Literatura feita na periferia avança com ficção científica
Produção que se firmou com olhar realista começa a ter ramificações no terror, na fantasia e no insólito
Como movimento, a literatura que brota nas quebradas do Brasil começa a ter força no início deste terceiro milênio. Mas a pegada realista vem se desdobrando em outras vertentes, como a ficção científica. Afinal, na favela também há quem prefira os mundos possíveis além da terra firme.
Para atender esse público, três amigos da zona Norte paulistana, escritores e envolvidos com edição de livros, fundaram, em 2018, a editora Kitembo – termo de origem angolana, representa uma divindade ligada ao tempo.
A editora é a única no país especializada em ficção científica. “A gente sentia falta dessa produção feita na periferia por gente preta”, conta Anderson Lima, 40 anos, editor e um dos fundadores.
O negócio começou na sala da casa de Israel Neto, 35 anos, fã de ficção científica e escritor com quatro livros publicados, três pela Kitembo, que ajudou a fundar. O investimento inicial, do bolso dos fundadores, foi de R$ 3 mil.
“A ideia era disputar o imaginário por meio da ficção, publicando autoras e autores pretos, procurando mudar o cenário, para pagar direitos autorais e mexer na cadeia produtiva, como ter editores e revisores pretos”, explica Israel.
Crescimento na pandemia
Durante a pandemia causada pela coronavírus, o negócio cresceu via internet, possibilitando que a produção chegasse a diversos territórios. Antes da covid-19, a Kitembo tinha dois títulos publicados; depois, 15. As obras chegaram ao Brasil inteiro.
E autoras e autores chegaram de diversos territórios. Atualmente, são 40, entre quem escreve e ilustra. São artistas do Ceará, Bahia, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Piauí, Amazonas, Paraíba, Brasília e São Paulo.
Apesar da internet ter dado o impulso principal ao negócio, 60% do faturamento da editora vem da presença física em feiras e eventos, como a Expo Favela, em São Paulo, onde a Kitembo montou seu estande.
Conexões estéticas
A produção artística do ramo literário periférico que cresce com ficção científica envolve o universo geek, de consumidores de cultura pop e nerd. Essa literatura dialoga ainda com o afrofuturismo, movimento cultural, estético e político.
“Esses aspectos se cruzam no sentido de escrever futuros em que, além do protagonismo preto, utilizamos ferramentas tecnológicas contemporâneas e ancestrais”, explica Israel Neto.
O terceiro componente do trio fundador da editora Kitembo, Henrique André, completa a explicação: “Não é o realismo fantástico na linha de Gabriel García Márquez. É o universo dos sonhos e pesadelos que disputam os sentimentos humanos”.
Ficção científica periférica
Uma autora do Rio de Janeiro e um escritor de São Paulo são considerados precursores da literatura de ficção científica periférica.
Ela é Lu Ain Zaila, que escreveu a Dualogia Brasil 2048, publicação independente. A obra é composta por dois romances (In) Verdades, de 2016, e (R)Evolução, de 2017, que contam a história da heroína negra Ena. Dualogia está sendo republicada pela editora Kitembo.
Além de Lu Ainda Zaila, outro percursor é Fábio Kabral. Com o livro O Caçador Cibernético da Rua 13, narrativa futurista com elementos da mitologia iorubá, ele deu o pontapé inicial à produção de ficção científica identificada com a negritude e as quebradas do Brasil.
Já há produção acadêmica sobre essa literatura, como a pesquisa de doutorado de Roberta Tszesnioski, desenvolvida na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).