Parolin além do preconceito: o comércio do bairro curitibano
Moradores reclamam que imprensa só mostra situações negativas do conglomerado periférico de 70 anos, colado ao centro
Parolin é um bairro periférico emblemático da capital paranaense. Com 70 anos, estampa os jornais com notícias negativas – não existem só elas – e choca quem acha que Curitiba é uma cidade modelo. Vizinho ao centro, sua existência lembra a luta por justiça social com a ousadia de um povo pobre, feliz e que luta contra os estigmas da violência, das enchentes, do bairro ser uma favela. Essa má fama, distorcida, atinge diariamente os moradores.
Para ir até lá, quatro carros de aplicativo cancelaram a viagem. Consegui embarcar no quinto, com um motorista venezuelano que mora no Parolin. “É considerado zona de risco moça, por isso os motoristas cancelam, eles têm medo, mas eu não, porque eu moro lá há sete anos, desde que eu vim para Curitiba”, conta Ramon Perez, 31 anos.
A história de Ramon
Ele veio para o Brasil em 2013, ficou três anos em Roraima e chegou a Curitiba para trabalhar como pedreiro. Trabalhou por dois anos, mais de quatorze horas por dia para se sustentar, enviar dinheiro à família em Roraima e na Venezuela, e comprar um carro usado para poder alternar o trabalho pesado com um mais leve.
“Quando cheguei, loquei um quarto no Parolin e os vizinhos viam o horário que eu saía de casa, as dificuldades, e começaram a me chamar para jogar cartas, comer cachorro-quente para pagar no fim no mês, e até jogar bola no domingo. Não tem lugar como nossa casa, mas esse bairro se tornou minha segunda casa”.
Ramon sorri enquanto estaciona e finaliza a corrida. Ao sair, deixa a recomendação: “Cuidado moça, não saia fotografando sem perguntar e cuidado por onde passa. Você vai andar sozinha, o pessoal é legal, mas você não é daqui, né?”.
Bairro jovem, com expectativa de vida menor
Desço do carro e vou andando à procura do Bar do Boca. Começa a escurecer, o movimento na rua é intenso e, se em outros bairros os comércios estão fechando, aqui começam a ganhar vida. As cooperativas de reciclagem seguem funcionando, as crianças estão na rua jogando bola, bares com sinuca, barbearias abertas, cadeiras em frente das casas, barraquinhas de cachorro-quente e distribuidoras de bebida.
A falta de saneamento básico, asfalto e equipamentos públicos de saúde e lazer, somados à violência, consumo de drogas e alta exploração do trabalho, constrói a realidade cruel: a expectativa de vida no Parolin é de 69 anos, doze a menos do que na vizinhança. Pouco mais de 11 mil pessoas moram no bairro, a maioria com até 35 anos.
Sons e silêncios no cotidiano do Parolin
A juventude se reflete nos sons: risadas, jovens reunidos falando alto, a maioria dos bares e comércios toca música, que se mistura ao barulho de caminhões saindo dos barracões de reciclagem, do portão fechando e do trânsito intenso. Há pequenos intervalos de silêncio, quase orquestrados, quando o som vai diminuindo e é possível escutar os passos nas ruas e o barulho das latinhas se abrindo. Um silêncio maior ocorre quando algo foge da normalidade. É sutil e intenso: pode ser um carro desconhecido, alguma movimentação considerada diferente, ameaçadora, ou simplesmente a tentativa de ouvir algum princípio de discussão ou fofoca.
Me distraí percebendo nuances do bairro e fotografando as margens do rio Belém com a obra de desassoreamento inacabada, provável causa da piora das enchentes, quando chega um rapaz e diz: “Você pode tirar foto do rio, mas não da rua. Pra que está tirando foto daqui?”
“Se é pra fortalecer as mulheres do bairro, está tranquilo”
Apresentei-me, expliquei que estava escrevendo sobre os comércios do bairro e perguntei onde poderia fotografar. O rapaz olha desconfiado e pergunta se conheço algum morador. Falei de amigas, lideranças comunitárias e do pessoal da feira de empreendedoras.
Ele sorri e fala que “se é pra fortalecer as mulheres do bairro tá tranquilo, vou te acompanhar nisso aí, jornalista”. Ganhei um acompanhante, que não quis dizer seu nome e não se deixou ser fotografado, mas foi um guia e tanto na nossa caminhada.
Descobri que o Bar do Boca fica no final da rua e que, para falar de todos os comércios, eu teria que visitar o bairro pelo menos uma vez a cada dia da semana, pois sempre tem ambulante novo. Meu colega pergunta se eu não quero conhecer a Banca do Manoel, que começou na pandemia e homenageia o pai de cinco irmãos – três ficaram sem salário, enquanto dois faziam bicos.
Banca do seu Manoel, um negócio familiar
Manoel Araújo de Lima, o filho Eduardo e a filha Bruna abriram a banca. “A gente vende salgadinho, refrigerante e bala, tem poucas coisas, mais sai pelo menos umas dez vendas por dia, já ajuda”, explica Manoel, que está assistindo televisão atrás do balcão.
Tímido, o senhor de 75 anos conta que se emocionou com a homenagem dos filhos ao dar seu nome à banca. Manoel diz com orgulho que todos são trabalhadores esforçados, completaram o ensino médio e fizeram outros cursos.
“Sou da geração que ninguém da família sabe ler; já meus filhos, todos, terminaram a escola, inclusive a Bruna, que tem deficiência cognitiva”, conta, sorrindo. Sobre o cotidiano da Banca, vende muito salgadinho de bacon, aperitivo de cerveja, e doces. Quem costuma ficar no balcão é a filha, quem busca os produtos na distribuidora é o filho mais velho, e os outros trazem os clientes.
Más experiências com o jornalismo
Durante a pandemia, com os filhos desempregados, a família teve que se virar procurando trabalhos a distância, de limpeza, bicos de entrega de marmita. A construção da banca aconteceu antes da aplicação da primeira dose da vacina, mas a estreia aconteceu após a terceira dose.
“Aqui não tem janela, não teria como controlar a doença, essa banca surgiu para melhorar a nossa vida, não brincar com sorte e procurar a morte”, resume seu Manoel, agora sério. Peço para tirar foto dele, que se nega, e meu colega de reportagem cai na risada.
“Vai ser difícil você tirar foto do povo aqui, a gente não sabe o que você vai fazer. Já aconteceu de gente da televisão tirar nossas fotos e, depois, usar em jornal para falar que conhecemos bandidos ou que fizemos algo que não procede”.
Fico triste pelas más experiências que os moradores do Parolin têm com o jornalismo e seguimos para fotografar a fachada da banca.
Lanche de pernil do Pikachu é o que mais vende
Nossa próxima parada é no lanche do Pikachu, com uma mesa simples sobre a qual estão os ingredientes para sanduíche de pernil, calabresa, linguiça e frango. A mesa fica em frente a uma barbearia e ao lado de uma distribuidora de bebidas, com mesas onde o pessoal está jogando truco.
Seu Pikachu, como é conhecido, se chama Edson Carvalho, 56 anos. Aposentou-se recentemente e sempre foi elogiado por ser bom cozinheiro. Ele monta a mesa às 15 horas e costuma ficar até as duas da madrugada, de quarta a domingo. O sanduíche que mais vende é o de pernil, famoso por ser bem temperado e grande.
Edson é morador do Parolin, do outro lado do bairro, mas escolheu as ruas mais movimentadas para aproveitar o fluxo da barbearia do genro. Enquanto vai montando nosso lanche, meu acompanhante de reportagem conta como me encontrou na rua. Eles dão gargalhadas e escuto mais uma recomendação.
“Não pode fotografar por aqui, não; é a região dos nóia, eles são tudo gente boa, mas tem uns que não podem aparecer em foto”, diz rindo. Então para de fazer nossos lanches, anda até a frente da mesa e mostra uns rapazes parados em frente a pequenos becos do bairro. “Por ali é melhor não tirar nenhuma foto”. Ele entrega nossos lanches e chama a vizinha Sheille, da distribuidora. “Ajuda a menina aqui falar de comércio do bairro, você pode aparecer em foto”, diz rindo bastante. Aparece uma jovem na grade da distribuidora e diz “oi, o que eu preciso fazer?”.
Irmãs pagam impostos em dia visando expandir distribuidora de bebidas
Sheille Freitas tem 30 anos. É dona de uma distribuidora de bebidas com a irmã. As duas são contadoras, trabalham em escritórios durante o dia, tocam a distribuidora à noite e participam da feira de empreendedoras do Parolin na sexta e sábado. O investimento veio da rescisão de doze anos de trabalho e da venda de um carro.
“Sou eu que fico mais aqui, minha irmã faz o corre burocrático. É tudo certinho, nós temos registros e pagamos impostos, mas a maioria não. Tem lugar que é bem maior que a nossa loja e nunca se registrou. Mas ninguém liga para essa parte da cidade, a gente registrou porque tem escritório para isso e, um dia, a gente vai expandir. Aqui o pessoal abre as lojas para sobreviver e vai dando um jeito na papelada, quando vai precisando”, explica Sheille.
Mais uma vez escuto conselhos sobre o cuidado com fotos, principalmente perto do Bar do Boca. O próprio Boca está na mesa ao lado, jogando truco e bebendo. Olha para nós rindo e solta: “Eu não vou parar meu jogo pra dar entrevista não, volta amanhã meio-dia, ou melhor, depois da uma hora, pode ser, que eu já almocei”, responde, mal olhando para mim. Explico que só consigo ir à noite ou no final de semana. Ele coloca mais energético na bebida e manda:
“Esses estudantes que vêm aqui são muito chatos, é sempre uma duas horas de entrevista, bem no tempo que gente tem para descansar. Menina, vai lá no bar, fala com o funcionário que tá no balcão, não tira foto das mesas de sinuca, só se deixarem, e pode dizer que eu mandei te responderem. Mas não atrapalha o movimento, e não sai muito tarde, que motorista de aplicativo é difícil querer entrar aqui à noite. Pede pro menino (ele se refere ao meu acompanhante) te levar na Brigadeiro Franco, para você ir embora”.
Agradeço e seguimos para o bar, que fica a duas quadras.
No Bar do Boca, o funcionário também não gosta de ser entrevistado
Virando a esquina, escutamos a música Fim de Semana do Parque, clássico do Racionais MCs, vindo de uma jukebox. O bar está animado. O lugar é amplo, tem salão principal, mesa de sinuca grande, poucas mesas de plástico com cadeiras, um balcão que divide o espaço do estoque de bebidas e uma sala pequena, com mesa de sinuca menor.
Há grande circulação de casais, pessoas em situação de rua, jovens, gente que ainda veste os uniformes das empresas, interagindo com intimidade. Meu companheiro de reportagem vai direto ao balcão, pede uma bebida e avisa que o Boca pediu para o funcionário falar comigo. Diego pergunta de forma ríspida: “Por que, o que ela quer?”.
Meu acompanhante responde, em tom de brincadeira: “Você não sabe falar, não? Ajuda a Rai” – meu nome é Raissa, e me surpreendo ao perceber que ele lembra do meu nome, além de me chamar por um apelido. A essa altura, ainda não sei seu nome, mas sei que ele tem 20 anos, terminou o ensino médio no ano passado, não conhece a mãe nem o pai e vive com um tio de 80 anos. Em todo nosso passeio pelo bairro, foi me contanto um pouco da sua vida, mas sempre com receio. Ele torce para o São Paulo e dorme até tarde todos os dias.
Voltando ao funcionário do Bar do Boca, Diego olha para mim e diz “moça, espera eu atender o balcão, e eu te chamo”. Esperei e ele chamou com um olhar de desconfiança. Saiu falando “meu nome é Diego Barbosa, tenho 31 anos, trabalho aqui duas vezes por semana, eu ajudo o Boca e o Boca me ajuda, complementa a minha renda, e o que mais gosto é de conversas com pessoas e ver o movimento”.
Percebo que meu colega de reportagem fez uma pré-entrevista, eu sorri para Diego e perguntei sobre seus outros dias da semana. Ele trabalha sem registro no que aparecer, mora no Parolin e gosta do bairro. Peço para tirar foto, ele se arruma e tiramos. Agradeço a entrevista e saio.
Motorista confirma: não entraria no Parolin
Meu acompanhante de reportagem diz que está ficando tarde, conta um pouco sobre a feira de empreendedoras que rola sextas e sábados, convida para voltar de dia e finaliza dizendo que “foi legal dar um rolê de jornalismo mais de boa. Volta mais vezes, tem muita coisa pra contar sobre nós. Agora vamo andando que eu vou te levar lá em cima, onde é asfaltado, para você ir pra casa”.
Seguimos andando, sem poder tirar muitas fotos. Agora há muitos homens cuidando de cada viela, há mais nóias nas ruas, menos carros e poucas crianças. O clima mudou, meu acompanhante me olha e diz “ixi moça, essa hora gente da imprensa não é bem-vinda aqui. Quando voltar, me procura na esquina do Bar do Boca, tamo sempre por ali, e volta mesmo”.
Entro no carro de aplicativo para ir para casa. O motorista confirma o endereço e diz “moça, vi que veio andando lá do Parolin, essa hora aplicativo não entra lá mesmo”. Respondo “me avisaram”. Fomos para casa em silêncio. Olhei para o relógio, eram 22 horas, nem tão tarde assim.