Escritora volta à cadeia onde foi presa para falar de seus livros em SP
Leitura e escrita de comentário sobre a obra desconta quatro dias da pena, mas detentas não imaginavam encontrar a autora
Gih Trajano integra a Academia Brasileira de Letras do Cárcere, atua no audiovisual e acaba de publicar o terceiro romance. O primeiro volume da trilogia faz parte de programa de remissão de pena. Encontro com leitoras foi "o dia mais feliz da minha vida".
Com 48 anos, Gih Trajano não imaginava que a emoção mais forte da sua vida seria voltar ao presídio onde esteve presa duas vezes. Mas ela voltou para falar de seus livros, lidos e resenhados por detentas do Centro Progressão Penitenciária Feminino Marina Marigo de Oliveira, na rodovia Raposo Tavares, zona este da capital paulista.
“Estava super emocionada, meu subconsciente estava abalado, saí numa condição de egressa do sistema prisional, superei e voltei como escritora”. A poesia de Gih Trajano está em antologias, e a produção recente, em prosa, é a trilogia Quem Saberia Perder.
O primeiro volume, lido por detentas do CPP Butantã (como é conhecido o presídio feminino), faz parte de um clube de leitura. Cada obra lida, acompanhada de texto comentando a leitura, desconta quatro dias do tempo de detenção.
Vinte detentas não só leram o livro de Gih Trajano, mas puderam conversar com a autora. “Elas conheciam a obra inteira, perguntavam sobre personagens, sobre trechos, ficaram impressionadas com a cena do julgamento, queriam saber como continuava a história”, conta Gih Trajano.
“Foi o dia mais lindo da minha vida”, diz escritora
Após trâmites burocráticos preliminares rigorosos, que duram semanas, Gih Trajano chega ao presídio feminino do Butantã. Passa por portões, grades, revista, scanner, telefonemas de funcionários confirmando dados.
Ela segura a onda, tem transtorno pós-traumático, trava uma luta interna intensa até chegar à sala do setor de educação. “Então acontece o dia mais lindo da minha vida. Cada pergunta, cada olhar vivo me tocou. Tinham mulheres com a mente colonizada, desenganadas, mas elas leram e gostaram, falo a língua delas, fiquei maluca.”
A conversa de uma hora e meia contrasta com clima tenso de uma blitz em outro setor do presídio. Na sala com a escritora, as detentas disparam incontáveis perguntas e comentários “Eu não sou de chorar, mas não aguentei. Acredita que elas acharam até o advogado gatinho, pela descrição do livro?”
Como leram somente o primeiro volume da trilogia, as detentas queriam saber sobre a continuidade. Perguntaram se a protagonista era a própria escritora, gancho a seguinte resposta: “A personagem principal sou eu, são vocês, somos todas nós.”
Duas passagens pelo presídio do Butantã
A vida que Gih Trajano abandonou incluiu passagens por presídios da capital e do interior, mas somente no Butantã ela foi presa por duas vezes. A primeira, em 2006; a segunda, em 2014.
Nas estadias, teve problemas, foi flagrada com celular, e na segunda prisão, teve que “saber jogar com o sistema” para ficar em uma ala “onde a probabilidade de arrumar problemas era menor”.
Significa que ela trabalhou como auxiliar da sala de informática, que viu novamente na volta como escritora. “Isso é o que eu chamo de passar a história a limpo”.
Escritora, roteirista, palestrante, entre outros corres
A literatura abriu muitas portas para a egressa Gih Trajano. Não ficou rica, nem classe média. Passa perrengues, mas sobrevive do trabalho artístico. E acumula um currículo invejável, entrando cada vez mais no audiovisual.
Atuou como assistente de roteiro na Multishow, faz curso na prestigiada Roteiraria, foi personagem do documentário Liberta, dirigido pela cineasta Débora Gobitta. Ele mostra a vida de egressas e egressos que tiveram suas vidas transformadas pela literatura, como o rapper Dexter.
Em outubro, Gih Trajano esteve no lançamento oficial de Liberta, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Conheceu gente importante, como Marcelo Pimentel, secretário do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, de quem apertou a mão.
Gih Trajano tem um plano para as cadeias
Entre os corres principais da escritora, estão palestras em unidades da Fundação Casa e em espaços que até hoje a surpreendem, como a Universidade de Campinas (Unicamp). Gih Trajano trabalha para o instituto Humanitas 360.
Ela trabalha justamente com resenhas de livros lidos por presidiárias para remissão de pena. No final do 2024, concluiu o ensino médio pelo Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja).
Os livros de Gih Trajano são impressos e vendidos por ela. Ela vai continuar voltando a presídios para jovens e adultos como palestrante, por algumas horas, e autora, permanentemente. “Meu sonho é que toda cadeia tenho minha trilogia, para que eles entendam por quais motivos nos mandam para lá. É o plano”.