Vitamina D protege contra coronavírus? Especialistas explicam por que é cedo para afirmar
Boatos e correntes espalham ideia de que vitamina oferece proteção a doença respiratória ao fortalecer sistema imunológico; mas não há evidência científica que comprove isso.
*O título original da matéria, "Vitamina D protege contra coronavírus? Especialistas explicam por que não", foi alterado no dia 22 de abril de 2020 para tornar mais precisa a informação de que ainda não há evidências científicas suficientes para garantir ou afastar totalmente o papel da vitamina D na imunidade e no combate ao coronavírus. Desde o início da pandemia, há muitos estudos em curso ou já publicados buscando esta resposta.
Enquanto cientistas e autoridades de saúde em todo o mundo correm para entender e combater um novo tipo de coronavírus, boatos e correntes nas redes sociais espalham a ideia de que haveria uma arma poderosa e ao alcance de todos na prevenção ao vírus, mesmo em locais sem infecções confirmadas como o Brasil.
De acordo com artigos e vídeos divulgados nas redes sociais, trata-se da vitamina D — em forma de suplementos, injeção ou da simples exposição diária ao sol, a depender do boato. Segundo estes, ela contribuiria na prevenção ao coronavírus ao fortalecer o sistema imunológico (o sistema de defesa do corpo).
Alguns destes boatos aos quais à BBC News Brasil teve acesso têm tom excessivamente alarmista, por vezes apocalíptico e com a ideia de que haveria informações sendo ocultadas da população. (Confira alguns de nossos textos e vídeos com dicas sobre como identificar notícias falsas).
Essas recomendações já foram refutadas pelo Ministério da Saúde, que afirmou: "Até o momento, não há nenhum medicamento específico ou vacina que possa prevenir a infecção pelo novo coronavírus."
Em linhas gerais, as recomendações do ministério em relação ao novo coronavírus seguem o que vem sendo divulgado internacionalmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS): lavar recorrentemente as mãos; usar lenço descartável na higiene nasal; cobrir nariz e boca ao espirrar e tossir; evitar tocar mucosas de olhos, nariz e boca; evitar contato próximo com pessoas com infecções respiratórias agudas ou que apresentem sintomas da doença; entre outros.
A Sociedade Brasileira de Infectologia também publicou uma nota no último dia 7 sobre fake news referentes à vitamina D, afirmando que "jamais" a entidade publicou que "preconiza o reforço de imunidade como a única estratégia preventiva contra a infecção pelo coronavírus", tampouco a recomendação de "imunomodulação usando vitamina D em dose alta e injetável", conforme indicaram alguns boatos.
Hoje, no Brasil, a recomendação para uso de suplemento de vitamina D, em forma de comprimidos por exemplo, é feita apenas para grupos de risco de deficiência desta substância, e, mesmo assim, após exames, consultas e prescrição médica. A recomendação é motivada principalmente por aquele que é o papel mais conhecido e essencial da vitamina D: ela participa da absorção do cálcio pelo organismo, contribuindo assim para a saúde dos ossos.
Estão incluídos nos grupos de risco para carência da vitamina D, segundo o mais recente posicionamento das sociedades brasileiras de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML) e da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), idosos com mais de 60 anos; gestantes e lactantes; pessoas com osteoporose; pessoas com as chamadas doenças osteometabólicas, como raquitismo; entre outros.
"Cientificamente, a gente não está autorizado a usar vitamina D fora da prevenção de doenças ósseas, de quedas de idosos e na população de risco. Se não tem evidência científica de que há benefícios (para o público em geral), não está autorizado", resumiu à BBC News Brasil José Antonio Miguel Marcondes, endocrinologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Mas se, para alguns grupos, a ingestão de suplementos é recomendada, não se pode esquecer que a vitamina D também pode — e deve — chegar a todos através das vias "naturais": principalmente a partir da pele exposta ao sol e, em menor medida, através da alimentação.
Durante a quarentena, porém, nem todos têm a opção de se expor ao sol. Foi pensando nisso que o sistema de saúde público na Inglaterra recomendou que as pessoas considerem tomar doses diárias de vitamina D para compensar a falta de exposição ao sol durante o isolamento.
Na Inglaterra, já há uma recomendação para que as pessoas tomem dez microgramas de vitamina D por dia nos meses de inverno, entre outubro de março, ou ao longo do ano inteiro se não tiverem o hábito de se expor ao sol.
"Infelizmente, como os efeitos do coronavírus continuam, muitos de nós estão enfrentando restrições no tempo que podemos passar fora de casa", diz Sara Stanner, da Fundação Britânica de Nutrição.
Nesse cenário, ela diz que a suplementação é uma alternativa para que as pessoas mantenham níveis saudáveis de vitamina D em seus corpos.
As doses recomendadas por faixa etária pelo sistema de saúde pública inglês são:
- Até 25 microgramas/dia para bebês com menos de 12 meses;
- Até 50 microgramas/dia para crianças entre um e dez anos;
- Até 100 microgramas/dia para adultos com deficiência da vitamina, mas a dose padrão recomendada para adultos é de 10 microgramas/dia.
A vitamina D fortalece o sistema imunológico?
Mas, afinal, a vitamina D pode ajudar no fortalecimento do sistema imunológico — inclusive diante de doenças respiratórias virais, como o novo coronavírus?
Pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a ciência ainda não encontrou uma resposta clara a essa pergunta — e, por isso mesmo, não veem evidências para recomendar seu uso no reforço do sistema imunológico.
Marcondes explica que, apesar do nome, a vitamina D é um hormônio. Ela se liga a receptores próprios para estes hormônios dentro das células — "como se fosse um interruptor: uma vez que há esta ligação (hormônio e receptor), dispara-se uma série de eventos", explica o endocrinologista.
"Existem algumas células do sistema imunológico que têm receptor de vitamina D. Então, ela pode ter algum papel na defesa, mas qual papel é esse, se é significativo ou não, não há evidências suficientes. É um assunto bastante discutido."
"A questão do coronavírus, pode ser que no futuro a gente venha a conhecer (um papel), mas no momento não tem dados para sugerir dose de vitamina D."
Portanto, mais uma vez: não havendo comprovação científica de benefícios ou de dosagem segura (há efeitos colaterais com a ingestão excessiva de vitamina D, como náusea e cálculo renal), não há recomendação médica.
Lúcia de Fátima Campos Pedrosa, nutricionista e professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), explicou à BBC News Brasil que, além da saúde óssea e do sistema de defesa, pesquisadores vêm testando as fronteiras da vitamina D em várias outras áreas. A própria professora coordena há alguns anos um projeto de pesquisa que acompanha níveis de vitamina D em pacientes com síndrome metabólica.
"A função clássica da vitamina D era relacionada ao metabolismo ósseo. Com a evolução das pesquisas, percebeu-se que sua atuação não está somente nisso: existem receptores em outros tecidos, no cérebro, músculos, nos adipócitos...", exemplifica.
"Era como se nosso organismo, de modo geral, estivesse preparado para acatar essa vitamina D. E no nosso organismo, tudo tem uma explicação. Se eu tenho um receptor para vitamina D, é porque aquele tecido precisa desse nutriente", diz, apontando que há pesquisas investigando o papel da vitamina D na diabetes, doenças neurológicas, cardiovasculares, alguns tipos de câncer, entre outras condições.
A questão é que, por motivos também ainda em estudo, a deficiência de vitamina D (ou hipovitaminose) é um problema no Brasil e no mundo — ainda mais em países de maior latitude e com invernos severos, pois há menos exposição ao sol.
"Existe uma estimativa geral de 20 a 59% (da população com deficiência de vitamina D) na América do Sul. Já fizemos em Natal (RN) pesquisa com idosos em instituições de longa permanência, o valor foi perto de 70%; com adolescentes, 45%. Já houve percentuais altos detectados também em São Paulo e outras partes do Nordeste", aponta a pesquisadora da UFRN.
"De 80 a 90% da fonte de vitamina D que a gente tem circulante vem da exposição solar. A vitamina D é um hormônio pré-sintetizado na pele que precisa do estímulo, liberando uma enzima que é catalisada pela radiação UV", explica.
"Mas o estilo de vida mudou muito: já saímos de casa com filtro solar; passamos o dia em ambientes fechados; e a alimentação, de maneira geral, é deficiente. Na minha experiência (com diferentes grupos), a deficiência de vitamina D na dieta é altíssima."
No entanto, a exposição ao sol coloca uma encruzilhada: ela precisa chegar diretamente à pele, sem protetor solar ou camisas feitas para bloquear raios ultravioleta B. Como fazer isso sem desproteger a pele demais?
"O que deve ser feito tanto em crianças quanto adultos é ir ao sol nos horários adequados (costuma-se recomendar de 10h-16h); deixar o corpo exposto ao sol por mais ou menos 20 minutos (por dia); e após esse período, aplica-se o protetor. Mas no primeiro momento, é importante dar a oportunidade para a síntese de vitamina D", sugere a nutróloga Nívea Bordin, da clínica Leger, em São Paulo.
De qualquer forma, aí vai mais um ponto em que não há consenso científico: o tempo de exposição ao sol recomendado, já que podem influenciar fatores como a pigmentação da pele e a quantidade de gordura no corpo.
Já na dieta, Bordin explica que as principais fontes da vitamina D são os peixes gordurosos (arenque, cavala, salmão, atum, etc); leites e derivados; e ovos.
"A maioria das dietas modernas são pobres em vitamina D, e poucos são os países que possuem programas de fortificação com essa vitamina (o Brasil não tem, por exemplo, como faz por outro lado com o iodo no sal). Nos Estados Unidos, há óleo de fígado de bacalhau, ovo, leite, suco de laranja, cereais matinais fortificados."