Nísia Floresta: a feminista viajante, vítima de 'memoricídio'
Feminista, educadora e viajante, Nísia esteve 3 vezes na Europa, em pleno século XIX [...]
Em cinco semanas na Alemanha, Nísia Floresta visitou 23 cidades, quis trocar Paris por Frankfurt e viu tudo o que tinha para ver. Mas com a cabeça "além do Atlântico", seus pensamentos não saíam do Brasil.
Há quase 140 anos, o país perdia sua primeira feminista, a autora do clássico 'Opúsculo Humanitário' que, décadas mais tarde, Rachel de Queiroz chamaria de "uma das mulheres mais importantes da pré-história do feminismo brasileiro".
Outro lado conhecido dessa potiguar de Papari, na atual Região Metropolitana de Natal (RN), era seu gosto pelas viagens. Numa época em que viajar era quase que uma exclusividade masculina, Nísia trocou o corte, costura e panelinhas pelo mundo lá fora.
Depois de perder a mãe, um ano antes, Nísia Floresta fez uma espécie de viagem de cura para se distrair com as novidades das paisagens europeias, entre agosto e setembro de 1856, quando visitou não só a Alemanha, mas também a Bélgica e o interior da França.
"Viajar é o meio mais seguro de aliviar o peso de uma grande dor que nos mina lentamente", escreveu a brasileira, enquanto fazia sua segunda viagem pelo Velho Continente, entre 1856 e 1872.
Mas, do outro lado do oceano, Nísia via Brasil onde era Europa.
"Ela saiu do Brasil, mas carregou com ela o espírito nacional. Era uma coisa da brasilidade romântica, uma nacionalidade típica do Romantismo [estilo literário que surgiu na Alemanha e valorizava o sentimentalismo e o nacionalismo]", explica a pesquisadora e biógrafa Constância Lima Duarte, em entrevista para o Viagem em Pauta.
Em Colônia, a viajante potiguar se lembrou do Passeio Público do Rio; e no Jardim Botânico de Bruxelas foi parar em Petrópolis. Navegar em Siracusa era como passear no Rio Beberibe; e ver os picos de Heidelberg, como ter o Corcovado diante dos olhos.
Até as palmeiras de San Remo, "gigantescos penachos naturais", levaram a viajante às praias brasileiras. Sem falar nos passos de Goethe, Lutero e Beethoven que seguiu em território alemão.
"Ao mesmo tempo que é um roteiro de viagem, é também um roteiro emocional. E mostrava o quanto era erudita", analisa Duarte.
Publicado, originalmente, em francês, Itinerário de uma viagem à Alemanha (Editora Mulheres) também garantiu o elo com o Brasil por meio de palavras escritas em português, sobretudo, as que carregavam certa brasilidade, como jangada, saudade e floresta.
Foi naquela mesma viagem que Nísia também escreveu Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia (editora IFRN).
"Nísia fazia pesquisas antes de viajar. Ela era uma estudiosa e não uma viajante ingênua. Nas viagens à Alemanha, por exemplo, não só descrevia uma praça, mas contava o que havia acontecido ali, um século antes", lembra sua biógrafa.
As saudades de Nísia Floresta
Acompanhada da filha Lívia, a viajante potiguar carregou a família na mala.
Numa viagem de trem pela Itália, indiferente à paisagem do lado de fora, Nísia abriu sua bolsa de viagem, de onde tirou as fotografias da mãe e de seus dois filhos. "A visão das queridas imagens me absorveu inteiramente", escreveria mais tarde.
Para ela, viajar era como enganar as saudades causadas pela distância, distraídas pelo entretenimento dos atrativos, que "adormeciam de alguma forma a dor".
"Escrevendo, ela criava a ilusão das suas presenças, auxiliada pelas fotografias que trazia consigo", lembra Duarte sobre aquele diário de bordo escrito na forma de 34 cartas imaginadas para os parentes no Brasil, como o filho Augusto Américo que ficara no Rio de Janeiro para estudar.
"Preferiria passar o inverno aqui com aqueles que amo, com vocês, a ficar sob nosso formoso céu, na época dos fortes calores."
Bonn, 3 de setembro de 1856
"De paisagem em paisagem, de ruínas em ruínas e de cidade em cidade", Nísia seguiria na Europa por mais 16 anos, antes de voltar para o Brasil, viva, pela última vez.
Sua derradeira temporada europeia foi de 1875 a 1885, quando morreu de pneumonia, na francesa Rouen. Porém, seus restos mortais só vieram para o Brasil, quase 70 anos depois, em 1954, cuja trasladação fora autorizada por um decreto de lei, no ano anterior.
"A vida, que não é senão uma viagem mais ou menos penosa, mais ou menos curta!"
'Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia'
Nísia, imensa, sequer coube no próprio mausoléu erguido, no município de Papari, que desde 1948 se chama Nísia Floresta, em homenagem à filha ilustre.
Como lembra sua biógrafa, no lugar de uma esperada urna funerária, a viajante embalsamada desembarcou no Brasil em "um ataúde muito maior do que espaço previsto no mausoléu", obrigando a construção de um novo espaço às pressas.
"Nísia não abandonou a pátria, como disseram muitos críticos, ela levou o Brasil junto com ela", aposta Duarte.
Não é não
A viajante potiguar esteve na Europa em três temporadas (de 1849 a 1852, de 1856 a 1872 e de 1875 a 1885) e, como sugere sua biógrafa, é possível que seus relatos sejam um dos poucos textos nacionais escritos "por uma viajante brasileira num momento em que residia fora do país e escrito em língua estrangeira".
Naquele século XIX, a tendência era viajar por países "exóticos" como o Brasil, mas Nísia fez o caminho inverso e foi para a Europa, pela primeira vez, em 1849, quando visitou Portugal, Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica e Grécia.
Porém, na estrada, não escondeu decepções, como as dificuldades em viajar pelo interior da Grécia, devido aos longos deslocamentos e à antipatia dos gregos. Os ingleses, que agiam como se estivessem no próprio país, sem se preocupar com as particularidades do que viam, tampouco escaparam das críticas de Nísia.
"Há coisas, como pessoas, das quais se fala com muita ênfase das perfeições, mas que perdem seus atrativos quando as conhecemos de perto."
Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia
Nísia também foi crítica ao turismo. Apesar de falar francês e italiano, a brasileira acreditava que, numa viagem, o melhor intérprete era o… dinheiro.
Um dos seus arrependimentos, depois de se encantar com Frankfurt foi ter montado uma casa em Paris. Segundo ela mesma chegou a descrever, aquela cidade alemã tinha entrado em seu coração.
Em mais de uma ocasião, Nísia e a filha foram duras em recusar a ajuda de homens durante suas viagens, como quando o conde M. ofereceu acompanhá-las, na Itália. "Fi-lo entender nosso desejo de ficarmos a sós em nossas excursões", mandou Nísia.
Já em Schwetzingen, na Alemanha, recusou o convite insistente do Barão d'Ey para passear em sua "luxuosa carruagem". "Mil vezes obrigado", devolveu a brasileira, preferindo a "humilde solidão" com sua filha.
Há mais de 160 anos, Nísia Floresta já sabia que "não é não".
Quem foi Nísia Floresta
Enquanto mulheres eram educadas a base de agulha, corte e costura, Nísia ensinava moças no Rio de Janeiro e escrevia sobre direitos femininos.
Nascida Dionísia Gonçalves Pinto, no dia 12 de outubro de 1810, a potiguar publicou, aos 22 anos, seu primeiro livro Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, um compêndio de outras obras que tratavam desse assunto ainda tão raro no Brasil.
"Os homens parecem concluir que todas as outras criaturas foram feitas para eles, [mas] estou certa que os homens foram criados para o nosso uso, do que nós para o deles".
Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens (Editora Luas)
Naquela época, passou a usar o pseudônimo Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nísia era o diminutivo de Dionísia; Floresta, uma referência ao Sítio Floresta, onde nasceu, no Rio Grande do Norte; Brasileira, sua paixão pelo país; e Augusta, uma homenagem ao companheiro Manuel Augusto, morto, precocemente, aos 25 anos.
Foi no Nordeste patriarcal que ela teve suas primeiras reflexões feministas, o que a levaria a fundar, no Rio de Janeiro, em 1838, um colégio só para meninas e com inovadoras (e polêmicas) disciplinas para o ensino feminino da época, como línguas estrangeiras, introdução aos estudos de História e Geografia, e prática de atividades físicas.
Vítima do apagamento engendrado pelo mundo masculino das viagens viris, heroicas e aventureiras, Nísia ficaria esquecida no Brasil, por anos. Para se ter ideia, seu primeiro livro traduzido para o português, Itinerário de uma viagem à Alemanha, só foi lançado em 1982.
"As mulheres que ousaram ir contra o patriarcado foram vítimas de um apagamento, que eu chamo de 'memoricídio'. Se fosse um José de Alencar ou um Gonçalves Dias em outro idioma, já estariam traduzidos. Mas agora estamos vivendo um momento de levantar esse véu, um feliz momento de tirar as mulheres do limbo", defende Duarte na biografia #Nísia Floresta presente: uma brasileira ilustre (editora Mariana Hardi).
O que fazer em Nísia Floresta
Considerando o legado e a importância de sua filha ilustre, Nísia Floresta, município a 40 quilômetros de Natal (RN), guarda pouco ou quase nada sobre a escritora, perdendo a chance de ter um roteiro turístico à altura de seu legado.
A cidade é mais um exemplo brasileiro do apagamento cultural e histórico que segue ocultando o passado do próprio país.
Quem chega para fazer turismo em Nísia Floresta encontra apenas o túmulo dedicado à escritora e o Museu Nísia Floresta, ao lado da Igreja Matriz Nossa Senhora do Ó.
Inaugurado em 2012, o espaço funciona como uma casa com atividades de promoção e valorização da cultura popular. À Nísia, porém, restou-lhe apenas uma sequência de textos biográficos chapados na parede e pouco atraentes para o turista que vem de longe, em busca do universo da escritora.
Nísia Floresta, a mulher, foi muito maior do que Nísia Floresta, a cidade, tem para oferecer.