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Vacina não mudará o mundo de uma hora para a outra

As previsões mais otimistas não se materializaram ao longo da pandemia

5 ago 2020 - 15h10
(atualizado às 15h23)
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Na imaginação geral, a chegada de uma vacina contra o coronavírus parece algo importante: É simplesmente o fim hollywoodiano da incerteza sombria e dilacerante da vida de todos os dias em uma pandemia. Mas neste momento os especialistas em saúde pública discutem uma nova preocupação: será que as esperanças de uma vacina estão sendo exageradas? O retrato confiante que os políticos e as companhias fazem da iminência e da inevitabilidade de uma vacina pode dar às pessoas uma convicção não realista de que, dentro em breve, o mundo poderá retornar ao normal e provocar certa resistência a estratégias simples que poderiam conter a transmissão e salvar vidas a curto prazo.

Mulher segura seringa e frasco com rótulo de vacina para covid-19 em foto de ilustração
10/04/2020 REUTERS/Dado Ruvic
Mulher segura seringa e frasco com rótulo de vacina para covid-19 em foto de ilustração 10/04/2020 REUTERS/Dado Ruvic
Foto: Reuters

Na semana passada, duas vacinas contra o coronavírus entraram nas fases finais dos testes em seres humanos, um recorde de rapidez no campo da ciência que levou as autoridades da saúde em vários países a usar termos como "histórico" e "espantoso". Os executivos da indústria farmacêutica previram, depondo perante o Congresso, em julho, que as vacinas poderão estar disponíveis já em outubro, ou antes do fim do ano.

À medida que o enredo avança, o mesmo acontece com as expectativas: se as pessoas puderem aguentar mais alguns meses, a vacina chegará, a pandemia acabará e todos poderão jogar fora as máscaras. Mas as previsões mais otimistas não se materializaram ao longo da pandemia, e os especialistas - que acreditam sinceramente no poder das vacinas - preveem um longo caminho ainda pela frente.

"Parece improvável, para mim, que uma vacina seja uma espécie de interruptor ou um botão de reset graças ao qual voltaremos aos tempos anteriores à pandemia", disse Yonatan Grad, professor adjunto de moléstias infecciosas e imunologia da Universidade Harvard, na Escola de Saúde Pública T.H. Chan.

Ou, como afirma uma virologista da Universidade Columbia, Angela Rasmussen: "Não é como se estivéssemos indo para o país de Oz".

A declaração de que uma vacina se mostrou segura e eficiente será um começo, não o fim. Inocular a vacina nas pessoas nos Estados Unidos e no mundo todo porá à prova e sobrecarregará as redes de distribuição, a cadeia de suprimentos, a confiança da sociedade e a cooperação global. Levará meses ou, mais provavelmente anos, para que ela chegue a um número suficiente de pessoas de maneira a tornar o mundo seguro.

Para os que obtiverem a vacina logo que se tornar disponível, a proteção não será imediata - leva semanas para o sistema imunológico criar pelotões de anticorpos para combater a doença. E muitas tecnologias usadas nas vacinas exigirão uma segunda dose semanas depois da primeira para criar respostas imunes.

A imunidade poderá ser de breve duração ou parcial, exigindo repetidos reforços que sobrecarregam o fornecimento de vacinas ou exigem que as pessoas mantenham o distanciamento social e o uso de máscaras, mesmo depois de receberem suas doses. E se uma vacina funcionar menos bem para alguns grupos de pessoas, se partes da população relutarem em tomar uma vacina ou se não houver vacinas em número suficiente, algumas pessoas ainda adoecerão, mesmo depois que os cientistas declararem vitória com uma vacina - o que poderá contribuir para alimentar a falsa impressão de que ela não funciona.

Uma vacina de efeito comprovado mudará profundamente a relação que o mundo tem com o novo coronavírus e é assim que muitos médicos acreditam que a pandemia acabará. Na concepção popular, uma vacina é considerada um tiro certeiro. Mas a verdade - principalmente no caso das primeiras vacinas - provavelmente será muito diferente. Os especialistas de saúde pública temem que isto possa decepcionar e acabar com a já delicada confiança essencial para que o esforço para derrotar o vírus seja bem-sucedido.

A necessidade de desenvolver as vacinas costuma ser caracterizada frequentemente como uma corrida, com um país ou uma companhia à frente. A metáfora da corrida sugere que o que importa é quem chegar em primeiro lugar. Mas o primeiro a alcançar a linha de chegada não é necessariamente o melhor - e quase certamente este não será o fim da corrida, que poderá se estender anos a fio.

"É provável que a hipótese realista se assemelhe mais ao que vimos ocorrer no caso da HIV/aids", disse Michael Kinch, especialista em desenvolvimento de medicamentos e pesquisa da Universidade Washington em St. Louis. "Olhando retrospectivamente, no caso do HIV, tivemos uma primeira geração de medicamentos bastante medíocres. Temo - e as pessoas não gostam de ouvir isto, mas eu vivo pregando isto - que deveremos nos preparar para a ideia de que não teremos uma vacina cem por cento eficaz. Eu acredito que a primeira geração de vacinas poderá ser medíocre".

No dia 12 de abril de 1955, foi apresentada como eficaz e segura uma vacina contra a pólio. O inventor, Jonas Salk, tornou-se um herói nacional. Os sinos das igrejas começaram a tocar, e as pessoas correram para a rua para se abraçarem, contou Howard Markel, um historiador da Universidade de Michigan.

Entretanto, surgiram obstáculos ao longo do caminho, enquanto os cientistas e as autoridades de saúde pública tentavam fazer frente a uma doença que constituía uma das maiores ameaças para as crianças. O "incidente Cutter" tornou-se um episódio na medicina, quando uma das fornecedoras da vacina não conseguiu desativar completamente o vírus na dose, e infectou cerca de 40 mil crianças, paralisando 51 e matando cinco. Estas infecções provocaram uma epidemia própria, paralisando 113 crianças e matando mais cinco pessoas.

"O incrível é que foi apenas um contratempo", disse Markel. "Os pais confiavam totalmente nos médicos e nos cientistas, e a campanha de imunização continuou, as pessoas tomaram a sua dose".

A vacina Salk foi um momento transformador, mas também não foi o fim da pólio. Nos dois anos seguintes, os casos nos Estados Unidos caíram 80%, mas os surtos continuaram por vários anos, ainda depois que a vacina foi lançada no mercado. Seis anos mais tarde, foi introduzida uma vacina oral contra a pólio no formato de um cubinho de açúcar que se dissolvia na língua das crianças. Nos Estados Unidos, a pólio foi eliminada em 1979.

Mas a vacina da pólio ocorreu em um momento distinto na história americana, disse Markel, em que as pessoas tinham enorme fé de que os cientistas, a medicina e as instituições do governo poderiam mudar suas vidas para melhor. No caso do coronavírus, um deslize relativamente pequeno - uma comunicação errada a respeito das vacinas, um efeito colateral desagradável, uma candidata favorita que fracassa nos testes clínicos ou uma vacina que protege apenas em parte - poderá ter efeitos desmedidos, principalmente para os ativistas que combatem a vacina e já trabalham para semear a desconfiança.

Anthony Fauci, o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Moléstias Infecciosas, falou na sexta-feira perante o Congresso que está "cautelosamente otimista" quanto à possibilidade de que um teste clínico da Fase 3, que está sendo realizado com 30 mil pessoas, mostre uma vacina eficaz. Mas pouco se falou a respeito de como pensar em eventuais fracassos, embora estes também constituam uma parte inevitável da ciência.

"O que acontecerá se qualquer uma falhar em um teste da Fase 3 - as pessoas simplesmente desistirão? Será como entrar no Inferno de Dante?", indagou Rasmussen, da Columbia. "Estou realmente preocupado porque as pessoas se aferram tanto à esperança de que uma vacina resolverá tudo, e as vacinas não são perfeitas, assim como qualquer outro tipo de terapia. Elas podem falhar".

Todas as vacinas aprovadas devem demonstrar que são seguras e eficazes, mas isto não significa que elas funcionem realmente assim. A vacina contra o sarampo é uma das melhores - 98% de eficácia na prevenção da doença. Mas a vacina contra a gripe, ao longo dos anos, se mostra em geral eficiente de 40% a 60%. E algumas vacinas funcionam menos bem dependendo dos grupos de pessoas - idosos, por exemplo, têm respostas imunes menos robustas, e precisam de uma dose especial mais forte da vacina da gripe, ou de uma vacina com um ingrediente extra, chamado adjuvante imunológico.

As autoridades reguladoras americanas exigirão uma vacina contra o coronavírus 50% eficaz. E se uma dose conseguir apenas isto, a educação pública terá de ajudar a comunicar quantas pessoas precisam receber a vacina a fim de estabelecer a imunidade de rebanho - um limiar no qual uma parte razoável da população está imune para deter o contágio, quando o vírus será realmente domado.

"Se as pessoas recebem uma vacina que se limita a atender a estas diretrizes, talvez não consigam chegar à imunidade de rebanho", disse Walter Orenstein, diretor adjunto do Emory Vaccine Center. "Desse modo, a transmissão se reduzirá substancialmente. Diminuirá o risco de se ficarem expostas, mas não o eliminará. Contudo, uma vacina 50% eficiente é muito melhor do que uma vacina com eficiência 0% Eu a tomaria".

A própria palavra "eficaz" será analisada pelos especialistas e talvez precise ser cuidadosamente explicada. O objetivo é uma vacina que previna completamente as infecções. Mas esta não é a única definição de uma vacina bem-sucedida, que possa incluir doses que reduzam a gravidade dos sintomas que as pessoas sentem. Teoricamente, uma vacina faria ambas as coisas. Mas o que acontecer na vida real influenciará as decisões a respeito de quais serão os primeiros a receber a vacina.

"Falamos em fazer com que a coisa funcione, e saúde pública tem tudo a ver com a população", disse Natalie Dean, bioestatística da Universidade da Flórida. "Pode-se fazer uma coisa que funcione perfeitamente em laboratório; completamente diferente é fazer com que funcione na comunidade".

Uma vacina que reduz em grande parte a gravidade da doença poderá ser dada ao idosos e a outras pessoas de maior risco de piores resultados. Uma vacina que previna bem as infecções, mas talvez não funcione tão bem em idosos, poderá ser ministrada à população mais jovem para tentar proteger os idosos.

A eficácia da vacina também influi no número de pessoas que precisarão tomá-la a fim de atingir a imunidade de rebanho.

Paul Offit, diretor do Centro de Educação para a Vacina do Children's Hospital da Filadélfia, analisou um cenário de testes rápidos que teve um resultado otimista: uma vacina é 75% eficaz para prevenir que as pessoas espalhem o vírus e o passem para os outros. Mesmo vacinando algumas pessoas, será possível reduzir a rapidez do contágio, e os melhores efeitos surgirão se as primeiras doses forem dadas às pessoas certas. No entanto, ele calculou que seria necessário vacinar dois terços da população para chegar à imunidade de rebanho.

"Se você fala em se abraçar, em sentar com 67 mil pessoas em um jogo dos Eagles da Filadélfia, imagino que isto levará alguns anos", disse Offit.

O coronavírus chegou rapidamente, alterando a vida diária de maneiras inimagináveis, praticamente da noite para o dia. Os círculos sociais das pessoas encolheram até restarem apenas os contatos na própria casa. As escolas fecharam. A Terra parou de vibrar. Impacientes para que a pandemia tirasse seu enorme peso do mundo, todos os olhos se voltaram para a vacina.

"Acho que todo mundo está tão cansado desta pandemia e deste maldito vírus que olha realmente para a vacina como a salvação", disse Mark Mulligan, diretor do Centro de Vacinas Mangone da Universidade de Nova York. Mulligan disse acreditar que as pessoas deveriam ver as vacinas do mesmo modo que olham a reabertura - como algo que precisa ocorrer gradativamente em fases para ser seguro e até aprendermos mais a respeito. Os governos e as empresas estão investindo bilhões de dólares para aumentar o fornecimento de vacinas agora, mas, mesmo assim, não será possível vacinar todo mundo na primeira semana ou mesmo no primeiro mês, assim que a primeira vacina se tornar disponível. O mundo se tornará mais seguro, pouco a pouco, não tudo de uma vez.

"A vacina funcionará lentamente, não como uma trovoada", segundo Andrew Noymer, epidemiologista da Universidade da Califórnia em Irvine.

E as falhas que afetaram a capacidade de testagem - inclusive as dificuldades de distribuição e a garantia de que a cadeia de fornecimento dos ingredientes básicos é consistente - constituem um risco enorme.

A comunicação pública terá de ser adequada, e os líderes deverão apresentar exemplos responsáveis. O presidente Donald Trump, que pode aproveitar da testagem diária com tempos rápidos em relação aos resultados, só recentemente tomou as precauções que, de acordo com os especialistas em saúde pública, o restante da nação precisa tomar, contribuindo para semear a confusão a respeito das máscaras. Aparentemente, os astros dos esportes e as celebridades tiveram acesso mais rápido aos testes do que as massas durante toda a pandemia. Se estas desigualdades ocorrerem com as vacinas, poderão dar às pessoas uma falsa confiança a respeito do que é seguro.

"O que acontece quando os políticos são considerados prioridades (no caso da vacina) ... é a projeção de invencibilidade, e outros que não são vacinados baixam a guarda", observou Saad Omer, diretor do Instituto de Saúde Global da Universidade Yale. "Isto ocorreu no caso dos testes e das máscaras. Não é uma fantasia, e nós não estamos preparados para isto."

A busca de uma vacina convenceu muitos cientistas de que o sucesso é possível. Mas se a promessa de uma vacina nos for mostrada como uma isenção, é possível que o mundo não faça o suficiente para criar todas as ferramentas - tratamentos, testagem, rastreamento de contatos - necessárias para voltar ao normal.

"Existe um foco míope nesta pequena parte da resposta ao surto, à pesquisa e ao desenvolvimento", disse Natalie Dean, da Universidade da Flórida. "Então, nós negligenciamos o que é um pouco menos excitante, mas provavelmente terá um impacto mais imediato, e a longo prazo se mostrará de fato importante, também no sentido de que devemos confiar que estaremos seguros".

Estadão
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