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"Expedição alucinante": brasileiros irão cruzar a temida Passagem do Noroeste

A viagem começou na Noruega, no dia 10 de junho [...]

28 jun 2024 - 08h57
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Quando o norueguês Roald Amundsen encabeçou a primeira travessia da Passagem do Noroeste, no início do século passado, o mundo das explorações assistia a uma corrida frenética por recordes.

Naquela época, nem os polos Norte e Sul tinham sido alcançados ainda.

Mas dessa vez, a viagem vai ser por outro motivo: pesquisar o impacto das alterações climáticas nessa região remota, acima do Círculo Polar Ártico, no encontro dos oceanos Atlântico e Pacífico.

E vai ter brasileiro a bordo.

Veleiro Abel Tasman, na Antártica
Veleiro Abel Tasman, na Antártica
Foto: Sylvestre Campe/Divulgação / Viagem em Pauta

Liderada pelo cineasta alemão naturalizado brasileiro, Sylvestre Campe, a Ocean Science Expedition partiu de Bergen, na Noruega, no último dia 10 de junho, para chegar, sabe-se lá quando, na minúscula Nome, no Estreito de Bering.

Antes disso, porém, a expedição vai ter que encarar o mau humor do Atlântico Norte, cruzar a Groenlândia e vencer o labirinto de estreitos da Passagem do Noroeste. Mas também vai ter ventos perfeitos de 8 nós, baleias cachalotes e povoados isolados com apenas 20 habitantes.

"A travessia deve demorar três meses, mas é o gelo que vai definir, pois podemos ficar presos [nele]. A gente não sabe, é uma incógnita", arrisca Sylvestre, em entrevista exclusiva por telefone para o Viagem em Pauta.

Cléo Campe
Cléo Campe
Foto: Arquivo Pessoal / Viagem em Pauta

Passagem do Noroeste

A tripulação do Abel Tasman, veleiro de quase 23 metros de comprimento e uma das poucas embarcações do gênero a atravessar a região, será formada por nove pessoas, entre elas, Cléo Campe. Além de gerente de produção do projeto, a filha do líder da expedição deve içar velas e revesar o timão, quando for preciso.

Outra brasileira a bordo é Karina Oliani, montanhista e médica especializada em emergência e resgate em áreas remotas. Assim que entrar na expedição, no início de julho, na Groenlândia, ela irá liderar mergulhos e coordenar escaladas para coleta de material, fazendo a segurança da equipe em terra.

"É um sonho antigo, assim como para [o explorador] Amundsen."

Karina Oliani

Karina tem como inspirações não só o explorador Roald Amundsen, o primeiro a realizar a travessia, em 1906, mas também John Franklin, protagonista de uma das mais trágicas viagens na região, em 1845.

"Estou muito feliz por estar com pessoas tão experientes em travessias polares e grandes cientistas do clima. Tudo é desafiador, mas eu quero estar lá", comemora Karina, que já escalou as duas faces do Everest, foi a primeira brasileira a subir o K2 e cruzou um vulcão ativo na Etiópia numa… tirolesa.

Mas a felicidade dela parece estar com os dias contados.

"Estou com o coração apertado de saber que talvez sejamos uma das últimas equipes a conseguir fazer a Passagem do Noroeste vendo gelo. Por isso, o que me pegou mesmo foi a abordagem científica da expedição", completa.

Karina Oliani
Karina Oliani
Foto: Arquivo Pessoal / Viagem em Pauta

O Ártico vem perdendo gelo "quatro vezes mais do que o resto do mundo" e tem registrado uma temperatura 3°C mais quente do que em 1980, assim como salienta o projeto. Se para uns é motivo de comemoração, já que significaria uma rota mais curta e mais econômica entre a Europa e a Ásia, para outros, é de preocupação.

A missão dessa expedição científica ousada é aumentar a conscientização sobre os seis pontos de não retorno, como são conhecidas as situações ambientais irreversíveis como, por exemplo, o colapso da Amazônia e o degelo nos extremos do planeta.

O soteropolitano Ramon Gonçalves também se juntará ao projeto com sua experiência como cinegrafista, fotógrafo e operador de drone.

"Considero uma das maiores expedições da minha vida. Vão ser muitos dias sem ver pessoas e com a possibilidade de ficar mais tempo do que o previsto para poder contornar trechos congelados", avalia Ramon.

Durante a travessia, esse baiano que mora no Rio de Janeiro será responsável pela logística dos equipamentos e pela captação de imagens, a partir da Groenlândia, onde começa sua participação no projeto.

Ramon (centro), após expedição na Amazônia (
Ramon (centro), após expedição na Amazônia (
Foto: Arquivo Pessoal / Viagem em Pauta

A equipe irá contar também com os trabalhos de Sebastian Sánchez, designer de som, meio mexicano meio alemão, que leva sua experiência em gravações de concertos clássicos em Berlim para "entender os sons que o gelo emite e qual o som do silêncio no Ártico", conta o sogro Sylvestre.

Sebastian embarcou com equipamentos subaquáticos para medir até 100 metros de profundidade, entender a poluição sonora marinha e analisar a quantidade de microplásticos no mar de um ambiente tão isolado.

"É um relato visual completo do que é a Passagem, com imagens que vão servir como base de pesquisa para muitos cientistas", explica Sylvestre.

A tripulação da Ocean Science Expedition é composta ainda por Keith Tuffley, proprietário do veleiro; Kester Haynes, piloto de paramotor; e os skippers Alex e Isak Rockstrom.

E, a depender do início da viagem, desafios não devem faltar.

Sylvestre Campe
Sylvestre Campe
Foto: Arquivo Pessoal / Viagem em Pauta

Em um dos posts em seu perfil pessoal no Instagram, Sylvestre lembrou a forte tempestade com ondas gigantes e vento contra, durante a travessia entre a Noruega e a Islândia, no início da viagem.

"Eu passei muito mal", descreve.

"Eu também passei mal no primeiro dia, mas depois acostumei. Agora, no meio da tempestade, eu consigo cozinhar", brinca Cléo, que já esteve com o pai em outras viagens extremas, na Antártica e na Patagônia.

Nessa perna inicial da travessia, parte da equipe passou pelo arquipélago de Shetland, na Escócia, e pelas Ilhas Faroe, território autônomo da Dinamarca.

Entre as dificuldades, o frio, os sobrevoos de paramotor (uma das especialidades do líder da expedição) e os mergulhos em águas congelantes. No dia em que conversou com a reportagem, em Reykjavik, na Islândia, Sylvestre garantiu que, em pleno verão europeu, estava tudo "relax, [a congelantes] nove graus".

"O maior desafio vai ser achar um caminho nesse labirinto móvel de gelo. É bem capaz da gente ancorar numa baía e acordar, no dia seguinte, cercado por gelo grosso. E aí a gente está preso", imagina Sylvestre, tal qual Ernest Shackleton, na famosa Expedição Transantártica Imperial, entre 1914 e 1916.

Veleiro Abel Tasman
Veleiro Abel Tasman
Foto: Sylvestre Campe/Divulgação / Viagem em Pauta

Bem que ele avisou

Alexander von Humboldt avisou, mas parece que ninguém deu bola para ele.

Educado num ambiente burguês, o "pequeno boticário", como esse alemão de Berlim era conhecido na família, desde cedo mostrou que tinha gosto e talento para sujar os pés na terra.

Para aquele fã de James Cook, com gosto exagerado pelo mundo ao ar livre, tudo está interligado, em uma Natureza que é um reflexo do todo.

No entanto, mais de 200 anos depois de explorar florestas da Venezuela e vulcões no Equador, Humboldt não poderia imaginar que um conterrâneo seu (ainda) estaria tratando do mesmo assunto.

Reprodução
Reprodução
Foto: Viagem em Pauta

Enquanto estiver em algum ponto isolado do Ártico, Sylvestre estreia no Canal OFF, em agosto, a série "BR 230 - Muito além da Transamazônica", onde percorreu a mal sucedida estrada de mais de quatro mil quilômetros, entre Cabedelo, na Paraíba, e Lábrea, na beira do rio Purus, no Amazonas.

Com duas experiências tão opostas - a Amazônia e o Ártico -, ele também conseguiu estabelecer pontos em comum em territórios extremos.

"Durante a ditadura [militar brasileira], queriam ligar o Atlântico ao Pacífico. E o Ártico é uma versão do [que aconteceu no] Hemisfério Sul. Os problemas entre os dois são muito parecidos: ambientais, geopolíticos, indígenas e climáticos", compara.

Mas essa expedição de 2024 é feita também de sonhos, daqueles que se imaginavam existir apenas em relatos de viagens heroicos e aventureiros do início do século passado.

Sylvestre Campe, no Alasca, aos 11 anos
Sylvestre Campe, no Alasca, aos 11 anos
Foto: Arquivo Pessoal / Viagem em Pauta

Criado em um veleiro pelos pais apresentadores de uma série de volta ao mundo, na TV alemã, Sylvestre, que hoje tem 58 anos, veleja desde os 11.

Sua inspiração? O explorador Roald Amundsen, líder não só da primeira expedição a atravessar a Passagem do Noroeste, mas também da primeira a chegar no Polo Sul, em 1911.

"É uma expedição alucinante e a mais desafiadora da minha vida. Mas não para poder dizer que sou um cara incrível, isso é o de menos. Eu quero entender o que está acontecendo no Ártico", justifica.

E o resto do mundo também, capitão.

O que é a Passagem do Noroeste

Por mais de mais de 400 anos, exploradores arriscaram as próprias vidas para encontrar no Ártico uma passagem que interligasse os oceanos Atlântico e Pacífico, ao norte, diminuindo assim a distância entre os continentes europeu, americano e asiático.

Segundo estudos, o derretimento de suas águas encurtariam a viagem entre a Ásia e a América do Norte em 4.700 milhas náuticas (8.700 km, aproximadamente), em comparação com rotas tradicionais, como a do Cabo da Boa Esperança, no sul da África, e as dos canais do Panamá, na América Central, e de Suez, no Egito.

Entre as expedições históricas na região estão a de Martin Frobisher (1576), considerado o primeiro inglês a sair em busca da Passagem Noroeste, e a de James Cook, cuja última viagem exploratória foi em busca da mítica passagem, entre 1776 e 1779.

Scientific Visualization Studio/NASA
Scientific Visualization Studio/NASA
Foto: Viagem em Pauta

Aquele arquipélago labiríntico, no Ártico canadense, foi cobiçado também por expedições liderados por John Franklin (1819 a 1822), cujos navios ficaram congelados e não sobrou ninguém para contar a história; por Robert McClure, primeiro a navegar ali, por mar e gelo; e também por Roald Amundsen, pioneiro na navegação na região.

Com temperaturas que vão de 5˚C a -5˚C, na teoria, a Passagem do Noroeste tem janelas de navegação, entre os meses de julho e setembro, quando o derretimento do gelo dá passagem às embarcações.

Porém, por ali, nada é permanente e as condições costumam variar de um ano para o outro.

Entre as dificuldades, temperaturas extremas, baixa visibilidade e obstáculos naturais, como invocados blocos de gelo que se movem (ou não) no ritmo dos ventos. Mas difícil mesmo vai ser saber o que vai ser do planeta, nos próximos anos.

Viagem em Pauta
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