No Dia Mundial das Doenças Raras, os direitos das famílias e dos pacientes
A data mais rara do calendário tem um sentido nobre: 29 de fevereiro é o dia escolhido para conscientizar a sociedade sobre doenças raras
Comemorado sempre no último dia de fevereiro, o Dia Mundial das Doenças Raras não poderia ser mais significativo neste 2024, ano bissexto, o único diferente dos outros. Acontece a cada quatro anos e dura 366 dias, diferente dos demais.
A escolha pelo dia bissexto foca em realmente chamar a atenção para as diferenças. É para compartilhar a informação de que 300 milhões de pessoas no mundo, sendo 13 milhões de brasileiros, vivem com pelo menos uma das 7 mil patologias raras já documentadas.
E informação, para esta enorme população, faz toda a diferença: 75% das doenças raras surgem na infância, onde a corrida contra o tempo para um diagnóstico correto e precoce significa mais qualidade de vida. A conscientização foca não só no público leigo, mas também na comunidade médica e nos próprios pacientes e suas famílias, para que se informem sobre seus direitos.
A data é mundial desde 2008, criada pela European Organisation for Rare Diseases, com atos marcantes em diversos países, inclusive centenas de edificações iluminadas com as quatro cores que simbolizam a causa.
A tradição começou em 2019, quando o Empire State Building, em Nova York, foi iluminado de rosa, verde, azul e roxo. Nas redes sociais, a hashtag #LightUpForRare concentra as iniciativas mundo afora. No Brasil, o dia das doenças raras foi instituído pela lei nº 13.693, de 2018. Diversas cidades se mobilizam para trazer eventos temáticos.
Além do quarteto de cores, existe outro símbolo para identificar as doenças raras: as listras em preto e branco. Remetem ao padrão da zebra, o mascote eleito para sensibilizar especificamente os profissionais da área da saúde.
“Na faculdade de Medicina, quando ensinados sobre diagnósticos diferenciais, os alunos muitas vezes aprendem: ‘se você ouvir batidas de cascos, pense em cavalos, não em zebras’, explica Rebecca Aune, diretora de programas educacionais da Organização Nacional para Doenças Raras (NORD). Dito de outra forma, os futuros médicos são orientados a pensar na condição mais comum, e não na rara.
Assim, várias organizações aproveitam o dia de hoje para tentar mudar este pensamento, destacando as “condições da zebra”, e não a dos cavalos. “Mostre suas listras” é o slogan da campanha internacional, que incentiva pessoas com doenças raras a postarem fotos vestindo camisetas listradas, ampliando o alcance da informação.
Ampliar o alcance da informação é a missão de vida do australiano Andrew Bannister, 32 anos. Em 2020, outro ano bissexto, ele viajou com a família por 35 localidades de seu país e do mundo para divulgar o Dia Mundial das Doenças Raras. No ano passado, em contagem regressiva para a data de 2024, repetiu a façanha, vindo para a América Latina, passeando pelo Brasil até chegar à cidade do fim do mundo, a argentina Ushuaia. Encontramos Andrew e sua mãe, Anne, em Porto Alegre, na Casa dos Raros, com o cartaz que atravessou o oceano em prol da causa.
Eventos pelo Dia Mundial das Doenças Raras
- Em Porto Alegre, no dia 29/2, a Casa dos Raros terá programação aberta ao público: das 9h às 15h, recebe pacientes, familiares, voluntários, associações de pacientes e interessados nos serviços. Inscrições gratuitas neste link.
- Em Brasília, dia 29/2, ocorre o Mutirão da Saúde Rara, das 8h às 17h, na Galeria Central do metrô da rodoviária Plano Piloto, com acolhimento de pacientes e familiares e atendimento de saúde à comunidade. O evento da Amaviraras é aberto e gratuito.
- Em Curitiba, neste dia 29/2, às 21h, haverá exibição inédita do documentário “Undiagnosed – the future of medicine” (Sem diagnóstico – o futuro da medicina), promoção da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica. Inscrições gratuitas neste link.
- No Rio de Janeiro, às 9h30min desta quinta-feira (29/2), no plenário do Palácio Tiradentes, será realizado o evento A Vez e a Voz dos Raros, da Frente Parlamentar de Doenças Raras, com homenagens, vídeos e conversas. Entrada gratuita.
- Em São Paulo, a Casa Hunter promove no dia 6 de março rodas de debate sobre Triagem Neonatal & Doenças Raras, com participação de profissionais da saúde, sociedades médicas, estudantes, pacientes e associações. Inscrições gratuitas neste link.
Andrew nasceu com três doenças cerebrais raras, diagnosticadas apenas quando tinha 17 anos: heterotopia nodular periventricular (PVNH) com polimicrogiria sobreposta (subtipo posterior) e hipoplasia cerebelar. Até os 3 anos de idade, não caminhava, e só começou a falar aos 6. Até os 15 anos, já havia realizado mais de 20 cirurgias. Nada disso o impediu de seguir sua grande paixão: esportes. Já recebeu vários títulos australianos de paraciclismo e usa sua história para inspirar outras famílias, além de ser um dos organizadores das iluminações que citamos antes.
“Se eu não tivesse um objetivo, estaria completamente perdido”, afirma.
Desafios para quem precisa de decisão judicial no Brasil
O acesso à informação caminha lado a lado com o acesso aos tratamentos adequados. É por isso que o dia de hoje também existe para conscientizar os próprios pacientes sobre seus direitos. Não é raro que pessoas com doenças raras precisem buscar na Justiça o acesso a estes direitos.
Importante saber que está em tramitação o Estatuto da Pessoa com Doença Rara, aprovado na Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, mas que ainda será analisado por outras duas comissões. Pela redação atual, pessoas com doenças raras terão os mesmos direitos previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência, o que é uma ótima notícia para trazer esperança.
Enquanto isso não acontece, os direitos devem ser buscados caso a caso. Um exemplo que contamos na reportagem sobre AME (atrofia muscular espinhal): por conta das terapias domiciliares para cuidar do filho pequeno, a assistente social Mônica dos Reis, servidora pública, conseguiu direito ao trabalho em home office e redução da carga horária.
0800 para receber orientações médicas, jurídicas e psicológicas
Chegou até aqui procurando informações? Salve estes contatos: a Linha Rara é uma plataforma que oferece orientações a famílias e pacientes com doenças raras. A ligação é gratuita para o número 0800 006 7868 e também por e-mail (linharara@vidasraras.org.br). O objetivo é dar suporte aos pacientes escutar e orientar quem precisa de ajuda diante de um diagnóstico difícil ou da falta dele, além de orientação para serviços especializados, como os caminhos para receber atendimentos de outras áreas, como jurídico e psicológico. O serviço é uma parceria do Instituto Vidas Raras com o Instituto da Criança, da Faculdade de Medicina da USP.
Para garantir a melhor qualidade de vida possível às crianças, as famílias acabam tendo que buscar, ao mesmo tempo, tanto a assistência médica especializada quanto a assistência jurídica. Após o diagnóstico, muitas vezes descobrem que os remédios não fazem parte da lista do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto outros ainda não aprovados no Brasil.
Em ambos os casos, é possível ajuizar a demanda, como explica Raul Canal, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem).
“Existe o princípio de que a dor não pode esperar. E de que nenhuma vida é mais importante que a outra, pois a saúde é direito de todos. Em um processo bem conduzido, a chance de conseguir é muito alta. Não é uma garantia, mas o Judiciário tem sido progressista e aberto quanto a isso”, explica o advogado, que desde 1994 atua na área do Direito Médico e da Saúde.
Mesmo quem não tem casos de doenças na família pode imaginar que o processo todo não é rápido e fácil. Ou seja, não bastasse todo o sofrimento pela doença em si, ainda existe a angústia pela morosidade da justiça. E como cada dia da infância conta muito, a expectativa é ainda maior.
O presidente da Anadem aponta dois grandes desafios atualmente que impedem as ações de serem mais ágeis. A primeira diz respeito a varas específicas. Em 2016, na presidência do ministro Ricardo Lewandowski no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), foi publicada a Resolução n.º 238/2016 determinando a criação de varas especializadas em demandas da saúde onde houvessem Tribunais de Justiça e Regionais Federais.
“Pouco avançou até hoje. A vara especializada permitiria que o juiz estudasse os casos mais a fundo, tendo médicos forenses, biólogos forenses, dentistas forenses, enfim, profissionais especializados para assessorá-lo”, comenta Canal, o que também iria colaborar para decisões mais satisfatórias.
O segundo entrave é o déficit de juristas (tanto advogados quanto defensores públicos) especializados na área. Assim como contamos na primeira reportagem desta série que há somente 354 médicos geneticistas registrados no Conselho Federal de Medicina (CFM), por uma triste coincidência não é muito maior do que isso o número de profissionais do Direito especializados em Saúde. Há cerca de 300 advogados e defensores brasileiros cadastrados na Associación Latinoamericana de Derecho Medico (Asolademe), também presidida por Raul Canal.
Seis anos de espera pelo medicamento para a visão das filhas
Quem acaba se tornando especialista não só na patologia de seus filhos como também no “juridiquês” são os próprios pais e mães. Na semana em que conversamos com Helaine Fonseca, a dona de casa trouxe ao mesmo tempo detalhes sobre Amaurose Congênita de Leber e vocabulário jurídico como tutela de urgência e agravo de instrumento. A doença ultra-rara que acomete suas duas filhas é uma degeneração na retina, provocada por mutações no Gene RPE65, e causa perda progressiva e irreversível da visão.
A história de Helaine é representativa dos desafios do sistema judiciário nos casos de doenças raras. Em 2018 teve início a luta judicial da família, residente em Patos de Minas (MG), em busca da medicação de última geração para o caso das meninas Isabella e Laura.
A terapia gênica chamada Luxturna é indicada para pacientes com perda de visão decorrente de distrofia hereditária da retina. O custo é altíssimo: R$ 2 milhões a dose para cada olho. Quanto mais cedo for realizada a aplicação do voretigeno neparvoveque (uma injeção feita por cirurgia ocular), mais rápido se impede a progressão da doença.
Na época, só existia tratamento nos Estados Unidos e na Europa. A família comemorou ao conseguir uma liminar em 2019, quando o juiz estadual determinou que a União arcasse com toda a despesa do tratamento das meninas, com o imediato fornecimento da medicação e sua aplicação. Quando a ação chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020, a decisão foi suspensa.
“Enquanto isso, a doença ainda segue progredindo”, conta Helaine, detalhando as recentes movimentações no processo. Em 2023, novo julgamento para um agravo de instrumento, com três votos a favor e um contrário, por parte dos desembargadores do TRF6 em Belo Horizonte. Desde então, a família aguarda a execução da decisão.
“Há vários obstáculos, inclusive para compra da medicação; são inúmeras exigências que o laboratório exige para disponibilizar a medicação. A luta é muito grande, mas não posso desistir e acredito que muito em breve minhas filhas estarão sendo tratadas”, conta Helaine.
Judicialização como alternativa para receber o tratamento adequado
Processos judiciais em nome de crianças com doenças raras são a maioria dos casos conduzidos pela advogada Viviane Guimarães, em Pernambuco. Com uma primeira formação em Fonoaudiologia, a hoje especialista em Direito da Saúde, Médico, Biodireito e da Pessoa com Deficiência passou a se dedicar exclusivamente à área na época do aumento de bebês com Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus Zika em Recife. À época, atuava como voluntária em associações de pacientes.
Ações envolvendo crianças com doenças neuromusculares e autismo, além das batalhas judiciais por medicamentos de altíssimo custo, são sempre priorizadas quando surgem no escritório, em regime de urgência. “São demandas em que não podemos perder tempo, pois perder tempo impacta diretamente na saúde da criança”, explica Viviane.
Há dois caminhos em situações assim: acionar o plano de saúde da família (que tramita em âmbito estadual) ou o SUS, em um processo federal, cada um com seu regramento jurídico diferente e tempos de resolução distintos. Ou ambos ao mesmo tempo, dependendo do tipo de caso de cada criança. Via de regra, as ações contra planos de saúde são mais rápidas; já os prazos na esfera pública são mais longos e burocráticos, portanto, demorados para darem retorno.
“Ainda assim, é preciso buscar os direitos. Sempre digo para as famílias que o ‘não’ nós já temos. Se o tratamento não chegar de outra forma, vamos atrás”, detalha Viviane, acrescentando que os desafios só aumentam conforme surgem as novas tecnologias e terapias gênicas com custos milionários.
“A judicialização da saúde não é benéfica para ninguém: nem para o paciente, que espera demais, nem para a União e os planos de saúde, que pagam mais caro. O sistema de saúde como está vai ter que ser revisto”, opina a jurista.
A pergunta mais feita pelas famílias que precisam de algum novo medicamento é sempre a mesma: por que são tão caros? Atualmente, mais de 16 terapias gênicas já estão aprovadas no mundo, sendo seis no Brasil, sendo o mais caro o Zolgensma, com valor de 2 milhões de dólares a infusão única para AME. Mais de 2.500 crianças já receberam a dose em 46 países desde o lançamento.
Outros valores, para fins de exemplo, são o recém citado Luxturna (para visão) e o Elevidys, para distrofia de Duchenne, que você lê a seguir no caso do menino Enrico.
A expectativa é que, em 2030, haja mais de 60 novos produtos do gênero, o que torna a discussão sobre valores e acesso ainda mais urgente. Estas e outras terapias gênicas também são chamadas de orphan drugs, “medicamentos órfãos”: como serão utilizados por um pequeno número de pessoas, sua produção não é considerada lucrativa e, por isso, são mais escassos, ou seja, o potencial limitado de rentabilidade resultaria em valor elevado de comercialização.
Há outros pontos a considerar sobre a questão. No intuito de avançar o debate, encontramos uma profissional que combina as duas expertises: o Direito e a Farmácia. Para a professora responsável pelo curso de Direito Farmacêutico e da Saúde na Universidade Mackenzie, Dacylene Amorim, existem várias abordagens possíveis para o assunto. Vamos resumir em três tópicos a seguir:
Altos custos de pesquisa
"As indústrias farmacêuticas justificam que há altos custos em comparação à quantidade restrita de pacientes. Para se ter uma ideia, o tempo de desenvolvimento de um medicamento até chegar às prateleiras é de 11,4 anos. A cada 10.000 moléculas estudadas, somente 1 será eficaz. Portanto, o produto carrega consigo o custo do insucesso das moléculas que não avançaram. Depois há custos com estudos clínicos, também repassados ao final do processo de venda. Ultrapassadas estas etapas, às vezes há custos relacionados à armazenagem e ao transporte diferenciados, por exemplo."
Patente internacional de uma década
"Outro fator é o tempo de proteção de exclusividade e comercialização, que são pelo menos 10 anos de patente, para o mundo todo. Todos os países aderem e respeitam essa patente, com exceção de dois países que ignoram este acordo internacional e quebram a regra. Em alguns casos, quando acaba o tempo da patente, certos medicamentos chegam a cair até ¼ do seu valor inicial, pois além de já atingirem o faturamento-alvo, que permite reduzir os valores, surge também a concorrência imposta pelos genéricos. O medicamento quando registrado em um determinado país necessariamente passa a sofrer regulação de preço, não podendo aumentar o valor sem justificar o motivo, mas mesmo assim os valores ainda podem ser altos."
Investimentos insuficientes em pesquisa nacional
"Quem deve fornecer o tratamento, o Estado ou a iniciativa privada? Em tese deveria ser o Estado, pois é quem deve fomentar a pesquisa científica no país. Quem não investe suficientemente em pesquisa própria terá que pagar pelo preço da tecnologia que outros países trazem. O que acontece hoje no Brasil é esse conflito: a iniciativa privada não quer pagar, o Estado diz que não tem condições, mas quando ocorrem os pedidos via judicialização, o Judiciário acaba tendo que gerir os recursos de ambos, sem ter muitas vezes dados necessários para saber se a decisão é sustentável financeiramente. Uma questão para pensar: será que sai mais caro importar o produto final ou começar a investir em pesquisa para que consiga desenvolver os próprios medicamentos? O Brasil é o 8º consumidor de produtos farmacêuticos do mundo, mas em termos de estudos científicos ocupamos a 23ª posição na fila", conclui Dacylene.
Na corrida por medicamento de R$ 15 milhões
Muitas famílias entram com pedidos na justiça, mas também decidem correr em paralelo enquanto não recebem uma decisão. Assim surgem as campanhas públicas por arrecadação de fundos pela internet. No encerramento desta série especial de reportagens, trazemos a história do menino Enrico, de Varginha (Minas Gerais), em uma luta contra o tempo para comprar um dos medicamentos mais caros do mundo.
Diagnosticado com distrofia muscular de Duchenne, o menino de 5 anos está exatamente na faixa etária indicada para o Elevidys, que só pode ser aplicado até os 6 anos de idade. Uma única dose impede a progressão da doença, como se demonstrou no resultado dos estudos clínicos, que levaram à aprovação pelo FDA. Caso não seja tratada, o prognóstico é de que a criança perca a capacidade de andar antes dos 12 anos de idade. O valor do medicamento é de R$ 15 milhões: é esta a meta da campanha da família mineira.
Com carretas, caminhadas, shows beneficentes e apoio de famosos, a mobilização por Enrico já chegou à metade da meta de arrecadação. É um enorme feito, mas que ainda precisa de mais ajuda. A mãe, a psicóloga Marina Carvalho Cavalcanti, se dedica integralmente à campanha desde outubro de 2023, com atualizações diárias em @salveoenrico.
Leia aqui o depoimento completo da mãe de Enrico sobre a jornada
Enrico tinha sinais que já eram relacionados à doença e achávamos que era atraso de desenvolvimento por conta da pandemia, pois ficamos muito em casa.
*Esta é a última de uma série de 5 reportagens, conteúdo produzido com apoio da bolsa de jornalismo da US National Press Foundation: Covering Rare Diseases.
Leia aqui as outras reportagens já publicadas: