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Turquia, Istanbul e o corte de cabelo perfeito

Cortar cabelo, Nuri Bilge Ceylan, Orhan Pamuk e Istambul

29 out 2024 - 06h26
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Resumo
O artigo explora a rica e densa História da Turquia e a experiência de cortar cabelo com barbeiros turcos espalhados pelo mundo.
Rough Sea, 2007
Rough Sea, 2007
Foto: Nuri Bilge Ceylan

Salve, salve!!! Salve-se quem puder.

A Turquia tem camadas de História tão densas e profundas que este artigo vai apenas triscar a superfície. Istambul é uma jóia rara que merece ser visitada, explorada e vivida. Cidade única unindo dois continentes, Europa e Ásia através do estreito de Bósforo.

A playlist “Top 50 - Turkey” é da seleção oficial do próprio Spotify. Duvido que você conheça alguma música ou artista.

Faça um café turco, aquele com o pó no fundo da xícara, ou um chá, sente-se numa poltrona e curta o som.

Terapia ao cortar o cabelo

Escrevi essas linhas em Set/2018 no meu finado blog. Yusuf teve uma Vida difícil, como tantos outros imigrantes turcos espalhados mundo afora, mas manteve a longa tradição de barbearias turcas.

“Cortar cabelo é um ritual masculino bastante peculiar. Dizem que o homem troca de mulher, de escovas de dente, de casa, de emprego, de carro, mas não troca de barbeiro. A não ser que mude de cidade.

Em Belo Horizonte eu sempre ia no Adir, ali na rua Pernambuco pertinho da praça da Savassi. Me lembro, aos 6 anos, indo com meu avô Pedro. Além de cortar as madeixas, ele ainda engraxava os sapatos naquelas cadeiras altas e vistosas, tipo trono da rainha Elisabeth. Saía todo reluzente e pimpão pelas ruas após essa visita ao spa dos homens.

Adir era meu barbeiro preferido. Tinha uma tatuagem estilo marinheiro Popeye num antebraço. Conversava o suficiente respeitando o silêncio do cliente entre uma virada de página da revista e outra. Tinha uma fazenda e, após a morte do seu Vicente e consequente mudança de endereço ali pra perto do antigo Kid Batata & Pop Pastel, acabou assumindo tudo. Um belo dia disse que estava cansado e iria pra fazenda de vez. O salão seria fechado ou vendido. Nunca mais pus o pé lá.

Aqui em Viena é a mesma coisa. Na minha primeira temporada na cidade entre 2004 e 2006 ia sempre num turco baratinho perto da Kardinal Nagl Platz. Custava 8 euros sem chá, mas com direito a música ambiente e uma falação impressionante dos barbeiros. Nem no Grande Bazar de Istambul a conversa era tão intensa. O corte ficava ótimo e era tudo que um estudante de doutorado podia querer: serviço bom e barato, só não era rápido.

Já em Düsseldorf dei a sorte de pegar o Herr Timmler, logo ali na Duisburger Straße pertinho de casa. Mesmo depois de nos mudarmos duas vezes dentro da cidade continuei fiel a ele. O google me informa seu primeiro nome: Gert (não confunda com Gerd, o Trabi). 

Na verdade eu não cortava com ele e sim com seu compadre na salinha ao lado, Herr Schottler. Um alemão clássico com aqueles bigodes mirabolantes vistos em documentários sobre a Oktoberfest ou cidades no interior da Alemanha. Falava bastante, gostava de saber sobre o Brasil, as diferenças culturais e políticas, meu trabalho, família, hábitos alimentares e etílicos, viagens, etc. Era um verdadeiro divã com direito a corte de cabelo, e muito bom pra exercitar o alemão.

Um belo dia Herr Schottler anunciou que iria se aposentar. "Como assim?!", perguntei incrédulo. Ele já havia me contado sobre a casa que tinha na ilha de Samos na Grécia. Desfrutava do imóvel no verão e fazia o possível para alugá-lo no restante do ano. Em épocas pré-airbnb não devia ser nada fácil, a não ser que algum local o ajudasse na empreitada. Bem, durante o "discurso" de despedida Herr Schottler me informaria que estava de mudança para a Grécia. Em definitivo! Passaria o resto de seus dias comendo queijo feta com tomates, azeite e vinho branco local apreciando o azul sem fim e único do Mediterrâneo.

Uma montanha inteira de admiração e inveja se apossaram de mim. "Como pode um barbeiro ter casa numa ilha paradisíaca grega?!", me perguntei. Só mesmo na Alemanha. Me lembrei do Adir e sua fazenda, nesse momento transformado em haras de mangalarga ou cultivo de café na minha fértil imaginação.

Ser barbeiro até que não era uma má ideia!

Mas o motivo dessa crônica é Yusuf, o turco mal-humorado que cortou meus cabelos hoje pela manhã. Desde que voltamos pra Viena em 2014 vou ali na Barichgasse dar um trato no telhado.

Yusuf me acolheu calorosamente com sua inconfundível cara fechada e pessimismo desde o primeiro dia. Me ofereceu chá, assim como oferece até hoje, e perguntou como seria o corte. Aliás, pergunta até hoje como se já não soubesse. Deve ter memória curta. Respondo sempre "wie immer" em alemão, ou seja, como sempre, ora bolas!

O Friseur Mega é um salão animado com várias mulheres fazendo permanente, pintando o cabelo e tagarelando na parte principal. Ao fundo, após subir 3 degraus, chega-se a uma salinha que apelidei de o Reino de Yusuf. Tem cabideiro, um sofá confortável, uma mesa de centro com revistas antigas e desinteressantes, local para lavar os cabelos, montanhas de toalhas e toda a parafernália típica de um barbeiro.

Eu nunca ligo pra marcar horário. Esse meu hábito deixa Yusuf um tanto quanto puto da Vida. Digo sempre que não consigo me planejar, que a Vida com filhos é um eterno imprevisto e ele cai na minha lábia. Pede pra eu me sentar, diz que tem uns cinco clientes na frente, fora outros três que ligaram confirmando o horário e me pede paciência. Dois clientes depois ele me chama pra sentar no trono. Vai entender.

Hoje me contou que seu filho talvez tenha epilepsia! Fiquei atônito com a notícia e não soube o que dizer ao certo. Apenas disse que os médicos saberiam indicar o melhor tratamento e que tudo se resolveria da melhor maneira. No meio do corte Juliette me liga. Queria saber como tinha sido com o Gabriel na escolinha e me contava do Rafael. Yusuf foi me olhando com o rabo de olho, todo encafifado. A conversa se estendeu e eu tentava desligar sem sucesso percebendo os olhares venenosos. Yusuf deu a volta na cadeira por trás e me olhou de maneira incisiva, bufando como um touro na La Maestranza. Ela me pergunta onde iremos almoçar e foi aí que cortei a conversa.

Aliviado, Yusuf me diz que tem muitos clientes e não pode se dar ao luxo de esperar uma conversa trivial dessas. Pedi desculpas e seguimos em frente apesar de perceber apenas um cliente esperando, um senhor folheando uma "Caras" alemã no confortável sofá.

"Em Ancara a comida é muito melhor do que em Antalya" me dizia um agora calmo Yusuf. Não conheço nenhuma das duas, apenas Istanbul, Izmir, İskenderun, Adana, Ereğli, Karabük, Bursa e outras cidadezinhas turcas graças ao emprego que tinha. A comida turca é maravilhosa, saborosa e rica em todos os aspectos. Sem falar no café e na patisserie com bastante pistache.

Nessa volta pela memória e pela Turquia dou graças a deus por não ser careca. Perderia essas valiosas sessões de terapia acompanhadas de corte de cabelo.”

Detalhe desinteressante: Yusuf é careca, mas entende do riscado.

Pra ver e ler

FILME: Distante / Uzak - Nuri Bilge Ceylan (2002). Fotografia, a Arte mais nobre.

O festejado diretor turco Nuri Bilge Ceylan nasceu em Istambul em 1959. Depois de se formar em Engenharia na Bosphorus University, estudou cinema por dois anos na Mimar Sinan University. Ator, diretor, produtor e roteirista, fez seu primeiro curta-metragem, Koza, em 1995.

Em 1997 realizou seu primeiro longa, "Kasaba". Com "Mayis Sikintisi" de 1999, ganhou inúmeros prêmios, entre eles o de melhor filme no Festival de Ankara.

Em 2002, concluiu "Distante", saindo vencedor do grande prêmio do júri no Festival de Cannes 2003 e integrante da seleção da 27ª Mostra Climates (2006).

Nuri foi fotógrafo antes de virar diretor. Uma trajetória muito comum, aliás, essa de começar na fotografia e depois migrar para o cinema. Muitos ainda fazem estágio nos videoclipes antes de se aventurarem na tela grande.

Neste link aqui pode-se conferir suas belíssimas chapas. A foto do começo deste artigo mostra o pai dele.

Em "Distante", um fotógrafo, assombrado pelo sentimento de que a sua vida se afasta cada vez mais dos seus ideais, é obrigado a partilhar o seu apartamento em Istambul com um primo que deixou a sua aldeia para procurar trabalho a bordo de um navio.

A fotografia é, obviamente, primorosa. Além de ganhar o grande prêmio do Júri em Cannes, levou o de melhor diretor estrangeiro. Veja o trailer.

LIVRO: Istambul, Memórias de uma Cidade  - Orhan Pamuk (2003). Registros pessoais e nada superficiais.

Melhor do que um guia turístico impessoal e frio, o livro do ganhador do Nobel de Literatura é um mergulho profundo na História da cidade através de um romance familiar e autobiográfico.

Passagens felizes da infância se mesclam com momentos tristes e sombrios durante os invernos na cidade à beira do Bósforo.

Publicada em 2003, antes do Nobel em 2006, essa mistura de memórias, crônicas da cidade e ensaios sobre a História da Turquia serve não só como guia, mas gracas às mais de 200 fotografias, pinturas, anúncios antigos de jornal e capas de livro, também como um documento histórico da cidade.

Leia aqui uma crítica mais parruda do Ricardo Bonacorci, do Bonas Histórias.

(*) Pedro Silva é engenheiro mecânico, PhD em Materiais, fica impressionado toda vez que visita Istambul, adora o chá e a culinária turca, e escreve a newsletter Alea Iacta Est.

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