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Quem deve ser salvo primeiro? Especialistas oferecem conselhos de ética

Muito antes da escassez causada pelo coronavírus, já havia protocolos definindo 'quem vive e quem morre'

25 mar 2020 - 12h11
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Como os médicos e hospitais decidem quem recebe o tratamento que pode salvar suas vidas e quem é preterido?

Já se pensou muito nessa situação, muito antes da escassez crítica causada pela pandemia do coronavírus.

"A essa altura, seria irresponsável deixar de se preparar para as decisões trágicas de vida ou morte que vamos enfrentar", disse Matthew Wynia, diretor do Centro de Bioética e Ciências Humanas da Universidade do Colorado.

Enfrentando esse dilema recentemente — quem recebe o respirador artificial ou o leito hospitalar —, médicos italianos buscaram orientação ética e foram instruídos a empregar uma abordagem baseada em princípios utilitários.

Em termos leigos, a abordagem utilitária significa buscar o melhor efeito para a saúde em geral, destinando o atendimento aos pacientes que devem ser mais beneficiados pelo tratamento. Quando há apenas um respirador, este é usado no paciente com mais chance de sobreviver, em vez de alguém com pouca probabilidade de resistir. Não é um critério de qual paciente chegou primeiro, e não se trata de um sorteio (quando há um empate entre pacientes em condições semelhantes, o sorteio - uma escolha aleatória - é o método recomendado pela ética).

Em estudo publicado na New England Journal of Medicine na segunda feira, Ezekiel Emanuel, vice-reitor de iniciativas globais e presidente do departamento de ética da medicina e políticas de saúde da Universidade da Pensilvânia, e seus colegas oferecem maneiras de aplicar princípios éticos ao racionamento em meio à pandemia do coronavírus. Esses também são utilitários, beneficiando aqueles com mais chances de viver mais tempo.

Além disso, eles dizem que a saúde dos profissionais de medicina deve ser tratada como prioridade para aumentar ao máximo o número de vidas salvas. Pode haver escassez desses profissionais, alguns dos quais já adoeceram.

Em artigo publicado recentemente no New York Times, um pesquisador britânico disse, "Há uma linha de raciocínio que valoriza os jovens em detrimento dos mais velhos com a qual não me sinto nem um pouco à vontade", acrescentando, "Uma pessoa de 20 anos é realmente mais valiosa que uma pessoa de 50 anos, ou será que as pessoas de 50 anos são mais úteis para a nossa economia, por terem a experiência e as habilidades que uma pessoa de 20 não tem?"

Emanuel discordou dessa interpretação: "Aos 20 anos, a pessoa viveu pouco da vida; terá perdido muita coisa. Se o prognóstico for comparável, o fato de a pessoa de 20 anos não ter vivido plenamente conta a seu favor no acesso a recursos escassos".

Algumas organizações, estados e agências federais já tinham imaginado desafios desse tipo e desenvolveram materiais de orientação para hospitais e sistemas de saúde.

O Hastings Center preparou uma lista de materiais que as instituições de saúde podem usar nos preparativos para a resposta ao coronavírus, incluindo situações de escassez. Em 2015, o departamento de saúde de Nova York divulgou um relatório dos problemas logísticos, éticos e jurídicos da distribuição de respiradores durante uma escassez gerada por uma pandemia. Esse e muitos outros planos estaduais têm como base orientações do ministério da saúde de Ontário para o atendimento intensivo durante uma pandemia.

Agências federais de saúde como o departamento de assuntos de veteranos de guerra e o departamento de saúde e serviços humanos também publicaram orientações que incluem abordagens para a distribuição de recursos escassos em meio a uma pandemia.

Um estudo publicado na Chest em abril de 2019 imaginou uma pandemia semelhante à gripe de 1918 na qual não haveria leitos de UTI nem respiradores para atender à demanda. Os autores abordaram grupos de trabalho em Maryland a respeito de suas opiniões quanto à distribuição de um atendimento insuficiente. As preferências desses grupos apontaram para o direcionamento dos recursos àqueles com mais chance de sobrevivência e mais tempo de vida pela frente — em outras palavras, a mesma abordagem pragmática utilitária. Esse estudo teve como base um relatório de Maryland a respeito da alocação de recursos médicos durante uma emergência de saúde pública.

"A chave é manter a transparência em relação aos princípios, salvar o maior número possível de vidas e garantir que a distribuição de recursos como os respiradores não seja determinada por questões de dinheiro, raça, etnia ou preferência política", disse Tom Frieden, presidente e diretor executivo da Resolve to Save Lives e ex-diretor dos Centros para o Controle e Prevenção de Doenças.

Outro princípio recomendado por especialistas em ética da medicina é tirar as decisões difíceis das mãos dos clínicos ocupados com o atendimento. Em vez disso, o melhor é contar com uma equipe de triagem específica. Além disso, a decisão não deve levar em consideração o lado financeiro nem o status social dos pacientes, algo que parece ter sido violado na oferta dos escassos testes de detecção do coronavírus a jogadores de basquete da NBA, por exemplo.

"Do ponto de vista ético, racionar pela capacidade de pagar é a pior forma de distribuir recursos médicos em caso de emergência", disse Jerry La Forgia, diretor técnico da Aceso Global e ex-especialista-chefe em saúde do Banco Mundial.

Independentemente disso, é exatamente esse o tipo de racionamento que ocorre no sistema de saúde americano nos momentos de normalidade.

Os economistas da saúde também já pensaram a fundo na forma de distribuir recursos de saúde finitos: nos orçamentos do governo, por exemplo. Com frequência, são decisões que têm ganhadores e perdedores — mas nem sempre é possível identificá-los individualmente.

Durante uma pandemia, os ganhadores e perdedores são fáceis de identificar: estão bem diante do médico, ao mesmo tempo. "Isso desloca o fardo ético e emocional da sociedade ou governo para o clínico encarregado", disse Christopher McCabe, economista da saúde e diretor executivo do Instituto de Economia da Saúde, em Alberta, Canadá. "Não há maneira perfeita de escolher quem recebe o tratamento e é salvo. Em momentos como esse, a sociedade pode aceitar mais as decisões utilitaristas."

A história oferece exemplos de valores concorrentes. Durante a 2ª Guerra Mundial, os soldados recebiam penicilina antes dos civis. Na Seattle dos anos 1960, o valor social era um dos critérios usados no racionamento das máquinas de diálise.

Em 2005, o furacão Katrina provocou escassez aguda sob condições de emergência nos centros de saúde da Louisiana. "Os funcionários de saúde foram obrigados a improvisar, mesmo nos casos de decisões de vida ou morte", disse Wynia. "Isso foi amplamente visto como algo negativo para os pacientes e médicos. Não é o que desejamos enquanto sociedade."

Hoje, a demanda por determinados órgãos é maior do que a oferta é capaz de atender. A Rede Unida de Compartilhamento de Órgãos é um sistema de atribui prioridades aos pacientes na fila do transplante. Condição médica, tempo de espera e prognóstico são combinados em um sistema de pontuação que varia por tipo de órgão.

"Há elementos do utilitarismo", disse David Vanness, professor de políticas de saúde e administração da Universidade Penn State. "Mas o modelo não foi pensado para a urgência de uma pandemia."

Em particular, a sociedade teve tempo de pensar em como lidar com o atendimento de pacientes na fila do transplante. Pacientes com doença renal em estágio final têm direito ao programa Medicare independentemente da sua idade, por exemplo.

Quando tratamentos antivirais ou vacinas se tornarem disponíveis, esses também serão escassos no começo, e certamente será debatido quem os receberá primeiro.

Emanuel prevê que logo veremos nos EUA o tipo de racionamento que ocorre na Itália, onde não há respiradores e leitos de UTI em número suficiente para os pacientes que deles necessitam. Estimativas feitas por pesquisadores em Harvard mostram que, sem uma drástica expansão da oferta, muitas áreas dos EUA terão um número insuficiente de leitos hospitalares.

"Se pensarmos na escassez de testes para detectar o coronavírus, o racionamento já começou", disse ele.

Estadão
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