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Conheça o comércio negro do bairro da Liberdade, em São Luís

Chamado de Quilombo Urbano, há mais de 100 anos a comunidade maranhense cresce em cultura e empreendimentos

2 out 2023 - 05h00
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Não nasci nem cresci no bairro da Liberdade, em São Luís, capital do Maranhão, mas, se pudesse escolher, lá certamente eu me sentiria em casa. A Liberdade é um bairro que respira arte, cultura, vida, um bairro que sempre está ativo, sabe? Que fica fervilhando.

Tem gente na rua, carro passando, gente comprando, vendendo, tem alguém na calçada, conversando. É um lugar em que vejo muita resistência, um lugar ancestral, onde encontro muitos como eu.

Cheio de lojas, comércios, padarias, barbearias, feiras livres, mercadinhos, bares, tem de tudo, para pessoas e para bichos. É o bairro com maior população negra da capital maranhense, mais conhecido como Quilombo Urbano.

Profissionais do estúdio Amorim Tranças, na Liberdade, em São Luís, Maranhão. Mais de mil clientes e cinco trancistas para dar conta do trabalho.
Profissionais do estúdio Amorim Tranças, na Liberdade, em São Luís, Maranhão. Mais de mil clientes e cinco trancistas para dar conta do trabalho.
Foto: Samária Passos/ANF

Bairro centenário formado pela população preta

O bairro da Liberdade teve seu reconhecimento oficial como Quilombo Urbano em novembro de 2019. Isso destacou as histórias de pequenos e médios empreendedores, além de evidenciar sua importância para a economia e desenvolvimento local.

A comunidade surgiu em 1918. Na época, era conhecida como Campina e Matadouro. Foi construída no Sítio Itamacaca, antiga propriedade de Ana Jansen, escravocrata do Maranhão na época em que o principal acesso era por barcos.

A população foi se constituindo, principalmente, por descendentes de africanos vindos da Baixada Maranhense, que começaram a trabalhar em diversos serviços, e ocuparam a região. Oriundos de quilombos, a população estabeleceu manifestações culturais, que, antes discriminadas, hoje movimentam a economia.

Rua Machado de Assis, na Liberdade, em São Luís, Maranhão: formado por pretas e pretos de quilombos há mais de um século, bairro fervilha comércio e cultura.
Rua Machado de Assis, na Liberdade, em São Luís, Maranhão: formado por pretas e pretos de quilombos há mais de um século, bairro fervilha comércio e cultura.
Foto: Samária Passos/ANF

Do preconceito ao empreendedorismo

A Liberdade é um bairro muito conhecido em São Luís, berço de manifestações culturais populares do Maranhão, como o bumba meu boi, tambor de crioula e cacuriá. Há diversos bares e casas de reggae, além de espaços de trancistas. A Liberdade, de fato, respira cultura negra e empreende a partir de pessoas negras.

Conheci o bairro pelos ditos populares e manchetes sensacionalistas da imprensa, como lugar perigoso. Fiquei com isso na cabeça, era criança, não tinha senso crítico, nem filtrava aquelas informações. Cresci com essa barreira.

Adulta, fui convidada para uma batalha de rimas organizada, patrocinada e realizada pelos moradores do bairro. Fiquei encantada e busquei conhecer mais sobre quem mora, artistas locais, mulheres e homens que empreendem.

Empreendimentos da Avenida Principal

Se tem uma coisa que nossas comunidades sabem é ser criativas. Assim é a história do seu Valter Gomes, da Avenida Principal, que toca o mercadinho com a ajuda da filha. O empreendimento tem mais de 30 anos, com clientes fiéis. Quando eles não têm dinheiro para pagar, deixam a conta pendurada.

Na mesma avenida está o Frigorífico Dois Irmãos, WK Vidros e Alumínios, além de barbearia, da galera que vende carvão, que faz recarga de celular, que vende água mineral. O ponto da Manu é panificadora e lanchonete. Começou vendendo bolos confeitados para festas de aniversário e hoje é a maior panificadora da Liberdade. Ela mantém outro ponto na Rua Corrêa de Araújo.

Manu, maior panificadora da Liberdade, em São Luís, Maranhão. Empreendimento cresceu e proprietária abriu outro ponto
Manu, maior panificadora da Liberdade, em São Luís, Maranhão. Empreendimento cresceu e proprietária abriu outro ponto
Foto: Samária Passos/ANF

Seu Olegário, um dos primeiros comerciantes do bairro

Na Rua Corrêa de Araújo está a loja de Seu Olegário, um dos primeiros comerciantes do bairro, com mais de 40 anos. Ele vende roupas, bolsas infantis, ursos de pelúcia, acho que qualquer coisa que você pensar para presentear ou comprar. Como a casa do proprietário fica no fundo da loja, seu Olegário aproveita para vender farinha, camarão, peixe seco e juçara, bebida comum no Maranhão.

Na rua Machado de Assis também tem de tudo, tudo mesmo: de pequenos a grandes empreendimentos, galeteria, lojas de temperos, de roupas, muitas lojas de roupas, mercadinhos, barracas de frutas e verduras, lugares para consertar celular, lojas de calçados.

Sandra, que vende cachorro-quente

No bairro da Liberdade conhecemos a história de Alessandra Lindoso, conhecida como Sandra. Ela vende cachorro-quente há vinte anos. A ideia surgiu da necessidade e se tornou sua maior fonte de renda.

Ela começou com o carrinho de um amigo. O equipamento estava deteriorado, mas, com pequeno investimento, foi arrumado. Sanda começou em uma noite com vinte pães e, em menos de um mês, tinha clientes suficientes para vender mais de 200 cachorros-quentes diariamente.

Alessandra Lindoso, a Sandra: vendendo cachorro-quente ela pagou a escola dos filhos, comprou casa e o seu xodó, a moto que chama de “menina dourada”
Alessandra Lindoso, a Sandra: vendendo cachorro-quente ela pagou a escola dos filhos, comprou casa e o seu xodó, a moto que chama de “menina dourada”
Foto: Samária Passos/ANF

Desse pequeno negócio, ela realizou muitos sonhos. Mãe solo, pagou escola para os filhos, a maior conquista de sua vida. “Adquiri minhas coisinhas de casa e adquiri a moto que eu tenho, que eu chamo de menina dourada, através da venda de lanche”, conta, orgulhosa.

Salão do Flamengo, com brasão do Palmeiras

Thay é a empreendedora do estúdio Amorim Tranças, que começou em 2017. Hoje sua clientela soma mais de mil pessoas e, para atender, são cinco trancistas. Além de empreendedorismo, tranças significam beleza e resistência, utilizando técnicas ancestrais.

Na Liberdade funciona também o negócio de seu Anselmo, empreendedor na área de distribuição de internet. Ele atua há 17 anos e tem mais de 250 clientes.

Outro estabelecimento bem conhecido é o Salão do Flamengo, funcionando há vinte anos. Detalhe curioso: a fachada gera dúvidas com o brasão do Palmeiras, mas é do Flamengo mesmo.

O Salão do Flamengo, com o símbolo do time de um lado da fachada, e a marca do rival, Palmeiras, do outro. Funciona há 20 anos na Liberdade, em São Luís, Maranhão
O Salão do Flamengo, com o símbolo do time de um lado da fachada, e a marca do rival, Palmeiras, do outro. Funciona há 20 anos na Liberdade, em São Luís, Maranhão
Foto: Samária Passos/ANF

Seu Simeão, uma lenda da Liberdade

São muitas as histórias dos pequenos e médios empreendimentos, como a de seu Simeão Gusmão, uma lenda local. Ele vendia cachorro-quente na praça. Começou há 40 anos e, depois, mudou para venda de comidas caseiras. Por conta de limitações físicas, sua filha está à frente do empreendimento.

Seu Simeão conta como foi o começo. “Ave maria, nessa época eu tinha muitos clientes, graças a Deus eu tinha muitos, eu vendia 25 quilos de pão de cachorro-quente por noite”, lembra.

Seu Simeão Gusmão e seu amigo Antônio Cardoso, pioneiros do comércio da Liberdade, em São Luís, Maranhão.
Seu Simeão Gusmão e seu amigo Antônio Cardoso, pioneiros do comércio da Liberdade, em São Luís, Maranhão.
Foto: Samária Passos/ANF

Música e artes marciais na rua com nome de poeta

A cultura é outro meio de fomentar a economia, como faz a Produtora Novo Quilombo, na Rua Gregório de Matos. Há 17 anos ela promove noites de reggae com DJs e concursos de danças. Na mesma rua, funciona a escola de artes marciais CT Guerreiros da Liberdade.

Na rua Gregório de Matos, no bairro da Liberdade, em São Luís, Maranhão, há noites de reggae e escola de artes marciais.
Na rua Gregório de Matos, no bairro da Liberdade, em São Luís, Maranhão, há noites de reggae e escola de artes marciais.
Foto: Samária Passos/ANF

Outro cara massa é seu Antônio José Cardoso, que vende água mineral, mas trabalhou com lanches, carne e tinha uma carroça de mudanças e descarte de resíduos. Ela era a sensação não só da Liberdade, mas de São Luís: colorida, com sinaleira de trânsito e som, exibia a seguinte frase emblemática: “a língua da gente é o chicote do corpo”.

ANF
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