[crônica]: Na Bolívia, as fotografias só acontecem uma vez
Relato na trilha de 120 km, entre Mojinete e Guadalupe, na Bolívia [...]
Você acha que vai fazer uma viagem, mas é a viagem que te faz (ou te desfaz).
Quando essa frase de Nicolas Bouvier saltou diante da tela do computador, num comentário de uma amiga de sobrenome Villas Bôas, achei que eu tinha entendido (a frase).
Naquele momento, André e eu nos preparávamos para viajar, a pé, por montanhas da Bolívia, em meio a penhascos, vulcões, fendas profundas e casas de seres mitológicos, numa trilha de 120 quilômetros, por onde nenhum estrangeiro tinha passado antes.
A travessia até Guadalupe, a mais de 4.500 metros de altitude, começou em Mojinete, no sul da Bolívia, uma viagem que da cidade de Tupiza levou seis horas para percorrer 90 quilômetros de estrada. Ao volante, um dos nossos anfitriões dizia que éramos os primeiros estrangeiros a pisarem aquele terreno (depois do que passamos, até me arrependi de não ter pedido um comprovante do título inédito).
Nossa chegada causou agitação no povoado alaranjado de 80 habitantes, na Província de Sur Lipez, no Departamento de Potosí.
Naquele povoado minúsculo de tons monocromáticos das casas de adobe, os locais paralisaram diante de estrangeiros, as portas fechadas de madeira foram se abrindo, cabeças surgiram em janelas de casas humildes e as crianças saíram, aos poucos, no chão de terra batida.
À noite, uma reunião extraordinária tinha sido convocada pelo prefeito e o corregedor para que apresentássemos nossa missão para aquela gente, historicamente, desconfiada. O local de encontro foi se enchendo, em um evento concorrido que, há tempos, não se via por ali.
No fundo da sala, olhares penosos cruzavam minha apresentação empolgada.
Falei tão bonito em espanhol, cheio de certezas, que acabei me esquecendo de traduzir aqueles olhares entrecruzados (e preocupados). Se eu tivesse entendido o que eles significavam, teria desistido ali mesmo.
Eu tinha aceitado o convite para essa caminhada no deserto boliviano não por gosto pessoal (nem por imposição de nenhuma pauta jornalística que justificasse tais riscos), mas pela procura de cenários que surpreendessem aventureiros cansados das mesmas imagens bolivianas.
No primeiro dia de trilha, andamos por montanhas a 45°, cruzamos povoados perdidos, bordeamos abismos traiçoeiros, caminhamos em chão escorregadio sobre rochas pontiagudas e nos agarramos em árvores para seguir caminho.
O corpo parecia preparado, mas esqueceu de avisar a alma do que viria nos dias seguintes: uma espécie de pesadelo cheio de simbologias que eu levaria anos para decodificar.
Dez horas depois, chegamos à La Ciénaga, o primeiro pernoite. Tensos e decididos a desistir da travessia, chegamos com fome, sede e cansaço.
Renunciar naquele ponto significava voltar outras dez horas para correr os mesmos riscos. Enganei-me com o argumento de que era só uma questão de ter uma noite bem-dormida para os pés esquecerem os passos daquele dia.
No segundo dia, o guia Severino garantiu que a caminhada até Bonete Palca seria mais leve. Eu, de novo, fui enganado pelo velho inca de pés calejados.
Começamos a sentir o risco da viagem.
Os povoados encravados em fendas nas montanhas não contavam com nenhuma estrutura para visitantes destreinados e bebemos água de origem duvidosa no rio Guadalupe. Passamos por cânions, escalamos rochas sem nenhum tipo de equipamento de segurança e vimos fendas que teriam servido de moradia para seres minúsculos que não existem mais, os chulpas, uma sociedade anterior aos incas que teria desaparecido com a luz do sol.
Severino se deu conta de que aquilo não era para nós e, toda vez que nos colocava sentados em algum canto da trilha, buscava uma alternativa para seguirmos melhor. Construía o caminho na hora para que pudéssemos andar com segurança.
Seguimos com comida e água escassas: bolacha, frutas e duas garrafas pequenas de refrigerante sabor… xarope.
Ameaçamos outra vez um regresso desesperado, mas acabamos convencidos de que o próximo destino seria ideal para pedir ajuda terrestre. Sete horas mais tarde, desembarcamos em Bonete Palca, um povoado flutuante sobre plataformas, penduradas entre montanhas.
Ali, vomitei frases desconexas para os que nos receberam com a sentença de que não havia estradas para automóveis. Muito menos possibilidade de resgate terrestre.
Deitei tremendo na cama improvisada de um barracão vazio que nos ofereceram, tentei devolver ar aos pulmões e umedecer a boca seca. Faltava água e não tinha banheiro no povoado.
No último dia de trilha, o velho inca decidiu voltar para Mojinete - aquilo não era para a gente (e nem para ele, acompanhando a gente), já teriam dito os olhares assustados da reunião inicial. Severino acabava de passar o bastão para outro indígena experiente, um jovem que falava espanhol em meio a frases em quéchua.
Deixamos Bonete Palca, em direção a Guadalupe, sem água nas mochilas, exceto uma garrafa com um refrigerante de… mamão.
Cruzamos cenários que fui incapaz de registrar e o jornalista teve que dar lugar para a criança que precisou chorar. No primeiro abismo que cruzei, as pernas tremeram e não conseguiram seguir adiante. Chorei um choro longo e, pela primeira vez, André não insistiu. Ficou de pé, ao meu lado, e esperou a minha hora de seguir.
O guia parou, pensativo como quem erra o caminho ou se lembra de algo esquecido.
"Vou buscar os meus filhos", avisou sem deixar opção de escolha.
Eu me lembro de ter reclamado com palavras duras e ameaçado seguir sem ele.
"Nunca viram um estrangeiro e eu queria uma fotografia com eles", explicou, em frases confusas, apontando a câmera no meu pescoço.
A espera deve ter demorado quase uma hora até que a comitiva familiar chegasse liderada pelo patriarca inca de rosto castigado. Ele, três filhos com roupa de missa de domingo e um grupo de lhamas.
Eles só queriam uma fotografia.
Em três dias de caminhada, fui presenteado com cabras escalando paredões verticais, cemitérios incas isolados e até com a tríplice fronteira Bolívia-Chile-Argentina, mas fui incapaz de dar-lhes uma fotografia. Nem que fosse para ficar na tela da minha câmera (e na memória deles).
Aumentei as passadas e o guia seguiu atrás da gente, esperando a imagem ser feita.
Virei-me para trás e a fotografia estava ali. Um ao lado do outro: André, o jovem inca e três crianças bem-arrumadas, caminhando com filhotes de lhamas com adornos nas orelhas, iluminadas por uma das paredes dos Andes que servia de rebatedor natural.
Na Bolívia, com pés firmes de inca, se chega longe. E chegamos, em Guadalupe, 120 quilômetros e três dias depois, num trilha turística que nem existia.
Mas a fotografia que eles me pediram ficou ali. Para sempre.