Livrarias e sebos se reinventam para garimpar leitores em BH
Fora do eixo Centro-Sul de Belo Horizonte, busca por pessoas que vão atrás da leitura é direcionada para o comércio local e o digital
Quem passa em frente à tímida entrada de uma escadaria de quatro lances e 50 degraus, cercada por clínicas de saúde e um comércio movimentado na rua Santo Antônio, no bairro de Venda Nova, em Belo Horizonte, não imagina que ali está guardado um dos maiores acervos de livros usados de Minas Gerais.
Há quase 35 anos na mesma rua, o sebo Livraria Navi passou por diversos pontos, até voltar para onde tudo começou, época em que Ademir José de Oliveira, 71 anos, proprietário, ainda lecionava aulas de matemática e física nas redondezas. O prédio, hoje vazio, foi construído (literalmente) por ele e abriga, no último andar, cerca de 60 mil livros.
Mas o admirável acervo sempre foi mantido à base de muita resistência pelo professor. Em uma busca rápida na internet ou mesmo caminhando pelos bairros da capital, mais distantes do desenho original de sua construção, cujo limite é demarcado pela Avenida do Contorno, não é difícil entender o motivo.
Enquanto a regional Centro-Sul possuía 96 estabelecimentos de comércio de livros, levantados pela pesquisa O livro em Minas Gerais – a pesquisa mais recente, por regiões, sobre o comportamento do leitor “o que se lê, o que se produz”, realizada pela Câmara Mineira do Livro, em 2015, Venda Nova constava com apenas nove registros. Desses, dois já não existem mais. Três estão ligados à instituições religiosas e, dois exercem a atividade principal de papelaria. Um mudou para a regional Pampulha. O Sebo Livraria Navi é o único da região dedicado exclusivamente à venda de livros, novos e usados, vinis e filmes, e que ainda realiza atendimento presencial.
“Só não fechei ainda porque não pago aluguel, mas estou cheio de dívidas”, diz. O principal recurso vem das vendas online, para o público já fidelizado pelo WhatsApp. Ainda assim, o faturamento não passa de duzentos reais por semana, sendo que, antigamente, chegava a dois mil reais. Boa parte do acervo está catalogado, desde 2010, na Estante Virtual. O Sebo Livraria Navi é o sexto do Estado com maior número de livros registrados na plataforma e o quinto da capital.
Na Estante Virtual, encontra-se de tudo: desde estabelecimentos tradicionais e grandes distribuidoras, até pequenas iniciativas, que, em sua maioria, nem contam com loja física. Quem persiste no atendimento ao público, precisou encontrar novas estratégias, como é o caso da Agência de Livros, no bairro Cidade Nova, região Nordeste. Há 25 anos no mercado e com um acervo de 40 mil livros, Sérgio Gualberto, 47 anos, migrou do Centro há cinco, buscando um novo público.
Atualmente conta com apenas dois funcionários, sendo que uma se dedica exclusivamente às vendas pela plataforma e à postagem nos Correios e o outro cuida do movimento na loja física, faz o serviço de gerência e cuida das redes sociais. Muito diferente de quando começou, lembra Sérgio, que também já exerceu os serviços de motoboy e vendedor e costumava abordar os clientes na rua e levá-los para Rua dos Tamóios, que tinha apenas com uma prateleira e duas caixas.
Mas engana-se quem pensa que o virtual não se inspira nas longas e antigas práticas dos livreiros. Todos os dias, Daniel Lopes Gualberto, 27 anos, filho de Sérgio, realiza um intenso trabalho de curadoria de obras para serem postadas no perfil do Instagram e no status do WhatsApp da loja, outro importante canal de vendas. A lógica é similar à da vitrine: livros em melhor estado, capas chamativas e os que estão “bombando”.
Do Centro às bordas
Com um nome já tradicional, a Livraria Ouvidor do bairro Floresta também saiu do Centro para investir no comércio local da região Leste. Da rua Itajubá, quase esquina com a Avenida Contorno, trouxe a tradição familiar de livreiros que passou do seu Amadeu, proprietário da histórica livraria, que levava seu nome, para os sobrinhos. A rede, que já contou com mais de cinco estabelecimentos, mas atualmente conserva dois.
Rafael Santarém, 38 anos, um dos sócios-proprietários da loja desde 2016, relembra as muitas histórias que permeavam as prateleiras de um estabelecimento ao outro quando começou no ramo, há mais de uma década, ainda como auxiliar de serviços gerais. Formado na rede pública da região Norte da cidade, o mundo das letras e dos livros estava distante de seu cotidiano até ser admitido na Ouvidor em um período escolar, o de maior fluxo do ramo.
A intensa comercialização, que ia de dezembro ao primeiro trimestre do ano seguinte, durante décadas garantiu o orçamento de muitos sebos e livrarias de rua na cidade. Foi assim nos tempos áureos de Ademir, em Venda Nova, e também de seu Amadeu, no coração da cidade. A Agência de Livros é uma das poucas que têm conseguido manter a compra, venda e troca de livros didáticos com os pais.
A Ouvidor do Floresta conta com as vendas de usados na Estante Virtual e, recentemente, passou a integrar o catálogo da rede Magazine Luiza, mas apenas com livros novos. Também recebe pedidos pelo WhatsApp, enquanto a página do Instagram fica a cargo da divulgação, já que “ter muitas plataformas de venda torna o trabalho difícil. Se você vende em uma, precisa dar baixa em todas”, explica Rafael. É no contato com a rua que livros de primeira, segunda e variadas mãos se misturam, e a magia do livreiro aparece.
O comércio de bairro traz novas dinâmicas para o trabalho. Além de incluírem alguns itens de papelaria e xerox para atrair clientes, a proximidade com outros comerciantes e moradores faz da Agência de Livros um espaço de encontro. “No Centro, era todo mundo por si”, conta Daniel. “Hoje, a gente tem conseguido expandir [o catálogo] para literatura estrangeira, religiosa, livros técnicos, de culinária e autoajuda, que são os mais procurados”, complementa.
Para exibição na loja, livros novos e em bom estado de conservação são priorizados. Os mais antigos e raros ficam guardados no acervo de cerca de 40 mil livros em Sabará, Região Metropolitana de BH, cujas visitas são realizadas por meio de agendamento.
Livreiro ou empreendedor?
A nomenclatura não é unânime, e divide opiniões. Os olhos dos mais antigos, como Ademir e Rafael, brilham quando são chamados de “livreiros”. Já os mais jovens, como Daniel, investem no estudo do empreendedorismo com o objetivo de criar e reciclar estratégias para manter o mercado dos livros vivo, principalmente na era digital.
Entre as diversas possibilidades, peço a cada um que indique um livro.
Daniel me leva à seção de “literatura nacional”, a menos procurada da loja, e indica alguns clássicos, como “O Ateneu”, de Raul Pompéia, e “O Clube dos Anjos”, de Luis Fernando Veríssimo. Mas diz que, normalmente, prefere deixar o cliente à vontade, sem direcionar tanto.
Rafael também gosta de saber o estilo do cliente, o que não o impede de dar seus pitacos de leitura. “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, é um dos que mais o impactou entre os lidos recentemente. Ao lado, mostra os que mais têm saída, e suas repercussões, como Manoel de Barros, para quem gosta de poesia, e Conceição Evaristo, sobre temas da negritude.
Para Ademir, depende muito do estado de espírito, e não é só o de quem compra. Na primeira vez em que estive no sebo, em 2013, sem muita conversa indicou “História do pensamento econômico”, de E. K. Hunt e Howard J. Sherman, livro que, em sua opinião, “todo mundo tem que ler”. Por isso mesmo, guarda um número significativo de exemplares, que presenteia a todo universitário que passa por ali. Dessa vez, me deu “A Rua das Ilusões Perdidas”, de John Steinbeck, um de seus (muitos) autores preferidos.