Cria da favela, aluno de Arquitetura “não sabia o que era USP”
Paulo Nunes nasceu na São Remo, de família precursora da comunidade. Estudou por quatro anos até passar no vestibular
O Visão do Corre publica o segundo de três perfis de crias da favela São Remo que estudam na Universidade de São Paulo (USP), vizinha da comunidade. A aglomeração de barracos começou na década de 1960, com trabalhadores que construíram a USP. Universidade completa 90 anos.
Paulo Rogério Nunes dos Santos, 28 anos, é aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) e deve se formar no ano que vem. Nascido no Hospital Universitário (HU) do campus central, sua família é uma das precursoras da favela São Remo, ao lado da Universidade, na zona oeste paulistana.
Sua trajetória de vida inclui moradia em comunidade próxima à São Remo, a Favela da Linha, no Jaguaré, além de infância e adolescência no Capão Redondo, extremo sul de São Paulo. “Não sabia o que era USP no terceiro ano de ensino médio”, diz.
Estudante de escola pública, nunca reprovou, “era quieto e fazia o necessário para passar”. Gostava de desenhar, queria ser arquiteto, mas até ser aprovado no vestibular da Fuvest, que seleciona para a USP, foi uma saga.
Morando com a madrinha, que considera mãe porque o criou, trabalhou como garçom, auxiliar administrativo, auxiliar de produção, feirante, servente de pedreiro, entre outras ocupações. E estudou durante quatro anos até ser aprovado no vestibular.
Sonhava em construir prédios
Quando passava de trem ao lado da marginal Pinheiros, Paulo sonhava em construir prédios como os que via pelo caminho. Após finalizar o ensino médio, indignado com o cenário em que vivia e a falta de oportunidades, decidiu fazer faculdade.
Pesquisou e descobriu que a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP estava entre as melhores. Conseguiu bolsa em cursinho. Trabalhando e estudando, tentou passar no vestibular da Fuvest. Não entrou.
Insistiu mais um ano, nada. Pediu demissão do trabalho, conversou com a madrinha, ajudou em casa com a rescisão e encarou um terceiro ano de estudos. “Ficava o dia todo estudando. Sábado e domingo, fazia bico na feira. Devorei os livros. Comecei a gostar, mas fiz poucos exercícios. Focava somente na Fuvest”, conta.
Reprovado pela terceira vez, Paulo não desistiu. Percebeu que, além dos exercícios, precisava fazer simulados. Deu certo. Após quatro anos, ingressou na USP em 2019. “Fiquei em estado de choque”.
Aconteceu exatamente como no filme em que se espelhava – Que Horas ela Volta? – estrelado por Regina Casé: os filhos da patroa não conseguiram passar no vestibular da USP, mas o filho da empregada doméstica ingressa em uma das melhores faculdade de Arquitetura e Urbanismo da América Latina.
Objetivo é tirar a madrinha do aluguel
No primeiro dia de aula na USP, foi realizada a “corrida dos privilégios”, uma maneira de evidenciar as vantagens sociais dos alunos. Com calouras e calouros lado a lado, são feitas perguntas e, conforme a resposta, a pessoa dá um passo à frente.
Por exemplo: qual seu telefone celular? Quem tem Iphone, um passo à frente. Estudou em escola particular? Outro passo adiante. No final, Paulo ficou em último. “Caí em prantos ali mesmo, na frente de todos, foi uma experiencia muito marcante e o coletivo negro da FAU, o Malungo, me ajudou muito”, conta.
No início da graduação, ele continuou trabalhando na feira, aos finais de semana. Conseguiu auxílio para moradia e alimentação da USP e começou a entrar em projetos como o censo realizado na favela São Remo. “O mais incrível é que consegui retribuir. Fiquei até o final, coletei dados, tratei”.
Dessa experiência, ficaram memórias. “Os moradores reclamam muito dos portões da USP”. Calmo e decidido, Paulo abraça as oportunidades. É coautor de dois livros, participou de programa de formação de lideranças negras, fez estágio e foi efetivado em 2023. Ainda atua em projetos na São remo e aprendeu inglês sozinho.
Nunca teve um professor preto na USP
Durante a graduação, morou na Favela da Linha, próxima à USP, e na região do Capão Redondo, com a madrinha Edna Aparecida Santiago dos Santos. O sonho de Paulo é “tirar a madrinha do aluguel”.
Quando anda pela São Remo, Favela da Linha e outras quebradas, Paulo faz interpretações arquitetônicas. “Não é questão de derrubar as casas da favela. Precisa melhorar, instalando uma janela ou aumentando a abertura, para entrar luz, entrar sol. Moradia de qualidade é o mínimo”.
O futuro arquiteto acabou de mudar para Pinheiros. Comenta que no seu quarto entra sol, diferente da Favela da Linha. Formado, pretende abrir um escritório de arquitetura para a comunidade. Ele nunca teve um professor preto na USP.
Perfil dos ingressantes na USP
Segundo o Anuário Estatístico da Universidade de São Paulo, em 2024 somente 17,83% dos aprovados estudaram em escola pública, como Paulo. Pretos são 4,17% e brancos, 65,33%.
As famílias com renda de um salário-mínimo representaram 3,17% dos novos alunos. A faixa salarial dos familiares da maioria dos calouros está entre dez e quinze salários-mínimos.
A profissão dos pais varia entre médico, engenheiro, promotor. Filhos de padeiros, operários, mecânicos, pedreiros e pintores representam 6,5%.
Ao menos três da São Remo na USP
A favela São Remo divide o muro com a Universidade de São Paulo. A comunidade começou a ser formada na década de 1960, por trabalhadores que construíram a USP.
Segundo a Prefeitura, na São Remo vivem cerca de 11 mil pessoas. No ano passado, a USP formou uma quantidade maior do que os moradores da comunidade. Foram 14.726 graduandos e pós-graduandos.
O Visão do Corre procurou, desde abril, alunas e alunos da São Remo matriculados na USP. Encontramos três. Publicamos ontem o perfil de Jhonatan Neves dos Santos; hoje, o de Paulo dos Santos; e amanhã publicaremos a história de uma aluna de Engenharia Elétrica.