'O Estranho' é olhar ancestral sobre o aeroporto de Guarulhos
Nos cinemas, a partir do dia 20 de junho [...]
"Por aqui, tudo é diferente", avisa Alê, uma das personagens de 'O Estranho', longa de Flora Dias e Juruna Mallon que se passa no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
Essa coprodução Brasil e França, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 20 de junho, aborda o cotidiano de funcionários do maior terminal aéreo da América do Sul, erguido em território ancestral. Mais do que um olhar contemplativo sobre o Aeroporto Internacional de Guarulhos, o filme é um convite para a reflexão, a partir de cenas filmadas no aeroporto e arredores.
Assim, num assobio Pankararu, o espectador das pistas e saguões barulhentos é transportado para terras indígenas como passageiros daquele Novo Mundo de concreto recortado por raros nacos de verde.
Só para se ter uma ideia, em maio deste ano, o GRU movimentou 3,42 milhões de passageiros, uma média de mais de 110 mil por dia, número superior ao do mesmo período de 2023.
"A cidade foi entrando para dentro da mata, mas o povo de lá não deixa de entrar de volta, na mata que restou. Eu não tenho muito interesse por concreto, apesar de falar bastante sobre ele. Por isso, quando estou no aeroporto, meu olhar vai para a grama", conta a diretora Flora Dias, em entrevista exclusiva para o Viagem em Pauta.
O longa 'O Estranho' não é só uma sobreposição de espaços sociais opostos (urbano x floresta, trabalho precarizado x ritual indígena), mas também de épocas, como na cena em que a personagem Alê (Larissa Siqueira), acocorada no gramado paralelo à pista do aeroporto, encontra um fragmento de um artefato indígena enquanto um avião decola ao fundo.
Em outro encontro de tempos, essa mesma agente de bagagem começa caminhando entre passageiros da Asa B de um dos terminais, é transportada para uma floresta para então se ver de volta ao saguão lotado.
É urbano e é floresta, numa mesma sequência de cenas.
"A memória é uma maneira de permanência. Lembrar é tornar algo sempre vivo e isso a natureza também nos ensina", analisa Flora sobre o encontro de tempos diferentes no longa, como as cidades construídas sobre sambaquis, morros sobre ossadas e oferendas de antepassados.
- "Não vai me convidar para ir na sua casa?", pergunta Silvia (Patricia Saravy).
- "Não dá porque é ali", responde Alê, apontando em direção à pista de decolagem.
diálogo em 'O Estranho'
Trata-se de um filme de memória, onde o som real dos pássaros se (con)funde com o das turbinas do avião que sufoca a floresta que agoniza debaixo dele. Numa das cenas mais marcantes do longa, uma montanha de sambaqui se sobrepõe à pista de decolagem, calada pelo som da floresta.
"É uma maneria de honrar a história dessa terra, de fazer com que ela se revolte e tome a sua superfície de novo", explica Flora.
Dias e Mallon definem o processo do filme como uma total imersão no território de Guarulhos, em bairros urbanos populosos, comunidades rurais, sítios arqueológicos escondidos e povos indígenas em processo de retomada.
Além das gravações em áreas públicas e restritas do aeroporto, o longa foi filmado em dois núcleos da Floresta Cantareira: no Engordador, no bairro Tremembé, a versão histórica do tempo do primeiro abastecimento de água da cidade de São Paulo, e no Cabuçu, endereço da centenária barragem homônima, no Jardim São Luís, em Guarulhos.
"Tem uma área rural muito grande e pequenas ilhas de floresta no meio da cidade. É impressionante como as pessoas de Guarulhos têm memória de onde ficam as cachoeiras, onde tem uma trilha e um bom banho de rio", lembra Flora que, para as filmagens, contou com o auxílio da população de Guarulhos e da concessionária do aeroporto.
Se os terminais de Guarulhos levam a gente para tão longe, seu solo é viagem para dentro da sua própria história ancestral, para o tempo da onça acoada debaixo da cama, das árvores que dançavam com o vento e do nado e das brincadeiras infantis nas margens do Rio Baquirivu.
Assim como Flora contou para a reportagem, o aeroporto, que ainda tem água de rio correndo por baixo, está construído sobre um braço do Baquirivu, que é o córrego Cocho Velho, cujas obras de canalização foram concluídas, em novembro do ano passado.
"O ir para dentro foi muito natural [no filme] porque a gente buscou se relacionar com os moradores de Guarulhos. Então você vai indo para dentro, encontrando e ressoando essas questões e reflexões, e vai encontrando isso na intimidade das pessoas", analisa a diretora.
É ficção ou documentário?
Com cenas gravadas com atores e depoimentos de indígenas da região, 'O Estranho' é uma obra híbrida, ora ficcional ora documental, reescrita até o momento das filmagens, incorporando aquilo que surgia de novo no ensaio ou nas visitas técnicas.
Porém, Flora não acredita em uma oposição entre a ficção e o documentário.
"Eu acho que as duas formas são cinema. O mais importante é saber como a história que você quer contar está pedindo para ser contada", diz.
Seja lá qual for o formato, porém, o mais importante são as diversas pautas indígenas às quais o filme está alinhado, como a "retomada do território, a retomada ancestral e da real história da formação desse país", aposta Flora.
"Se a gente não olhar para trás, não tem futuro. E eu espero que o filme possa contribuir nesse debate porque corremos sérios perigos", avisa Flora.
E, ao final de 1h47, os estranhos somos nós, passageiros daquela floresta concretada.
SAIBA MAIS
'O Estranho'
O filme estreia nesta quinta-feira, 20 de junho, em diversas cidades do país, entre elas: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Brasília, Salvador, Goiânia, Aracajú, Balneário Camboriú, Palmas, Poços de Caldas e Porto Alegre.
No mesmo dia haverá sessão gratuita, no Espaço Augusta (rua Augusta, 1475), com a presença dos diretores Flora Dias e Juruna Mallon.
Sinopse: O Aeroporto Internacional de Guarulhos foi construído sobre um antigo território indígena.
Nesse espaço onde 35 mil trabalhadores garantem o funcionamento diário, Alê (Larissa Siqueira) tem sua vida atravessada pelas origens do aeroporto e por rastros de um passado em constante transformação.
Seguindo personagens cujas vidas se cruzam no dia a dia, o olhar se fixa não sobre aqueles que passam, mas sobre o que permanece num local impregnado pelas feridas originárias de um país.
O longa foi destaque no Festival de Berlim, na Alemanha, e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Sua bem sucedida trajetória em festivais inclui também os prêmios de Melhor Filme no Queer Lisboa (Portugal) e no Festival Internacional de Direitos Humanos de Nuremberg (Alemanha), além de Melhor Som no Festival de Havana (Cuba) e de Melhor Fotografia e Melhor Som em sua estreia nacional no Olhar de Cinema, em Curitiba.
roteiro e direção - Flora Dias e Juruna Mallon
elenco: Larissa Siqueira (Alê), Antonia Franco (Antônia), Rômulo Braga (Jorge), Patricia Saravy (Silvia), Thiago Calixto (Hélder) e Laysa Costa (Laysa)
produção: Lara Lima e Leonardo Mecchi
coprodução: Eva Chillón e Paula Pripas
direção de fotografia: Camila Freitas