Quem são os incels, o movimento sombrio retratado na aclamada série 'Adolescência'
Série da Netflix aborda temas como masculinidade tóxica e ciberviolência. O fenômeno incel tem preocupado especialistas por sua conexão com misoginia e episódios de violência. Pesquisadores defendem que o problema deve ser tratado como questão de saúde mental.
Aviso: este artigo contém detalhes da trama da série Adolescência e descrições que podem ser perturbadoras para alguns leitores.
A série Adolescência, da Netflix, se tornou um fenômeno global.
A produção tem sido elogiada pelas atuações dos protagonistas — entre eles, jovens atores sem experiência anterior diante das câmeras —, pelas cenas gravadas em um único plano-sequência e, sobretudo, pelo roteiro.
A história gira em torno de Jamie Miller, um adolescente britânico de 13 anos que é detido após uma colega da escola ser assassinada.
Entre os temas abordados pela série estão a masculinidade tóxica, a violência online e o universo dos incels.
O termo, cunhado nos anos 1990, é uma abreviação de "celibatários involuntários" (do inglês involuntary celibates) e se refere a pessoas que se descrevem como incapazes de ter um relacionamento ou uma vida sexual, embora desejem estar em uma relação.
Em manifestos publicados em diversos fóruns da internet, como Reddit e 4chan, os incels culpam abertamente as mulheres por seu "fracasso sexual", partindo da premissa de que todas seriam interesseiras e oportunistas, preocupadas apenas com dinheiro e aparência.
Também costumam classificá-las como promíscuas e manipuladoras, entre outras generalizações.
Ainda que haja registros desse tipo de comportamento há décadas, foi com a chegada das redes sociais que o mundo dos incels ganhou força e se espalhou globalmente.
Em alguns casos, essas ideias resultaram em atos violentos. Em 2021, Jake Davison, que divulgava muitas ideias associadas aos incels em suas redes sociais, matou cinco pessoas no norte da Inglaterra.
Em 2014, Elliot Rodger, considerado um herói por algumas comunidades incels, assassinou seis pessoas em Isla Vista, na Califórnia.
Rodger gravou um vídeo antes do ataque e afirmou que cometeu os assassinatos porque as mulheres não queriam fazer sexo com ele. Depois, ele mesmo se matou.
Violência e misoginia
O conceito de "incel" surgiu há cerca de 30 anos e se popularizou por meio de um site criado para oferecer apoio a pessoas solitárias ou que se sentiam rejeitadas.
Ele apareceu em um blog criado em 1997 por uma jovem canadense que se identificava como Alana.
Na época, o blog se chamava O projeto de celibato involuntário de Alana (Alana's Involuntary Celibacy Project) e incentivava outros jovens a compartilhar suas experiências de dificuldade em estabelecer relações afetivas.
Com o tempo, o movimento avançou, e os discursos se diversificaram.
Hoje, é possível encontrar fóruns cheios de mensagens de autopiedade, mas também há espaços dominados por discursos de ressentimento.
Homens que participam desses fóruns — especialmente nas plataformas Reddit e 4chan, entre outras que compõem a chamada "machosfera" (universo masculino radicalizado na internet) — manifestam misoginia e uma sensação de frustração diante de um suposto direito ao sexo que acreditam ser negado pelas mulheres.
Alguns incels defendem a violência contra mulheres, bem como contra homens que mantêm relações felizes.
Florence Keen, pesquisadora do tema no Centro Internacional para o Estudo da Radicalização do King's College, em Londres, disse à BBC que, em 2021, um dos maiores fóruns tinha 13 mil membros ativos e cerca de 200 mil publicações.
"A ressalva que sempre faço é que não podemos afirmar que toda a subcultura incel seja violenta", afirma a pesquisadora.
Segundo Keen, o grau de incitação à violência contra as mulheres varia. Alguns membros glorificam atos violentos, enquanto outros reforçam nos próprios fóruns que "isso não é o que somos".
Ainda assim, a maioria dos conceitos gira em torno da mesma ideia: rejeição às mulheres e inveja dos homens que têm relacionamentos bem-sucedidos.
Em muitos desses espaços, a incitação à violência é frequente.
Em abril de 2018, dez pessoas morreram atropeladas em Toronto, no Canadá, por uma van dirigida por Alek Minassian. Dias antes, Minassian havia publicado em sua conta no Facebook diversas mensagens sobre sua frustração.
"A 'Rebelião Incel' já começou!", escreveu.
Após esse ataque, o jornalista da BBC Jonathan Griffin entrevistou vários jovens que haviam participado desses fóruns.
Sob anonimato, muitos confirmaram que circulam nesses espaços mensagens violentas contra mulheres.
"De certo modo, parece que eu odeio as mulheres. Tento não ser assim, mas às vezes falo coisas que realmente não deveria, só porque estive lendo esses fóruns", disse um entrevistado, identificado como Liam.
Chads e Staceys
Pesquisadores apontam que muitos jovens recorrem a esses fóruns para compartilhar sua solidão, mas acabam encontrando um grupo de homens ressentidos que acreditam ter "perdido na loteria genética" — o que os impediria de atrair mulheres — e que não há nada que possam fazer a respeito.
Em vários fóruns consultados pela BBC, mulheres atraentes são chamadas de "Staceys" e os homens escolhidos por elas, de "Chads".
Ambos são ridicularizados e insultados pelos incels, que por sua vez aceitam sua suposta "inferioridade genética" em relação aos chamados "Chads".
Na série Adolescência, esse tema é abordado por meio da "regra do 80/20", que se baseia na crença de que 80% das mulheres se sentem atraídas por apenas 20% dos homens — deixando os demais sem chances.
A série também toca em outro conceito presente nesses fóruns: a pílula negra.
A metáfora remete à pílula vermelha do filme Matrix, que representa um despertar para uma suposta verdade escondida.
Muitos incels incentivam seus seguidores a "tomar a pílula negra" — ou seja, despertar para o que consideram ser a confirmação de que seu destino está selado desde o nascimento por forças que não podem controlar.
A pílula os faria perceber que são oprimidos pelo feminismo e por outras forças que os impediriam de levar uma vida plena.
A escalada da violência fez com que autoridades passassem a monitorar o conteúdo desses fóruns.
No Reino Unido, após o ataque de Jake Davison em 2021, autoridades manifestaram a intenção de declarar os grupos incels como "organizações terroristas".
Embora a medida não tenha sido adotada, o fato é que Adolescência recolocou o tema na agenda pública.
O criador, roteirista e ator da série, o britânico Stephen Graham, disse que a ideia de fazer a produção surgiu após dois casos que o impactaram profundamente.
"A série não é baseada em uma história real, mas me lembro de dois casos de menores de idade que assassinaram meninas e que me chamaram muito a atenção", afirmou Graham em entrevista.
"Foi então que comecei a pesquisar para entender o que realmente estava acontecendo com esse problema", completou.
Um problema de saúde mental
Pesquisadores vêm acompanhando o crescimento do fenômeno dos incels e suas implicações na tentativa de encontrar respostas.
Diante da proposta das autoridades britânicas de classificar os incels como "terroristas", um estudo da Universidade de Swansea concluiu que o problema deveria, na verdade, "ser combatido mais como uma questão de saúde mental do que por meio de operações antiterroristas".
"Se quisermos romper esse ciclo, precisamos oferecer apoio em saúde mental, porque, se esses jovens não cuidam de si mesmos, também não vão se importar com os outros", disse à BBC o psiquiatra Andrew Thomas, da Universidade de Swansea, que participou da pesquisa.
Segundo Thomas, o problema está no fato de que esses jovens — cuja "saúde mental costuma estar em frangalhos", como ele define — superestimam o poder de atração física e o poder aquisitivo dos outros, ao mesmo tempo em que subestimam qualidades como gentileza, senso de humor e lealdade.
"Quando você supervaloriza mentalmente a importância da aparência física para as mulheres e subestima o peso da gentileza, começa a buscar evidências que confirmem essa visão de mundo", afirma o psiquiatra.
Essa também é a mensagem reforçada por alguns homens que já fizeram parte desses fóruns, mas que hoje dizem ter uma nova perspectiva.
Um deles é Jack Peterson, que publicou um vídeo no YouTube explicando por que decidiu deixar os grupos de incels.
"Percebi que não dava para passar o dia todo num fórum, falando sobre o quanto eu me sentia péssimo e gravando podcasts sobre isso. Eu precisava mudar", disse Peterson à BBC.
Durante anos, ele manteve um podcast no qual propagava as ideias que fundamentam a visão incel, mas hoje acredita que é preciso mudar de atitude.
"Se você projeta amor no mundo, vai receber amor de volta. Se for negativo em relação às mulheres, elas nunca vão querer ter um relacionamento com você", concluiu.
