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Mário (sai do armário) de Andrade, em exposição queer no MASP

A abertura é no próximo dia 22 de março [...]

18 mar 2024 - 08h57
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Mário de Andrade dizia ser dotado de uma certa bivitalidade, algo entre a moralidade da "vida de cima" e os prazeres da "vida baixa".

Tímido e discreto, esse escritor paulistano não imaginaria, porém, que sua sexualidade ainda despertaria interesse, quase 80 anos depois de sua morte.

Na próxima quinta-feira, 22 de março, o MASP (Museu de Arte de São Paulo) inaugura Mário de Andrade: duas vidas, primeira exposição a abordar o olhar queer do pai de Macunaíma, uma seleção de 88 peças do acervo do IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros), entre imagens sacras e obras de arte reunidas pelo escritor-colecionador.

Foto: Reprodução / Viagem em Pauta

De desenhos a gravuras de seu acervo particular, alguns apresentados ao público pela primeira vez, a exposição traz também fotografias feitas pelo próprio Mário com sua inseparável "Codaque", nas históricas viagens às Amazônias brasileira e peruana, em 1927, e ao Nordeste, entre 1928 e 1929.

"Da mesma forma que a questão racial [do Mário] foi um tabu, durante muitos anos, o mesmo aconteceu com a sexualidade dele", compara a curadora Regina Teixeira de Barros, em entrevista exclusiva para o Viagem em Pauta.

Ainda que o escritor fosse considerado à frente de seu tempo, discussões levantadas por ele, como preservação do patrimônio histórico e valorização da cultura popular, ainda são assuntos mal resolvidos no Brasil. Em se tratando de sexualidade, então, a exposição no MASP não poderia ser mais atual e necessária.

"Ao falar desse assunto, se desfaz um pouco essa homofobia estrutural que a gente vive. Não falar da sexualidade do Mário significa silenciar e colaborar com essa estrutura social mais engessada", analisa a curadora.

Mário sai do (ar)Mário

A exposição Mário de Andrade: duas vidas está dividida em três núcleos temáticos.

O primeiro tem retratos feitos por artistas como Lasar Segall, Candido Portinari e Tarsila do Amaral, com suas "pinturas de um Mário oficial, conhecido e divulgado", como explica Regina.

O outro expõe figuras religiosas adquiridas por esse colecionador de arte compulsivo, a ponto até de se endividar, que chocou a família católica quando chegou em casa com a escultura de um Cristo de tranças, assinada por Victor Brecheret.

- "Onde se viu Cristo de trancinha! Vosso filho é um perdido mesmo", estrilou uma velha tia.

"São imagens canonizadas pela historiografia da arte, mas que você pode contemplá-las sob um olhar gay", analisa a curadora.

O público poderá ver também a seleção de fotografias que o antiviajante fez de trabalhadores, em suas viagens pelo Norte e Nordeste brasileiros, alguns deles com o corpo semi nu, como a de um homem subindo num coqueiro só de bermuda.

A exposição, que tem curadoria de Regina Teixeira de Barros e assistência de Daniela Rodrigues, faz parte da programação anual do MASP dedicada às Histórias da diversidade LGBTQIA+. No mesmo dia, o museu inaugura também Francis Bacon: a beleza da carne, com mais de vinte obras desse pintor irlandês que levou o mundo queer para as artes visuais.

"[A carne] é a própria materialidade de nossa existência 'em carne e osso', mas também é ícone do desejo carnal, do instinto natural do corpo", analisa Laura Cosendey, curadora assistente da exposição de Bacon.

Mário em Tefé, no Amazonas, em 1927
Mário em Tefé, no Amazonas, em 1927
Foto: Divulgação / Viagem em Pauta

Mário de Andrade queer

Embora já se ouvissem comentários entre "comadres modernistas", a sexualidade de Mário voltou a ser discutida, em 2015, dez anos depois de seu "gigantismo epistolar" ser liberado para a gente dar uma espiada.

Na época, o motivo foi a consulta pública à uma carta para Manuel Bandeira, em que o paulistano abordava o assunto. Antes de morrer, em 25 de fevereiro de 1945, Mário deixou instrução para que suas cartas em pastas ficassem lacradas por 50 anos, a contar da data de sua morte.

Até 1968, o cobiçado material ficou lacrado em uma estante da casa do escritor, na rua Lopes Chaves, na Barra Funda, bairro da zona oeste de São Paulo.

Naquele mesmo ano, o acervo de Mário, incluindo livros e coleção de artes popular e religiosa, seria adquirido pela USP para compôr o patrimônio marioandradiano do IEB, tombado pelo IPHAN (Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional), desde 1995.

"Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e eu elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade?

carta para Manuel Bandeira - 7 de abril de 1928

Uma moreninha aqui, uma americaninha ali. Mário dos amores eternos e das farras com as garçonetes da Santa Efigênia pouco tocou no assunto, como na carta de "proporções indiscretas" para sua discípula Oneyda Alvarenga.

O texto de 60 páginas (!), que levou sete dias para ser finalizada, em setembro de 1940, fazia referência à "uma espécie de pansensualidade, muito mais elevada e casta do que se poderia imaginar". Mais do que o amor sexual em si, Mário tinha "o amor do todo", como definiu, tão poeticamente, o amigo Manu.

A temática homossexual, ora mais explícita ora velada, não é novidade nos textos de Mário, mas como lembra o jornalista Jason Tércio, "literatura não reflete necessariamente a vivência do autor". Para Tércio, que assina a biografia Em busca da alma brasileira (editora Estação Brasil), o poeta estaria mais para "pansexual, andrógino, bissexual".

No entanto, basta circular pelos escritos de Mário para o leitor mais atento encontrar pistas da "assombrosa", "quase absurda" e "monstruosa" sensualidade do escritor.

Logo que se mudou para o Rio de Janeiro, em 1938, o paulistano morou num apartamento na esquina das ruas do Catete e Santo Amaro, cujas janelas arreganhadas pelo calor da cidade deixavam o recém-chegado ver, com suas lentes de aumento, a vida privada que se amontoava na vizinhança.

Em um desses momentos de vouyerismo, Mário descreveu na crônica Esquina o vizinho ao lado que, todas as noites, antes de pôr o pijama, se exibia na sala de dois espelhos. De mãos sempre vazias, "jamais o vi com um livro, uma revista, um jornal sequer", lamentou o vizinho erudito.

Aquele era só um corpo.

"Era realmente um prodígio de perfeição física, nessa cor de bronze novo dos que vivem de praia e de sol. Ficava muito tempo se espelhando, passando a mão com delícia nos músculos másculos, inchando a peitaria, examinando o dorso."

'Esquina' - 7 de dezembro de 1939

Mário por Tarsila do Amaral, em 1922
Mário por Tarsila do Amaral, em 1922
Foto: Divulgação / Viagem em Pauta

Não é raro encontrar aventuras sexuais em textos publicados por Mário que, desde muito cedo, vagou sem roteiro por endereços de São Paulo, como o Jardim da Luz, Anhangabaú e nas moitas do Parque Dom Pedro. Sem falar nas farras nas casas de luzes vermelhas na escura Líbero Badaró, onde o poeta gozava "umas dessas fêmeas gordas, mal vestidas e polacas".

O belo Frederico Paciência, sobre o amor platônico entre dois meninos, é outro exemplo de como o tema permeou a obra do escritor. Considerado o único conto homoerótico de Mário, o texto levou 18 anos para sair do armário.

"Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor", confessa o personagem Juca sobre o amigo de 14 anos de idade, dono de uma "solaridade escandalosa" e admirável "perfeição física".

Eis Mário, tão à frente de seu tempo, tratando de um tema que até hoje ainda é tabu. Paciência.

SAIBA MAIS

'Mário de Andrade: duas vidas'

MASP (avenida Paulista, 1578 - Bela Vista)

Tel.: (11) 3149-5959

De 22 de março a 9 de junho (de quarta a domingo, das 10h às 18h, com entrada até as 17h)

Ingressos: R$ 70 (entrada); R$ 35 (meia-entrada) / Grátis, às terças, das 10h às 20h (entrada até as 19h)

Agendamento on-line obrigatório pelo link: masp.org.br/ingressos

Viagem em Pauta
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