão enrolando cigarro de maconha
Mão enrolando cigarro de maconha
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF) detalhou na quarta-feira (26/6) os impactos da descriminalização do porte de maconha para consumo, aprovado pela maioria da Corte.

Com a decisão, portar a droga passa a ser um ilícito administrativo. Segundo a Corte, o usuário não poderá mais ser submetido a um processo penal, nem terá um registro na sua ficha criminal.

Também não haverá mais a possibilidade de ser submetido à pena de prestação de serviços à comunidade.

Por outro lado, o STF manteve a possibilidade de aplicação de medidas educativas, como o comparecimento a um curso preventivo sobre consumo de drogas. Além disso, a polícia deverá apreender a droga.

O julgamento não tratou da venda de drogas, que continua sendo ilegal no país.

Mas o STF decidiu estabelecer parâmetros para diferenciar usuários e traficantes, com objetivo de padronizar a atuação das polícias no país e evitar que pessoas com a mesma quantidade de drogas sejam tratadas de forma diferente.

A Corte estabeleceu que, até que o Congresso aprove uma lei sobre o tema, o parâmetro para diferenciar uso pessoal de tráfico será a quantidade de 40 gramas de cannabis sativa ou a posse de seis plantas fêmeas.

Isso significa que uma pessoa identificada pela polícia portando até 40 gramas não poderá ser enquadrada como traficante, a não ser que existam outros elementos além da presença da droga que apontem para esse crime, como posse de arma, caderno com anotações sobre vendas ou balança para pesar a substância.

A partir de diferentes abordagens jurídicas, oito ministros se manifestaram pela descriminalização: Gilmar Mendes (relator da ação), Luís Roberto Barroso (atual presidente do STF), Rosa Weber (já aposentada), Edson Fachin, Alexandre de Moares, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Luiz Fux.

Outros três ministros — Cristiano Zanin, André Mendonça e Kassio Nunes Marques — entenderam que criminalização do porte de drogas para consumo é constitucional, ou seja, deveria continuar em vigor.

O julgamento, iniciado em 2015 e diversas vezes interrompido por pedidos de vista, não analisou a legalidade da venda de drogas, que continuará proibida independentemente do resultado.

O principal impacto para o usuário da descriminalização é que ele não terá mais um registro em sua ficha criminal caso seja identificado pela polícia portando maconha.

O porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006, com a sanção da atual Lei de Drogas.

O usuário, porém, ainda podia ser submetido a outras penas, como prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Já a decisão de estabelecer parâmetros foi adotada para evitar que pessoas com a mesma quantidade de maconha sejam tratadas de forma diferente pela polícia ou a Justiça, defenderam ministros favoráveis à medida.

"Na falta de critério, a mesma quantidade de drogas nos bairros mais elegantes das cidades brasileiras é tratada como consumo e, na periferia, é tratada como tráfico. O que nós queremos é acabar com essa discriminação entre ricos e pobres, basicamente entre brancos e negros", disse Barroso.

Segundo levantamento citado por Moares, a partir do volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo entre 2006 e 2017, alguém negro, analfabeto, de 18 anos de idade costuma ser enquadrado como traficante ao portar apenas 20 gramas de maconha. Já uma pessoa branca, com curso superior, na faixa de 30 anos só costuma ser enquadrada como traficante quando porta 60 gramas.

Os ministros ressaltaram em seus votos, porém, que eventuais parâmetros a serem adotados serviriam como uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda enquadrá-lo como traficante, mesmo que tenha quantidade menor.

Isso dependeria de outros elementos que corroborem para o crime de tráfico, como apreensão de armas ou balança para pesar drogas, por exemplo.

"Está havendo uma deturpação dos votos e da discussão no Supremo Tribunal Federal. É muito fácil deturpar as informações aqui trazidas a fim de tentar jogar a sociedade contra o Poder Judiciário, dizendo que vão fixar 20 gramas ou 60 gramas, e aí o traficante formiguinha vai lá na boca de fumo e vende três gramas, quatro gramas. Ninguém está dizendo aqui que não será tráfico se, além da gramatura, outros elementos existirem", ressaltou Moraes, na sessão desta quinta-feira (20/6).

Nunes Marques, por sua vez, minimizou a importância de estabelecer parâmetros que diferenciem traficantes e usuários e criticou a possibilidade de descriminalização pelo STF.

"A grande preocupação da maioria das famílias brasileiras não é se o filho vai preso ou não, a preocupação é que a droga não entre na sua residência. E, para isso, ela [a criminalização] tem hoje o fator inibitório", argumentou Nunes Marques.

"[A criminalização do porte] traz um instrumento de defesa da família pobre brasileira, onde ela diz: 'meu filho, não faça isso porque é crime'", continuou.

O tema em análise pelo STF divide a sociedade. Defensores da liberação do porte de pequenas quantidades para uso pessoal dizem que a criminalização fere princípios constitucionais como o direito à privacidade de cada indivíduo.

Também argumentam que a criminalização não produziu resultados na redução do consumo e do tráfico e que seria mais adequado adotar políticas públicas de prevenção, como no caso do uso de cigarros.

Por outro lado, críticos da descriminalização acreditam que a medida aumentaria ainda mais consumo e tráfico e argumentam que o direito individual não deveria ser colocado acima da saúde pública.

Há questionamentos também sobre se o STF deveria decidir sobre a questão ou se apenas o Congresso poderia liberar o porte para consumo, aprovando uma mudança na lei atual.

"Nós estamos passando por cima do legislador caso a votação prevaleça com essa votação que está estabelecida. O legislador definiu que portar drogas é crime. Transformar isso em ilícito administrativo é ultrapassar a vontade do legislador", criticou André Mendonça.

A possibilidade do Supremo liberar o porte de drogas para consumo já provocou uma reação no Parlamento.

Em abril deste ano, o Senado aprovou a chamada PEC das Drogas, proposta de emenda à Constituição que determina que é crime possuir ou portar qualquer quantidade de droga, mesmo que para consumo próprio. O texto ainda será analisado na Câmara dos Deputados.

A criminalização do porte e da posse, mesmo para consumo próprio, é hoje prevista na Lei de Drogas de 2006, que está em vigor. O Código Penal também prevê crimes sobre o tema.

Mas não é algo determinado na Constituição Federal. A intenção da PEC é incluir a regra no texto constitucional, tornando-a superior a uma lei.

Isso, na prática, reverteria uma eventual liberação do porte para consumo pelo STF neste julgamento.

O que estava em julgamento pelo STF

O STF analisou um recurso extraordinário com repercussão geral, ou seja, a decisão valerá para todos os casos semelhantes.

O recurso questionava se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional.

Esse artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo pessoal, assim como cultivar plantas com essa finalidade.

Não há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são "advertência sobre os efeitos das drogas", "prestação de serviços à comunidade" e/ou "medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo".

O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu flagrado com três gramas de maconha na prisão e condenado a prestar serviços comunitários.

A Defensoria argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo), garantidos pela Constituição Federal.

"Por ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão", argumentou o defensor Rafael Muneratt, no início do julgamento no STF.

"Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias entorpecentes."

Já o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização.

"O tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção social", disse Rosa.

Para a Federação Amor-Exigente (AE), que presta apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, o direito individual do usuário não justifica a descriminalização.

A organização foi aceita pelo STF para atuar no julgamento como amicus curiae, colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso, mas que não está vinculado diretamente ao resultado.

"A saúde pública vem em primeiro lugar. A pessoa que está usando o crack, chega em determinado momento que ela não tem discernimento para decidir o que é bom e ruim. A pessoa que usa o crack pode matar por causa de R$ 10", disse à BBC News Brasil o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente.

"É nesse sentido que esse direito (individual do usuário) não pode se contrapor à saúde pública e à tutela de toda a coletividade."

Para o advogado Pierpaolo Bottini, que representa a Viva Rio, amicus curiae favorável à descriminalização, a descriminalização do porte não aumentaria o consumo.

"Não estamos falando em autorizar o uso, mas simplesmente não criminalizar. Essa ação é até modesta nesse sentido, muito mais modesta do que tem acontecido nos outros países, que estão autorizando o uso de certas drogas", disse Bottini, citando o aumento da legalização em estados americanos.

Outro ponto em discussão era se a Corte iria fixar uma quantidade para diferenciar objetivamente o que é o porte para consumo ou para tráfico.

Defensores da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF) e integrantes da Procuradoria-Geral da República, dizem que a definição de parâmetros pode evitar que consumidores sejam enquadrados como traficantes indevidamente, reduzindo o grande número de presos no país.

No entanto, há organizações que participaram do processo que duvidam deste efeito porque discordam da avaliação de que pessoas estejam sendo presas por tráfico equivocadamente.

Há mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por tráfico de drogas.

No entanto, nenhuma decisão do Supremo levaria a uma liberação automática de presos, explica a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen à BBC News Brasil.

Cada pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas e potencialmente impactada pelo julgamento, ressalta, teria que apresentar um recurso à Justiça solicitando a revisão de sua pena.

O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006
O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Por que julgamento se alongou por anos?

Além dos vários pedidos de vistas que interromperam o julgamento, o caso também ficou alguns anos sem ser pautado pelo STF durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

A ação foi retomada em 2023 e interrompida pelo pedido de vista de Toffoli, que apresentou seu voto no dia 20 de junho .

Para juristas que acompanham o tema, a Corte demorou a retomar o julgamento para evitar mais tensão com o governo anterior, que era fortemente contra qualquer flexibilização nesse tema.

Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não tenha uma postura abertamente favorável à descriminalização, integrantes do seu governo, como o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, defendem a medida com o objetivo de reduzir o grande número de pessoas presas no país.

"Temos que tratar isso como uma questão de saúde pública, como uma questão que não se resolve por meio do encarceramento, com prisão e com punição", disse Almeida, em entrevista à BBC News Brasil.

Com a demora em julgar, houve mudança na composição da Corte, que se tornou mais conservadora com a entrada de dois ministros indicados por Bolsonaro: Kassio Nunes Marques e André Mendonça.

Além disso, Cristiano Zanin, indicado por Lula em 2023, também se posicionou contra a descriminalização do porte para consumo.

Lula também indicou no final de 2023 o ministro Flavio Dino. Dino não se manifestou no mérito principal dessa ação, porque ele entrou na vaga da ministra Rosa Weber, que já havia votado.

BBC News Brasil BBC News Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização escrita da BBC News Brasil.
Compartilhar
Publicidade
Seu Terra












Publicidade