Redes de apoio para doenças raras: famílias se unem para fortalecer a causa
Há 40 anos a luta de uma mãe dava início aos grupos de famílias que lutam por mais informação e tratamentos para os filhos com doenças raras
Quando um bebê ou uma criança recebe o diagnóstico de doença rara, a família toda é impactada. De uma hora para outra, mães e pais (e irmãos e avós e tios) adentram um universo até então desconhecido.
Enquanto lidam com um turbilhão de emoções, aprendem novos termos médicos, levam a consultas, administram as necessidades do dia a dia. E tudo isso exige uma dedicação enorme. Aquele famoso provérbio africano — “É preciso uma aldeia para criar uma criança” — passa a fazer mais sentido. É raro cuidar sozinho de um pequeno paciente com doença rara.
Há pais e mães que vão ainda mais além. Em paralelo à rotina de cuidados, engajam-se para ajudar seu próprio filho e, por consequência, outros pais e mães. Criam redes, em formatos distintos e com diferentes propósitos, que vão beneficiar muitas outras famílias como as suas.
Nesta terceira parte da série de reportagens sobre doenças raras na infância (leia aqui a primeira e a segunda), trazemos iniciativas individuais que cresceram e viraram inspiração e referência. Motivados pelo amor aos filhos, pais e mães financiam pesquisas, fundam instituições e ONGs, distribuem orientações, promovem acolhimento e realizam advocacy para mobilizar governos e conscientizar a sociedade. Vão deixar legados científicos, sociais ou legislativos para a atual geração e as futuras.
Expectativa: obter tratamento para o filho. Realidade: impactar milhões de pessoas
Era uma vez a mãe de um rapaz diagnosticado com síndrome de Tourette. O tratamento que controlava os sintomas do filho seria descontinuado. “Não há tantas pessoas com Tourette para tornar o mercado grande o suficiente para a produção do remédio”, explicou o médico ao repassar a notícia. A mãe não se conformava. Presumiu que não devia ser a única buscando soluções.
De família em família, ela formou uma coalizão de cuidadores e grupos de apoio. Era a década de 70, ainda faltavam anos para a internet ser inventada. Enviou cartas para veículos de imprensa, fez barulho até chegar à Johnson & Johnson, a fabricante do remédio. Sua atuação deu origem à primeira lei do mundo incentivando a produção de medicamentos para doenças que não tinham alta incidência, a Lei dos Remédios Órfãos. Tal legislação histórica permitiu o desenvolvimento de tratamentos para condições como Huntington, síndrome de Rett e esclerose lateral amiotrófica (ELA).
Estamos falando da americana Abbey Meyers, até então dona de casa em Connecticut, considerada a mãe do movimento pelas doenças raras. O ano de 1983 marca a criação da primeira organização sem fins lucrativos a defender pacientes com doenças raras, a NORD (National Organization for Rare Disorders, organização nacional para doenças raras), cujo modelo inspira outros similares mundo afora até hoje.
“Quando a Lei dos Medicamentos Órfãos foi aprovada nos EUA, havia 38 medicamentos para tratar doenças raras. Hoje são mais de 800 medicamentos”, enumerou Karin Hoelzer, diretora de assuntos políticos e regulatórios da NORD em conversa com jornalistas da bolsa da National Press 2023.
Esta mobilização social orquestrada por Abbey Meyers é também chamada de advocacy, termo em inglês ainda sem tradução para a língua portuguesa, mas definitivamente já executado por aqui. Advocacy é a defesa em favor de uma causa, reivindicação de direitos, ativismo. São as ações de pessoas ou de um grupo de pessoas buscando a solução de um problema.
As associações de pacientes que defendem a causa das doenças raras são bem organizadas no Brasil: as principais integram a Febrararas, Federação Brasileira das Associações das Doenças Raras. O embrião da Federação surgiu em 2018. Portadores de doenças raras enfrentavam o risco de desabastecimento dos seus medicamentos especiais, causado por entraves no recém-criado Núcleo de Judicialização do Ministério da Saúde. Enlutados pela perda de amigos e familiares, 11 grupos se uniram e, um ano depois, com 23 associações credenciadas, fundaram a Febrararas.
Hoje já são 65 associações de todo o país somando forças em advocacy. Todas as grandes conquistas dos últimos tempos têm a presença ativa da Federação nos bastidores, desde a ampliação do teste do pezinho até a criação do Estatuto da Pessoa com Doença Rara, proposta já aprovada pela Câmara dos Deputados.
"Lutamos pelas políticas públicas de saúde do Estado porque só assim avançamos de verdade. Políticas de governo não são saudáveis para os raros, pois demandam sempre um eterno recomeçar", explica uma das cofundadoras da Febrararas, a vice-presidente Lauda Santos.
Lauda é também uma mãe rara: sua trajetória no universo da saúde e do voluntariado começou em 1992, quando a sua filha, Laís, foi diagnosticada com artrite reumatoide juvenil aos 3 anos de idade.
A missão de vida de um pai impacta milhares de famílias no Brasil
À frente da presidência da Febrararas está o pai raro Antoine Daher, o Toni. Nascido no Líbano, casado com uma brasileira, a dentista Fernanda Dauerbach, o empresário teve sua vida transformada após o diagnóstico do filho há pouco mais de uma década.
O menino Anthony tinha três anos quando foi diagnosticado com Mucopolissacaridose (MPS) II, também conhecida como Síndrome de Hunter, considerada uma doença ultrarrara. No Brasil, entre os anos de 1982 e 2019, cerca de 1.650 pessoas foram identificados com algum dos 11 tipos de MPS. De origem genética, as mucopolissacaridoses afetam inúmeros órgãos do corpo humano e, como a maioria das patologias raras, quando detectadas tardiamente provocam sequelas e déficit no desenvolvimento neurológico nas suas formas graves.
Toni se tornou incansável na busca por tratamentos para o filho, indo a outros países procurar as mais recentes descobertas para trazer ao Brasil (e conseguiu!). Ao testemunhar tantas outras famílias em sofrimento, entendeu que não poderia ficar de braços cruzados sem agir. Começou com um trabalho de formiguinha, anônimo, cada vez que uma família aparecia em seu caminho. Até decidir oficializar seu propósito. O nome da doença do menino batiza a Casa Hunter, instituição sem fins lucrativos criada em novembro de 2013 em São Paulo.
Hoje Anthony tem 14 anos e seu pai é uma das principais vozes em defesa das doenças raras no país. A Casa Hunter é uma das mantenedoras da Casa dos Raros, o primeiro centro integral de atendimento a doenças raras da América Latina, localizado em Porto Alegre, e que terá seu modelo replicado em outras capitais. Realiza dezenas de ações e eventos como fóruns e congressos, atendimento presencial integrado e gratuito no projeto Day Hunter e produção de conteúdo como a emocionante série documental "Viver é Raro", disponível gratuitamente no Globoplay.
Leia aqui o depoimento completo de Toni Daher em sua cruzada por ajudar mais famílias
Hoje 95% do meu tempo é para a Casa Hunter. Antes eu era mergulhado no trabalho, não saía nem 15 min para almoçar. Agora meu trabalho é me dedicar ao meu filho e ajudar todas as crianças que precisam.
Pesquisa de ponta em busca da cura para o câncer cerebral infantil
A força de outro pai também é de impacto imensurável, catalizador de muitas descobertas científicas. Em 2015, o empresário gaúcho Fernando Goldsztein recebeu o diagnóstico de que seu filho Frederico, então com 9 anos, tinha meduloblastoma, tumor invasivo que ocorre no sistema nervoso central. Apesar de raro, é o tipo mais comum de câncer cerebral infantil, com maior incidência em crianças e jovens. Por ano, 30 mil crianças são diagnosticadas com a doença em todo o mundo.
Ao se inteirar sobre tratamentos existentes, descobriu que os protocolos eram os mesmos de 40 anos atrás, com expectativa de cura de apenas 65 a 70% das crianças. E, além disso, os tratamentos são muito tóxicos e causam efeitos colaterais severos, que comprometem a qualidade de vida das criancas. Em busca de informações e alternativas, encontrou o médico Roger Packer, do Children's National Hospital, de Washington DC, capital dos Estados Unidos, um dos principais hospitas pediátricos do mundo, a quem fez a pergunta principal: o que podemos fazer para a ciência andar?
Uma doação pessoal de Fernando deu início ao que agora é seu projeto de vida, a The Medulloblastoma Initiative (MBI), que iniciou atividades em maio de 2021. Cientistas e 13 laboratórios (10 americanos, dois do Canadá e um da Alemanha) foram convidados para integrar o grupo batizado de Cure Group 4 Consortium. Três dos cinco maiores especialistas em meduloblastoma no mundo fazem parte do grupo. Nos primeiros seis meses, uma descoberta impressionante: o grupo identificou o provável mecanismo de desenvolvimento das células que originam o meduloblastoma.
“As crianças haviam sido deixadas para trás”, declara Fernando. “Quando vi o impacto da minha doação inicial em tão pouco tempo, decidi arrecadar mais investimentos para a causa. Não tenho dúvida de que vamos achar a cura. Não é uma questão de ‘se’, é uma questão de ‘quando’ agora”, celebra.
Frederico hoje está com 17 anos e é testemunha das conquistas: no mês passado, o MBI protocolou dois registros de estudos clínicos na agência reguladora americana, o FDA (Food and Drud Administration), “um avanço muito rápido”, nas palavras do próprio Roger Parker, relatadas por Fernando:
“Inovamos na forma de fazer pesquisa. Os diversos laboratórios, ao invés de competir entre si, o que acontece habitualmente, estão trabalhando unidos e de forma sinérgica, compartilhando seus avanços. Isso fez com que conseguíssemos chegar nos ensaios clínicos em tempo recorde (pouco mais de dois anos), o que normalmente ocorre em cinco ou até 10 anos”, explica.
Outras linhas de pesquisa correm em paralelo e devem ser submetidas ao FDA nos próximos meses. A ideia é fazer os melhores esforços para trazer os estudos clínicos em primeira mão também para o Brasil.
“O conhecimento é expandido, dando esperança para milhares de pessoas. Estas descobertas vão gerar benefícios para outros tipos de tumores cerebrais, não só os pediátricos”, afirma o empresário, que gerencia a arrecadação de fundos para o MBI (aceitam doações da sociedade civil também) e é conselheiro da fundação do Children's National Hospital.
Luta coletiva por avanços em políticas públicas de saúde
A atenção conseguida pela fibrose cística no Brasil é uma referência a ser seguida. Doença genética grave e de caráter progressivo, pode ser fatal sem tratamento. Também chamada de Doença do Beijo Salgado ou Mucoviscidose, atinge cerca de 6 mil pessoas no país, sendo a mais prevalente entre as doenças raras. Com a subnotificação, o número deve até ser maior.
O ponto aqui é mostrar que o engajamento de vários setores (sociedade civil, iniciativa privada, imprensa e comunidade médica) fez não só o nome da doença ficar conhecido, mas também abriu espaço nas agendas regulatórias. Em comparação a outras enfermidades, a FC registrou avanços na última década, como documenta o Radar dos Raros, projeto dedicado a mapear tais avanços.
O levantamento analisou duas décadas de produção legislativa. Em 2022, apenas 19 projetos de lei sobre doenças raras foram apresentados e nenhum foi aprovado. Contabilizando os 20 anos anteriores, o Radar dos Raros encontrou 218 propostas apresentadas — 12 delas eram sobre fibrose cística, só 8 foram aprovadas. Continua sendo muito pouco em termos de políticas públicas de saúde, mas é a doença que mais recebeu destaque e serve de modelo para articulações e negociações.
Uma das associações atuantes é a Unidos pela Vida — Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística, fundada em 2011, com sede em Curitiba. A organização foi criada após o diagnóstico tardio da fundadora, Verônica Stasiak Bednarczuk, que desde criança tinha sintomas como tosse persistente e pneumonia, passando por centros cirúrgicos e UTIs. Aos 23 anos, a psicóloga finalmente realizou o Teste do Suor e obteve a resposta para as frequentes internações. Movida por um sonho de se comunicar com outras famílias, abriu um blog que logo motivou a criação da ONG. A Unidos Pela Vida foi vencedora por duas vezes do prêmio de Melhor ONG de pequeno porte do Brasil.
“Conquistamos significativos avanços para a realidade de que vive, como eu, com fibrose cística. Estas vitórias são fruto do engajamento de todos que levantaram esta bandeira”, afirma Verônica, mãe da Helena, 5 anos, que não tem a doença. “Queremos que o futuro nos reserve mais visibilidade e acesso para doenças raras, conquistas efetivas, acesso amplo e, acima de tudo, a possibilidade de uma trajetória digna e com qualidade de vida a todos os pacientes.”
Síndrome do Amor: uma associação para cuidar de quem cuida
Há 20 anos, em janeiro de 2004, estreava no Brasil o Orkut, inserindo os brasileiros nas redes sociais. O site chegou a ter 300 milhões de inscritos, coincidentemente o número de pessoas portadoras de doenças raras no mundo todo. Comunidades reuniam usuários por afinidades, desde as mais genéricas até as mais específicas. Buscando encontrar famílias como a sua, naquele ano Marília Castelo Branco criou a comunidade “Pais de crianças especiais”.
Aos 39 anos, havia acabado de se tornar mãe pela terceira vez, tendo dois filhos do primeiro casamento. Mas logo após o parto o prognóstico não era otimista. Thales nasceu com Síndrome de Edwards, causada por alteração genética, um cromossomo 18 extra, motivo pelo qual é chamada também de Trissomia do 18. Alguns especialistas a definem como “incompatível com a vida”, pois 90% dos portadores não chegam ao primeiro ano de vida.
"Procurava pessoas que pudessem me ajudar a cuidar do meu filho, pois sentia que os próprios médicos não sabiam o que fazer com ele” relata Marília. “O intuito não era ajudar os outros, e sim encontrar uma rede de apoio para mim."
A comunidade virou um forte ponto de encontro de pais de crianças com outras síndromes, reunindo relatos da mãe sobre Thales, que passou 187 dias na UTI pediátria e viveu um ano e 5 meses.
Em luto, fragilizada pela perda, Marília precisou de um tempo antes de considerar a sugestão de uma amiga em oficializar o grupo como ONG, pois já contava com 6 mil membros. Em 2007, surgiu a Associação Síndrome do Amor: Apoio a Famílias de Crianças com Síndromes Genéticas Severas, para promover amplo acolhimento gratuito.
“O que oferecemos é simples, mas muito terapêutico: conectamos famílias que vivem uma realidade semeelhante. Grande parte do trabalho é suporte: a família toda fica em estado emocional alterado e precisa ser cuidada. Passar por uma experiência assim é uma dor quase insuportável. Só pode ser suportada quando você não passa por tudo isso sozinha”, descreve Marília.
Hoje são 25 grupos no WhatsApp, com cerca de 800 familias conversando 24 horas por dia, em 11 países e todos os estados brasileiros. Todas as semanas, a reunião Colo Online recebe novos integrantes. Há ainda dezenas de encontros presenciais, como bingos, feijoadas e festas temáticas. Boa parte acontece em Ribeirão Preto, onde há parcerias com hotéis e restaurantes para receber as famílias com poucos recursos financeiros.
"O que parecia que seria o fim da minha vida se tornou o começo. Meu filho me ensinou que eu não tinha controle sobre nada. Me sinto privilegiada e presenteada por ter tido esse menino."
Apoio na teoria e na prática para melhorar a qualidade de vida
Frequentemente as associações fundadas por famílias também oferecem apoio na prática. É o caso de grupos sobre epidermólise bolhosa. Por ser muito rara, igualmente raros são os profissionais de saúde que sabem lidar com a manifestação da EB, condição genética que provoca a formação de bolhas na pele após mínimos atritos ou traumas.
Segundo o Ministério da Saúde, a incidência é de quatro diagnósticos da doença para cada um milhão de nascimentos. Há quatro tipos de EB e diversos subtipos. Ocorrem por alterações genéticas que mudam a forma como o corpo produz as proteínas responsáveis pela união das camadas da pele. As crianças são chamadas de “borboletas”, pois a pele é frágil como as asas do inseto.
Quando a logística permite, voluntários das associações vão até as maternidades orientar a equipe neonatal e os novos pais de bebês-borboleta, como foi o caso de Guilherme Gandra Moura, de Itaguaí, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O menino comoveu a internet no ano passado após acordar de um coma induzido e ganhou fama: aos 9 anos, compartilha pelas redes sociais sua rotina de fã de futebol, estudante do 4º ano e influenciador mirim.
Mãe do Antony, hoje com 15 anos, Tayane Gandra Orrico deu à luz ao Gui em setembro de 2014, com a felicidade transformada em preocupação nos primeiros minutos após a cesariana. O filho nasceu com as feridas expostas, surpreendendo a todos na sala de parto.
No segundo dia, duas visitas foram essenciais para Tayane e o pai de Gui, o oficial de náutica Estevão Moura. À época presidente da Debra Brasil, ONG referência na doença, a dermatologista Ana Mosca esteve no hospital confirmar o diagnóstico. Na sequência, o diretor Alexandre Pontin, cofundador da Associação de Apoio ao Portador de Epidermólise Bolhosa do Rio de Janeiro (AEBERJ), ensinou as condutas sobre curativos e como segurar o bebê para minimizar atritos.
Leia aqui o depoimento completo de Tayane sobre o desenvolvimento do Gui
Nunca vi por 1 segundo meu filho sem lesões. Há dias em que estão melhores, outros piores. O tempo inteiro estão cicatrizando lesões e surgindo outras.
*Esta é a terceira de uma série de 5 reportagens, conteúdo produzido com apoio da bolsa de jornalismo da US National Press Foundation: Covering Rare Diseases.
Leia aqui as outras reportagens já publicadas: