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O que organizações fazem com os funcionários estafados

Somente quando entendermos que somos seres humanos – e não recursos humanos –, conseguiremos tratar a saúde mental no trabalho

13 ago 2022 - 02h00
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Foto: Mohamed Hassan / Pixabay

A queixa generalizada não é recente: o livro A Sociedade do Cansaço, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, publicado em 2018, já falava sobre a valorização que as organizações promovem da hiperatividade, das múltiplas tarefas e da velocidade desmedida, como responsáveis pelo esgotamento coletivo. “Mas a pandemia de Covid-19 foi o ponto de inflexão de uma epidemia de estresse, que conta também com a desigualdade social, a crise econômica, a inovação tecnológica e a automação da força de trabalho como fatores desencadeantes dessa sensação”, sintetiza Rita Passos, presidente da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV).

E como não é possível dissociar o trabalho da vida pessoal e em sociedade, a crise é de todos. Quem faz o diagnóstico é o médico, psicanalista e consultor de saúde mental em empresas André Fusco, a partir dos conceitos de Christophe Dejours, psiquiatra francês que estudou a fundo a influência do trabalho na vida das pessoas: “Dejours alertava para a centralidade do trabalho, que é justamente o impacto que ele e suas relações têm na sociedade em geral. Por isso, defendo que a grande tecnologia que vai mudar a saúde mental do trabalhador é aquela diretamente ligada ao sistema operacional, ou seja, que reformule as regras do trabalho em si”, enfatiza Fusco.

Medidas imediatas

Até lá, estaremos apenas preocupados com a superficialidade do problema e usando a tecnologia para tentar encontrar saídas para amenizar o que sentimos. “A cada dia surgem novos meios de acessar ajuda, monitorar o progresso e aumentar a nossa compreensão sobre o bem-estar mental dos trabalhadores. Hoje, há aplicativos que ajudam o usuário a se conectar a um profissional de saúde, a melhorar a memória, a relaxar, a meditar ou a dormir melhor, ou que usam inteligência artificial para prever uma mudança de comportamento e fornecer um sinal de que é preciso buscar ajuda antes da crise”, lista Rita. 

Entretanto, diante dessa explosão de alternativas, a busca por evidências científicas do que funciona de fato nunca pode ser abandonada, conforme deixa claro a presidente da ABQV: “Ainda não há uma regulação clara para o mercado de saúde mental, nem padrões que ajudem o consumidor a avaliar se um app é realmente eficaz para o que se propõe. E a frustração com relação à expectativa inicial tem feito com que muitas plataformas tenham alto engajamento inicial, mas uma taxa de abandono igualmente grande”. 

De qualquer forma, é inegável que a tecnologia tenha aberto uma nova fronteira no apoio à saúde mental e na coleta de dados. “Ela se mostrou essencial para facilitar o acesso à ajuda e multiplicar os recursos de telemedicina e telepsicologia, especialmente durante a pandemia”, sintetiza ela. 

Para André Fusco, antes de adotar qualquer uma dessas soluções como única estratégia, é preciso lembrar que, na saúde mental, o problema não está no doente. “Temos que parar de falar apenas de depressão, de equilíbrio entre vida profissional e pessoal, de ioga, meditação e qualidade do sono porque, com isso, estamos discutindo apenas como os funcionários devem agir, não o que as organizações precisam mudar.”

Ser humano ou ser recurso

André Fusco garante que muito do adoecimento no trabalho hoje advém do conflito entre ser humano e ser um recurso humano. 

É que o ser humano, ao se defrontar com o sofrimento, cria crenças e valores para dar sentido ao que está vivenciando. “Dessa forma, um médico plantonista acredita cegamente que, para ser um bom profissional, é preciso estar há 36 horas sem dormir, pois essa característica sofrida do trabalho se tornou um valor e, sem ele, ficaria muito difícil suportar a falta de descanso”, resume Fusco. A humanidade, ou seja, nossa necessidade básica de dormir, se torna vergonhosa e, portanto, precisa ser escondida. 

Existem muitas outras crenças e valores que permeiam as relações de trabalho. Colocar a carreira em primeiro lugar e acima de tudo é uma delas. Para as mulheres, a pausa para a licença-maternidade pode ser entendida como desvantajosa e, por isso, aquelas que reduzem o tempo de afastamento evidenciam o ato como um bom exemplo a ser seguido.

Recém-mães, ao retornar ao trabalho, precisam que as organizações mantenham sua saúde mental em foco. Um estudo sobre licença-maternidade feito pela Fundação Getúlio Vargas comprovou que, dois anos após o afastamento, quase metade das mulheres está fora do mercado de trabalho, por escolha própria ou da empresa, justamente porque elas não dão conta. Para os pesquisadores, apenas a licença de quatro meses não dá o suporte necessário a essas profissionais, que necessitam de outras políticas organizacionais, como creches e jornada de trabalho flexível, para regressarem ao trabalho sem que a saúde mental sofra baixas. 

Fusco concorda com essa impressão dos estudiosos da FGV e reafirma que ainda é grande o número de mulheres que mantêm a crença de serem falhas e/ou ruins simplesmente porque não conseguem ser boas mães e boas profissionais ao mesmo tempo: “Eu mesmo demorei dois anos para conseguir implantar uma política de volta gradativa ao trabalho após a licença-maternidade em uma empresa à qual presto consultoria. A ideia inicial era que essas mulheres voltassem ao escritório por meio período inicialmente e não tivessem remuneração variável sobre metas nos primeiros meses, para poderem se ajeitar na nova rotina. E sabe quem era contra essas medidas? As próprias mulheres, que não queriam ocupar uma posição ‘café com leite’, na qual ficasse evidente o sofrimento que sentiam apenas por serem mães recentes”.

Modelos de incentivo e avaliação

Nos acostumamos a trabalhar em troca de uma remuneração variável, calculada a partir de um ranking de eficiência dos funcionários. Quem faz mais recebe mais. E, se uma pessoa quer receber mais, precisa trabalhar mais. “É assim que estão moldadas as relações de trabalho atuais, ainda apoiadas no fordismo, um modelo que só visa aumentar a produtividade com redução de custos”, diz Fusco.

O problema desse modelo de meritocracia é que os seres humanos não são comparáveis, já que cada um tem um valor em si. Então, por que no trabalho isso acontece e todos concordamos que seja assim? “A meritocracia é uma crença estrutural que existe até hoje nas organizações e precisamos questioná-la com um olhar realmente crítico para que as pessoas não sigam adoecendo mentalmente, como vem acontecendo", provoca o psicanalista, que continua: “Sem isso, vamos continuar, como sociedade, culpando as vítimas”.

“Falar em equilíbrio entre vida pessoal e profissional pressupõe que pessoal é sempre bom e profissional, sempre ruim; mas trabalho também deve ser bom. Tanto trabalho como vida pessoal geram sofrimento, mas a questão é que no trabalho o sofrimento está sem sentido e, portanto, não gera crescimento, não gera valor pra ninguém, apenas é suportado até o ponto de gerar doença”, diz André Fusco.

E o futuro, como será?

Algumas reflexões sobre os caminhos a seguir:

• As empresas existem para dar valor à sociedade, não apenas para gerar lucro: Com isso em mente, os profissionais devem receber estímulos de acordo com uma nova lógica de funcionamento do mundo de trabalho, na qual existe um propósito bem compreendido e, por isso, produzir mais pode ser interessante para eles próprios e para a sociedade como um todo. 

• Programas de saúde mental contínuos e online: As empresas devem pensar em oferecer aos seus funcionários um modelo que inclua diversos componentes e que esteja integrado à rede oferecida pelo plano de saúde para continuidade do cuidado. O uso de plataformas online e programas digitais facilita o acesso e favorece a conscientização sobre saúde mental, reduzindo o estigma e estimulando o autocuidado. 

• A Grande Resignação e os pedidos de demissão em massa: “Não sei quanto tempo eu vou aguentar” é uma frase recorrente nas empresas e o movimento da Grande Resignação, com pedidos de demissão acontecendo em grande intensidade por trabalhadores (especialmente nos EUA), deixa clara a não aceitação de modelos de trabalho ultrapassados. 

• Departamento de seres humanos: Equipes de trabalho inclusivas e líderes que incentivam (e modelam) o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal deixam funcionários mais psicologicamente seguros para expor ideias e opiniões. Muitas vezes, isso tem mais efeito na manutenção da saúde mental do que as sessões de terapia ou os apps de relaxamento e meditação.

Tais conceitos e questionamentos já vêm se delineando entre profissionais, líderes e recrutadores, tendem a ganhar cada vez mais força e devem determinar como a saúde mental será abordada no trabalho na próxima década. 

Depois de um período pandêmico em que o tema tomou ares de urgência – e foi tratado como tal, com os “analgésicos” que tínhamos à mão –, o campo está aberto para que o debate atinja camadas mais profundas. Nelas, questões como o valor pessoal do trabalho, o valor social do trabalho, a realização profissional, o propósito e o bem-estar emocional são peças-chave, que podem levar a sociedade a se perguntar, sinceramente, “as metas e métricas forjadas na Revolução Industrial ainda nos servem?”

(*) Renata Armas é redatora do Projeto Unbox.

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