Conheça o comércio de Venda Nova, periferia histórica de BH
Maior que muitas cidades de Minas Gerais, Venda Nova, com 240 mil habitantes, é potência comercial desde o século 18
Uma das nove regiões da cidade de Belo Horizonte, Venda Nova, apesar do nome jovial, tem 312 anos, e ajuda a construir a capital desde a época em que Minas Gerais vivia o ciclo do ouro.
A região estava no caminho dos tropeiros, que passavam pela antiga Rua Direita e onde fica, atualmente, a rua Padre Pedro Pinto, principal e maior via do centro comercial, que se estende por seis quilômetros.
Venda Nova tem 42 bairros periféricos. É como se fosse a cidade desses bairros, desempenhando papel local fundamental e na força econômica da capital, Belo Horizonte. De lá saíram nomes de projeção nacional, como o humorista Geraldo Magela, o Ceguinho.
Um humorista ilustre de Venda Nova
Magela nasceu e cresceu na região, no antigo bairro Jardim de Minas, atual Candelária, um dos mais próximos da parte central de Venda Nova. Ele perdeu a visão aos 22 anos, devido a uma doença genética. Antes disso e do sucesso artístico, fez vários corres para sobreviver no pedaço.
“Quando eu enxergava um pouquinho, trabalhei de vendedor de tempero, verdura, bolinho de espinafre, picolé, refresco, carregador de feira, rodando as ruas de Venda Nova. Eu tenho o maior carinho pelo lugar”, conta o humorista. Mesmo após o sucesso nacional, Magela não se perde suas origens, suas apresentações são marcadas por referências à região e suas histórias.
Um desses personagens marcantes foi Ceguinho é a Mãe, show lançado em 1996 e que estourou nos principais programas de televisão do país. Lembro que, na escola, ele era referência de superação, bom humor e autoestima, apesar de todos os preconceitos que só quem mora na periferia enfrenta. Mas ele era um artista importante e nos destacava. Aquilo era muito importante. A gente sentia que existia.
Venda Nova é perto e longe
Mesmo não sendo tão longe do centro da capital, cerca de 15 quilômetros, quando falamos de Venda Nova, na zona sul, é como se tivéssemos que atravessar um oceano para chegar, o que, dependendo do trânsito e das chuvas que alagam uma das principias avenidas, a famosa Vilarinho, parece mesmo uma viagem interminável.
Na minha infância, pela facilidade de acesso e das passagens de ônibus mais baratas, praticamente tudo que tínhamos que resolver e comprar era no centro comercial de Venda Nova. O ônibus com custo menor demorava. No meu bairro, o Mantiqueira, seu apelido era “poeirinha”, vivia lotado e com as portas abertas quando não devia.
Venda Nova sempre foi vista pelos bairros que compõem a região como um lugar de oportunidades, pelo potencial comercial e de desenvolvimento. Foram muitas vezes que eu também vendi coisas por lá: roupas usadas, cinzeiros, bijuterias, CDs, DVDs, fiz entregas de panfletos para pagar cursos e a faculdade. Lá é como se fosse a elite da periferia. É onde buscamos ganhar algum dinheiro quando vem o desemprego e a crise.
O trabalho de quem faz o corre
Ainda hoje, muita gente do Mantiqueira faz de Venda Nova não só um lugar de consumo, mas de comércio. É o caso da artesã Maria Francisca Alves, 67 anos. Ela aprendeu a fazer crochê quando morava no Rio Grande do Norte, ainda criança. Nasceu no Piauí, Teresina, e veio para o bairro Mantiqueira há 40 anos.
Dona Maria trabalhou de carteira assinada em condomínios, fazendo limpeza, e hoje vende sua arte na pracinha. “Pra não ficar em casa eu venho pra cá passar o tempo e ajudar na aposentadoria”, explica, sem desviar a atenção do bordado que está fazendo. É impossível passar pelo banco onde ela fica sem dar uma olhadinha nos panos de prato, toalhas de mesa, jogos de cozinha, de banheiro. “Eu faço de tudo com um pano e uma agulha”, resume Maria.
Outro ponto da Rua Padre Pedro Pinto que não dá para passar direto é pelo Sorvete Delícia, do Geraldinho. Ele atende na máquina de sorvete desde 1983. São quarenta anos. Veio da cidade de Confins, Região Metropolitana de Belo Horizonte, acompanhado somente do irmão, aos dez anos de idade, para trabalhar. “O mundo mudou. Antigamente, não tinha isso não. Na roça era assim: a gente saía pra ralar cedo de casa.” Há 45 anos, ele é morador do bairro Mantiqueira.
As histórias de vida dos que se denominam “vendanovenses” se assemelham e os personagens se encontram no mesmo ponto. Na Sapataria do David, a origem não é diferente.
De pai para filho, mas não para neto
Morador do bairro Maria Helena, David Geraldo, 50 anos, conta que seu pai veio do interior de Minas, da cidade de Santa Maria do Suaçuí, para “tentar a vida” como sapateiro.
O filho teve que aprender o ofício do pai logo cedo. David está no ramo desde os quinze anos. “Sou o filho mais velho. Minhas duas irmãs puderam estudar. Eu não tive escolha. Tinha que ajudar a sustentar a família, não tinha o que fazer. Aprendi na raça.”
David dá continuidade ao trabalho do falecido pai, na sapataria, há 35 anos. Hoje ele se adapta aos novos materiais para consertar os sapatos e conta com a ajuda do filho, de 13 anos. Mas avisa: ele vai ser o que quiser na vida.
“Ele vem pra cá pra aprender e pra não ficar na rua, mas não é aquela coisa obrigatória, ele vai ter escolha, não vai ser como eu, que tive que vir na marra”, assegura David. Ele se diz grato a Deus, pois aprendeu, com o trabalho, a ter responsabilidade e independência.
Um inevitável cheiro de café
Os comércios tradicionais deixam Venda Nova com ares de cidade do interior, mesmo em meio a tanta movimentação. E um aroma bem conhecido e apreciado pelo mineiro chama atenção na Rua Padre Pedro Pinto: é a máquina de moer café do Nelsinho, que há 40 anos atende uma clientela fiel aos sabores do café torrado na hora.
Nascido em São José do Goiabal, interior de Minas, Nelson de Castro, 60 anos, chegou na capital com 11. Trabalhou como office boy e com a irmã, descarregando sacos de cafés, nos hipermercados.
“Depois de bater carga, aluguei uma máquina de café e comecei a moer os grãos com 19 anos. E nunca mais parei”, conta Nelsinho, relembrando o quanto trabalhou antes de ter o próprio negócio. Ele reclama das vendas.
Elas diminuíram porque a máquina não é mais novidade. “E antes, quando podiam ter os camelôs, tinha mais gente que parava pra comprar. Hoje. eles só olham e andam de um lado pro outro, tá todo mundo sem dinheiro”, lamenta Nelsinho.