Jogos desenvolvidos na periferia levam protagonismo negro para telas e tabuleiros
Expo Favela apresentou jogos digitais e de tabuleiro que têm protagonismo negro como parte importante da narrativa
Um complexo biológico na avenida Paulista é ameaçado e um jovem cientista negro tem a missão de conseguir chegar ao local e encontrar a cura capaz de salvar toda a população brasileira. Essa é a premissa do jogo “A Cura”, desenvolvido pelo designer de jogos digitais Victor Garcez, 25.
Morador da Vila Guacuri, bairro de Pedreira, na zona sul de São Paulo, ele levou o jogo para a Expo Favela, que aconteceu no último fim de semana na capital. Ele foi um dos vários empreendedores que ocuparam a área de expositores no quinto andar do WTC Events Center.
Apesar da forte presença de negócios mais tradicionais, como o ramo da moda ou alimentício, os produtos digitais, como os games, também se fizeram presentes.
Em abril do ano passado, durante a primeira edição da feira, Victor também participou do evento e ficou entre os 10 projetos selecionados para o reality show “Expo Favela: O Desafio”, exibido pelo programa "É de Casa", da TV Globo.
“Neste ano voltamos muito mais potentes, realizados, com um propósito e incluindo mais pessoas. O evento ajuda a se conectar com o público diretamente que a gente quer falar”, afirma o designer.
O jogo, que nasceu como trabalho de conclusão de curso em 2018, conseguiu se expandir para além das telas, transferindo algumas dinâmicas para o mundo real e ainda permitindo acessibilidade.
Em “A Cura”, uma das etapas da jornada do protagonista se chama “VE-Power”, um teste psicológico que tem como base a lógica do tradicional Jokenpô. Victor adaptou essa dinâmica para o gestual, permitindo que pessoas com deficiência física também possam jogar.
No caso do VE-Power, os elementos água, fogo e ar substituem o “pedra, papel e tesoura”, podendo ser jogado com os cotovelos ao invés das mãos. Victor conta que foi um especialista em acessibilidade que sugeriu essa possibilidade.
“Trato o jokenpô na história do jogo como uma oportunidade, com simplicidade, retratando todo mundo de uma maneira igualitária”, conta o desenvolvedor, que se sente feliz com o reconhecimento que o jogo vem tendo.
“Quando a gente faz algo sobre uma determinada dor, as coisas só fluem, só crescem. A gente tem que fazer uma coisa que se sinta mais feliz. Trabalhar com games me traz essa possibilidade, de resgatar a diversão nas pessoas.”
Para Lyara Oliveira, diretora de inovação e políticas do audiovisual do SPCine, o público periférico apresenta uma “possibilidade de atuação criativa muito grande” para o mercado de jogos digitais.
“A gente tem um potencial gigantesco de ideias, de possibilidades, de uma garotada que sabe tudo de jogos, mas que às vezes não entende como pode entrar nesse setor, como ser profissional dentro desse setor”, afirma.
A SPCine promoveu uma palestra sobre o mercado de games durante a Expo Favela e uma mentoria para interessados em empreender neste ramo. Pedro Zambon, gestor de incubação da área de games da estatal, apresentou as possibilidades na área, que vão desde o playtester, um profissional responsável pela testagem dos jogos e identificação de possíveis falhas, quanto o desenvolvedor do jogo em si.
Para 2023, a SPCine pretende lançar um “Hub Móvel”, um veículo que visitará regiões periféricas com o objetivo de mostrar aos jovens, público-alvo do projeto, como investir nesta carreira.
“A gente vai fazer ações, algumas voltadas para a jogabilidade, para atrair jovens que gostem de jogar e fazer despertar o interesse. A ideia é que a gente tenha um equipamento que vai se deslocar em diversos pontos periféricos da cidade, um mês em cada lugar, oferecendo jogos para a garotada, oficinas, palestras, uma série de possibilidades para expandir o universo dessa garotada”, afirma Lyara.
Jogos também na mesa
Além dos games, a Expo Favela também contou com empreendedores apresentando outro segmento de passatempo: os tabuleiros. É o caso da Maloca Games, que tem como foco a produção de jogos afrocentrados.
Rennan Gonçalves, 30, é um dos fundadores e conta que a empresa surgiu do desejo de desenvolver jogos que representem pessoas excluídas tanto da sociedade quanto do universo da jogabilidade.
“Nosso objetivo é valorizar essas pessoas e jogos, falando da cultura delas, representando elas seja pelo corpo, pela orientação sexual. A gente tem vários jogos que trazem isso à tona”, explica.
Rennan, que é da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, sempre gostou de jogos de tabuleiro e sabe que este é um hobby caro. Por conta disso, outra característica presente nos jogos lançados pela Maloca é o baixo custo.
“A gente faz jogos modernos, com mecânicas que são arrojadas, dinâmicas, iguais a de jogos de tabuleiro do nicho para a população em geral num preço acessível e numa qualidade legal para caramba. Isso a gente consegue garantir”, afirma Wagner, que lamenta não ver o mercado de jogos de tabuleiro investir mais no público periférico.
“Nós da Maloca, de uma forma feliz e ao mesmo tempo descontente, sabemos que este mercado é um universo que ninguém está indo atrás [deste público]. A favela quer jogar e a gente está se colocando no papel de ensinar as regras.”
A empresa tem dois jogos lançados: o Masai e o Axé. O primeiro envolve a confecção de colares típicos de um povo semi-nômade na região entre o Quênia e a Tanzânia, no continente africano. Já o Axé é descrito como uma espécie de “dominó”, cujo objetivo é unir as energias dos orixás representados pelas cores das cartas.
“Ele é um jogo simples, de conectar cores, e o objetivo é introduzir o assunto da energia do axé, mas em um viés em que a pessoa pode ser da umbanda, do candomblé e pode dialogar sobre isso se achar necessário. É um jogo que pode ser jogado na escola ou em casa”, comenta.
Além desses, a produtora também trabalha no desenvolvimento de novos jogos, como o Pipas, que resgata a dinâmica de “aparar” a rabiola dos adversários, e o Favela Venceu, que visa a construção de uma comunidade bem sucedida.
“Nós vamos construir juntos uma favela com muita educação, muita diversidade e com incentivo ao estudo dentro dela. Nosso ideal é ter uma favela evoluída, sustentável e que não tenha os problemas estruturais que ela tem”, explica Rennan.
Um desses “problemas estruturais” presentes no jogo seria a UPP, inspirado no modelo da Unidade de Polícia Pacificadora, criada no Rio de Janeiro na década passada. Em “Favela Venceu”, a UPP é uma carta que espanta novos moradores para a favela que o jogador está desenvolvendo.