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Programa foca a vida de quem sobreviveu ao câncer

Tendência mundial, iniciativa inédita no Brasil oferece orientações com médicos, nutricionistas e psicológicos para ex-pacientes que venceram o tumor

24 jul 2018 - 19h14
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SÃO PAULO - Em uma sala colorida, as cadeiras em roda dão o tom da conversa. Embora esteja em um hospital, o papo não é de doença. Curados de um tumor, ex-pacientes passam por orientação com médicos, nutricionistas, psicólogos, enfermeiros e até um coach no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O programa, inédito no Brasil, revela uma tendência internacional: a de colocar o foco nos sobreviventes do câncer.

Antes visto como atestado de óbito, o câncer teve a imagem mudada com o avanço das terapias. Mas sobreviventes - cada vez mais numerosos - têm dúvidas sobre alimentação e exercícios, medo de a doença voltar e até necessidade de desintoxicar após drogas agressivas.

"Eu me sentia muito desamparado, queria ter alguém que pudesse olhar o todo e, principalmente, para minha cabeça. Passei a ter medo, uma insegurança absurda", conta o diretor de vendas João (nome fictício), de 35 anos. Em um exame de rotina, descobriu um câncer no rim, em fase inicial. O tratamento não foi complicado - cirurgia, mas não precisou de quimioterapia. Apesar do desfecho positivo, não conseguiu retomar a rotina sem pensar na doença.

Primeiro paciente do programa Survivorship do Einstein, lançado este ano, João passou por um time de especialistas. Enquanto a médica o tranquilizava sobre a chance baixa de voltar o câncer, o coach o ajudava a detectar suas principais dificuldades. Ao final, ele mudou principalmente os hábitos alimentares. "Passei a cuidar mais da alimentação e me sentia mais protegido. Há uma vida depois, que pode ser até melhor."

O programa surgiu da demanda de pacientes "órfãos" ao fim do tratamento. A frase "agora, vida normal" após a alta não se refletia na prática. "Despimos o paciente de tudo o que ele sabia sobre como se cuidar. Quando isso acaba, ele se pergunta: 'Como assim não preciso de mais nada? ", diz Denise Tiemi Noguchi, médica do Einstein.

Os sobreviventes passam por cinco encontros e, ao fim, podem ser encaminhados a atendimentos específicos. "A ideia do programa é ouvi-lo, que ele coloque o que é possível fazer e o que é prioridade. Juntos, desenhamos um plano de cuidados e, com base nisso, começamos a orientá-lo", diz o coach de saúde do Einstein, Fábio Romano.

Iniciativas. Comuns nos Estados Unidos, propostas do tipo ganham espaço no País. No Kurotel, clínica em Gramado (RS), há um programa para pós-câncer. Lá, sobreviventes ficam "internados" por uma semana e têm contato até com uma horta. "A ideia é curar o estilo de vida, a forma de se relacionar com a saúde", diz Mariela Silveira, diretora médica do Kurotel.

"Ensinaram a fazer meditação, mudar a alimentação", lembra o professor Donald Kerr Júnior, de 55 anos. Após um câncer de próstata e sessões de quimioterapia e radioterapia, se sentia debilitado - física e emocionalmente. "Tinha medo da morte, de não conseguir vencer e ficar preso em um hospital."

Oncologista do Hospital Sírio-Libanês, Olavo Feher destaca aspectos sociais. "O tratamento, mesmo com cura, pode afetar relacionamentos. Isso demanda trabalho psicoterápico." O Sírio, diz, estuda sistematizar as práticas de atenção a esse público. A BP (Beneficência Portuguesa) também planeja ampliar um centro de bem-estar para sobreviventes.

Superação. Após vencer um câncer de mama em 2011 e uma recidiva em 2015, a cuidadora de idosos Maria de Fátima Souza, de 52 anos, descobriu que ainda tinha desafios. Com a retirada da mama esquerda, perdeu parte do movimento de um dos braços, além de sequelas psicológicas. Paciente do A.C. Camargo Cancer Center, ela foi encaminhada para um grupo recém-criado no hospital na época: a fisiodança - fisioterapia em grupo que mistura exercícios da terapêutica com música e dança. Além de ajudar a recuperar movimentos, foi uma psicoterapia.

"A gente dançava, ria e chorava ao mesmo tempo, trocava experiências. Era um momento que me sentia acolhida e não só em um tratamento, tanto que não vejo o hospital como lugar de dor, mas de cura e de amizade." No A.C.Camargo, o cuidado ao sobrevivente envolve uma equipe multidisciplinar, com profissionais como fonoaudiólogos e psiquiatras.

Remando. Quando chegou ao fim do tratamento contra um câncer, Geani Faria, de 50 anos, chorou - de alegria e de preocupação. De paciente a sobrevivente, já não tinha mais de passar por sessões agressivas de quimioterapia, mas precisava retomar a vida com algumas limitações. "Sou superativa. Quando soube que não poderia pegar peso, fiquei inconformada."

A solução veio com o esporte. A funcionária pública faz parte de um projeto do Instituto do Câncer de São Paulo de remo para sobreviventes do câncer de mama, criado em 2013, com reuniões duas vezes por semana na raia olímpica da Universidade de São Paulo (USP). Quem vê o grupo remando, todas vestidas de rosa, não diz que ali estão pessoas que passaram por doença tão agressiva. E a ideia é justamente essa.

"Queremos quebrar o estigma e mostrar que você pode fazer qualquer coisa", diz Christina May Moran de Brito, chefe do serviço de reabilitação do Icesp e coordenadora do Programa Remama. O esporte melhora a resistência durante o tratamento e o vigor depois. No caso de mulheres que tiveram câncer de mama, ajuda a reduzir o inchaço no braço, possível efeito da mastectomia.

Geani vê esses benefícios e outros, que não se medem. "Parece que me torno mais forte com elas. A gente em festa, se divertir, em estar bem", diz ela, que foi este mês à Itália para representar o País em um festival de remo para sobreviventes do câncer de mama.

Aos 70 anos, Carmen Lúcia Mazzei nunca havia se imaginado naquela atividade - hoje fica na ponta do barco, ditando o ritmo das braçadas com um tambor. "Significa que estou recomeçando, me reinventando. Depois do câncer, fica a sensação de que a morte chegou, com a autoestima lá embaixo, começa a ver o cabelo cair, a fadiga da quimioterapia. Agora, é a celebração da vida."

Livro. Conectar sobreviventes também faz parte da rotina de Fabíola La Torre, de 42 anos. Médica que trabalhava em uma UTI oncológica pediátrica, ela se viu no papel de paciente há dois anos, quando foi diagnosticada com câncer de mama.

Desde então, mantém um blog sobre a doença, já escreveu um livro e pretende lançar outro sobre a vida pós-tumor. "Você passa a valorizar o marido que fica do seu lado, a risada linda do seu filho. São outras prioridades." Na internet, troca ideias sobre casamento, libido e beleza com mulheres que passaram pelo mesmo problema. /COLABOROU FABIANA CAMBRICOLI

Estadão
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