Cultura e culinária transformam a periferia do Recife
Empreendimentos comerciais e iniciativas culturais ajudam a mudar a imagem violenta do Alto da Foice, na zona norte
Alto Nossa Senhora de Fátima, periferia do bairro do Vasco da Gama, zona norte do Recife. A Rua José Rebouças é a principal via de acesso de carro ou moto. Acesso é uma questão delicada na área, gera queixas frequentes de pessoas que vivem e visitam a comunidade. Com o objetivo de sanar esse problema, três micro-ônibus fazem o transporte complementar de forma gratuita.
Essa é uma das soluções, entre várias outras, criadas pela população do território popularmente conhecido como Alto da Foice. Segundo moradores antigos, a área recebeu este nome devido ao alto índice de violência vivenciada pela população, e por muitos destes crimes serem cometidos com foices.
A foice, juntamente com a enxada, o arado e outras ferramentas utilizadas no roçado, são velhas conhecidas da dona Maria Ana Rocha. Há cerca de 35 anos, junto com o esposo Pedro Rocha e três filhos, deixaram a cidade de Umbuzeiro, na Paraíba. Trabalhavam na roça e foram tentar uma vida melhor no Recife, mais precisamente, no Alto da Foice, local onde tiveram a quarta filha, encontraram moradia e um novo ofício, comerciantes.
“Quando compramos esta casa do seu Zé Pinto, o comércio existia. Daí, eu e meu esposo assumimos e colocamos o nome de Barraca do Seu Pedro. Já vendemos de tudo, era uma espécie de mercearia, foi o principal ponto de comércio do Alto. Mas a comunidade foi crescendo, outros comércios foram abrindo, o movimento foi caindo e a gente foi deixando de vender algumas coisas. Hoje só vendemos bebidas e água mineral”, relata.
O papel da mobilização da periferia
Apesar da violência, das dificuldades e da falta de políticas públicas ser uma realidade no cotidiano dos subúrbios brasileiros, a cultura promove avanços que muitas vezes são frutos da mobilização dos moradores, como acontece no Alto Nossa Senhora de Fátima.
A comunidade dispõe de equipamentos públicos e culturais como a Escola Municipal Otávio Meira Lins, Espaço Cultural Samba Coco, Grupo Cultural Maracatu Toque de Foice, Associação Esportiva de Dominó, o Espaço Multicultural Cantinho do Axé, entre outras.
O projeto social Comunidade Ativa, iniciativa dos moradores, promove ações culturais, de lazer e esportes, distribuição de cestas básicas, sopão semanal e construção de infraestrutura. Foi a partir dos esforços do Comunidade Ativa e do programa Mais Vida nos Morros, da Prefeitura do Recife, que a comunidade recebeu ações de drenagem, pavimentação e colocação de corrimão na escadaria de acesso à Rua Antônio Pinto Lapa.
A mesma escadaria leva a um importante ponto de comércio e cultura da comunidade, o Espaço Multicultural Cantinho do Axé, que há sete anos iniciou suas atividades como uma espécie de soparia. Hoje, é ponto de referência no turismo periférico de Pernambuco.
Cantinho do Axé
O que inicialmente era um projeto para gerar renda e sustentar a família, se tornou uma iniciativa sociocultural que movimenta a comunidade em várias dimensões: econômica, social, cultural, de identidade e pertencimento.
Diego Soares dos Santos, 37 anos, e sua esposa Danielle Alves da Silva Oliveira, são os idealizadores e estão à frente do negócio, que atualmente emprega 13 colaboradores entre cozinheiros, barman, atendentes e garçons, todos moradores do Alto Nossa Senhora de Fátima e de periferias próximas.
A reportagem da ANF conversou com o casal presencialmente e acompanhou a correria do trabalho na 18° edição do Dia da Consciência Negra do Maracatu Toque da Foice. A programação teve início com apresentações culturais no Cantinho do Axé, depois ocupou uma estrutura montada no Espaço Cultural Samba Coco, e contou com a participação voluntária de vários produtores e fãs da cultura popular negra, indígena e pernambucana.
Na ocasião, nenhuma violência. A cultura, a culinária e arte deram o tom.
Chega no sapatinho e vai dando a ideia
Além do Cantinho do Axé ser especializado na culinária afro-brasileira, o espaço carrega o compromisso de fortalecer a cultura e os artistas locais, promovendo encontros e apresentações. Todas as pessoas que chegam têm acesso aos instrumentos musicais de percussão espalhados pelo ambiente e podem usar o microfone aberto para cantar, recitar poesias ou simplesmente deixar sua mensagem.
“Ser uma referência sociocultural dentro e fora da comunidade sempre foi um propósito nosso, devido às dificuldades que enfrentamos diariamente. O trabalho que fazemos é importante para abrir os olhares da população, para as pessoas entenderem que as comunidades não são só feitas de marginalidade e sim de muita cultura, arte, culinária e turismo”, afirma Diego Soares.
Em sua primeira visita ao espaço, a técnica de enfermagem Raiza Raiane Constâncio de Paiva, moradora da cidade de Igarassu, em Pernambuco, elogiou a culinária servida, a proposta do negócio e o ambiente.
“É importante fazer esse trabalho de desmistificar o território periférico para pessoas que geralmente não frequentam esses espaços. No entanto, é necessário prestar atenção no entorno, perceber se as pessoas da própria comunidade também se sentem convidadas, para que não se torne algo apenas para fora”, alerta, cirurgicamente, a técnica de enfermagem.