O que pode explicar um AVC aos 17 anos, como aconteceu com ex-The Voice Kids? Entenda
Embora associado ao envelhecimento, o AVC tem ocorrido com mais frequência entre os jovens, notam especialistas; hábitos de vida e outros fatores de risco muitas vezes subestimados são possíveis explicações
A cantora Karen Silva, ex-participante do The Voice Kids em 2020, morreu aos 17 anos em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC) do tipo hemorrágico. A informação foi confirmada por sua assessoria de imprensa por meio das redes sociais nesta quinta-feira, 24. Karen estava internada no Hospital São João Batista, em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, após sofrer o derrame.
O AVC hemorrágico ocorre quando um vaso sanguíneo se rompe dentro do cérebro, provocando o extravasamento de sangue diretamente no tecido cerebral ou nos espaços ao seu redor. Esse tipo de AVC costuma ser mais grave do que o isquêmico — que acontece quando há obstrução de uma artéria cerebral —, principalmente pelo risco de aumento da pressão intracraniana, o que pode comprometer rapidamente a função cerebral.
Mais comum a partir dos 45 anos, o AVC tem se tornado mais incidente em jovens — embora ainda seja raro em números absolutos. Um estudo publicado na revista The Lancet Neurology em outubro de 2023, apontou um aumento de quase 15% nos casos globais entre pessoas com menos de 70 anos. No Brasil, dados da Rede Brasil AVC mostram que cerca de 18% dos casos acontecem entre os 18 e os 45 anos.
A explicação, segundo o neurocirurgião Feres Chaddad, professor e chefe da disciplina de neurocirurgia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pode estar no aumento de fatores de risco entre os mais jovens — como obesidade, diabetes tipo 2, sedentarismo, alimentação inadequada, uso de substâncias ilícitas e até privação crônica de sono. O uso de anticoncepcionais orais, especialmente combinado ao hábito de fumar, também é um ponto que pesa nessa faixa etária, já que esse tipo de medicamento pode aumentar o risco de trombose e, consequentemente, de eventos cerebrovasculares.
Só que nem sempre a causa tem a ver com os hábitos de vida. Segundo a neurologista Ana Carolina Gomes, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em alguns casos o AVC em jovens pode estar ligado a condições menos óbvias, como malformações vasculares (como aneurismas), doenças genéticas (trombofilias, por exemplo), infecções, problemas autoimunes, arritmias, cardiopatias congênitas e até traumas no pescoço ou na cabeça, que podem provocar dissecção arterial.
Entre todos esses fatores, porém, a hipertensão merece atenção especial. Mesmo sem dar sinais claros, a pressão alta vai, aos poucos, comprometendo os vasos sanguíneos. E esse desgaste é uma das principais causas do AVC hemorrágico. O grande problema é que, por estar tradicionalmente associada ao envelhecimento, ela costuma passar batido entre os mais jovens. Na prática, muitas vezes nem é medida com regularidade. É válido destacar que os impactos da hipertensão ainda são subestimados até entre os mais velhos.
Diagnóstico tardio ainda é obstáculo
Um dos grandes desafios ainda está no reconhecimento precoce dos sinais. Existe uma crença bastante enraizada — inclusive entre profissionais da saúde — de que o AVC, assim como o infarto, é um problema de pessoas mais velhas. E isso atrasa não só o diagnóstico, mas também o início do tratamento, que é fundamental para evitar danos maiores.
Outro ponto é o viés de gênero: como o AVC costuma ser mais associado aos homens, os sinais em mulheres, especialmente as mais jovens, podem acabar sendo subestimados ou atribuídos a outras causas.
"Infelizmente, os primeiros sintomas muitas vezes não são levados a sério. E isso compromete o tempo de resposta, o que pode impactar muito no desfecho", diz Ana Carolina. "Isso é frustrante, porque, nas pessoas mais jovens, a chance de recuperação é maior justamente pela maior plasticidade do cérebro — ou seja, a capacidade de se reorganizar e compensar as áreas afetadas."
As sequelas, quando existentes, variam de caso para caso e dependem da região do cérebro atingida e da gravidade do AVC. Elas podem impactar a fala, a coordenação motora, a memória e até o equilíbrio emocional. A reabilitação costuma ser multidisciplinar: entra fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e também o apoio psicológico. "Quando o AVC acontece na infância ou adolescência, o impacto costuma ser ainda mais profundo, exigindo ainda suporte escolar e reabilitação cognitiva", destaca Chaddad.
Apesar dos avanços nos métodos de diagnóstico e nas opções de tratamento, ainda há muito a ser feito, na opinião do médico. De acordo com ele, faltam protocolos específicos para lidar com o AVC em jovens em grande parte dos serviços de saúde — uma lacuna que precisa ser revista.
"Em algumas regiões do País, a infraestrutura de emergência ainda não está preparada para oferecer tratamentos como trombólise, que usa medicamentos para dissolver o coágulo, ou trombectomia, que é a retirada mecânica do coágulo por cateterismo, dentro da janela ideal. E isso faz toda a diferença no prognóstico", alerta.
