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Jogos on-line unem e transformam as periferias de Salvador

Ao exercitar habilidades cognitivas, os games exploram e estimulam o foco, concentração e socialização dos jogadores

21 mai 2022 - 05h00
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Naiara Souza com estudantes de eSports de Salvador
Naiara Souza com estudantes de eSports de Salvador
Foto: Tainara Souza

No Brasil, a grande maioria da população é consumidora de jogos online. Em um levantamento anual, a 9ª edição da Pesquisa Games Brasil apontou crescimento geral para o público de games em nosso País, 74,5% da população jogou algo em 2022, marcando um crescimento de 2,5% em relação ao último ano, a maior porcentagem já alcançada.

A pesquisa mostra ainda outro número em constante crescente, o de pessoas que consideram os games como a sua principal forma de entretenimento. São eles 76,5% dos jogadores, um salto de 8,5% em relação à pesquisa de 2021.

Mas será que esses dados refletem o acesso a essa tecnologia para os moradores de favelas brasileiras?

Para a soteropolitana, Naiara Souza, 26 anos, moradora da comunidade de Narandiba que trabalha com psicologia clínica infantojuvenil e esports, o drástico aumento no número de pessoas que aderiram aos jogos é um reflexo da pandemia. “As pessoas estavam em casa, sem ter muito o que fazer, então muitas delas recorreram aos games como forma de entretenimento”, pontua.

Dados do Gamer Brasil apontam que o isolamento social realmente teve impacto no consumo de jogos. 72,2% dos gamers afirmaram ter jogado mais enquanto ficavam em casa, e 57,9% marcaram mais sessões de partidas on-line.

Naiara Souza, Psicóloga Infantojuvenil
Naiara Souza, Psicóloga Infantojuvenil
Foto: Tainara Souza

Naiara Souza ressalta que moradores das comunidades podem viver de renda proveniente dos jogos on-line, principalmente com a chegada de games como o Free Fire. “Ele veio e trouxe a comunidade junto, inclusive essa é a principal razão pela qual escolho trabalhar muito mais com ele do que com outros jogos. Tenho uma identificação com os players e sei que meu trabalho pode contribuir na vida de pessoas que tenham uma realidade que eu conheço de perto”, afirma.

Souza explica que jogos como o League Of Legends (LOL) e o Counter-Strike (CS) não alcançam muitas pessoas porque elas precisariam de um computador e um aparato que a comunidade não tem como custear. “O Free Fire por ser um jogo para celular, que dispensa diversos recursos exigidos por outros jogos, facilita a entrada das comunidades nesse universo e hoje vemos vários players gigantes saindo das periferias, conseguindo mudar radicalmente de vida”, conta.

Naiara menciona que sempre foi amante da psicologia do esporte, “Em meio aos estudos, me deparei com a entrevista de um player (jogador) falando sobre o cenário do Free Fire, sobre os campeonatos, gaming houses, que são casas onde os jogadores de um time de esports moram e treinam. Neste momento, percebi que ali era uma área interessante para a psicologia.  Eu não conhecia absolutamente nada sobre games, nunca tinha jogado nada”, lembra.

A partir disso, ela se aprofundou na temática, a fim de entender como a psicologia se aplicava aos games. “Busquei também alguns cursos, montei um grupo de estudos junto com um colega da faculdade, e demos início ao projeto da Gamestalt, que hoje fornece consultoria para equipes”, afirma.

Ela conta que trabalha com as equipes de eSports - competição de jogos eletrônicos -, e já trabalhou com o pessoal do LOL, sendo a maior parte com equipes de Free Fire. “Basicamente trabalho com a preparação psicológica dos atletas. Acompanho treinos, alguns campeonatos, e a partir disso vamos fazendo-os performar da forma mais saudável possível, mentalmente falando. Isso inclui, desde coisas básicas como ajudá-los a organizar a rotina, até pontos mais complexos, como lidar com a ansiedade, por exemplo”, esclarece.

De acordo com Naiara Souza, a psicologia para o jogador profissional (pro-player) ou até mesmo o casual é de extrema importância para a preparação mental. “É óbvio que a técnica é extremamente importante, não é à toa que eles treinam bastante, contudo se de repente o psicológico não está preparado, toda essa técnica não será suficiente para garantir uma vitória ou a mudança de fases”, garante. 

Além desse ponto, segundo ela, a psicologia vai levar o “toque de humanidade” para as equipes. “Dificilmente os técnicos e gestões estão preocupados em olhar o atleta como aquele que tem problemas, sonhos, família, frustrações. No geral, o papel deles é estar de olho no desempenho. Então fica incumbido a nós psicólogos essa função de enxergá-los para além do ser jogador”, afirma.

 A psicóloga faz questão de ressaltar que o mundo dos esportes eletrônicos não é feito apenas de quem joga, mas também de quem consome os conteúdos, “As lives dos grandes streamers hoje chegam a pegar milhões de views, isso em dias comuns de semana”, informa.

Para Naiara os jogos eletrônicos não apenas entretêm, como também trazem benefícios, como por exemplo, o aprendizado de um novo idioma e aspectos de socialização. “Existe uma relação entre os jogadores. Eles são uma comunidade, então não dá para negar que existe uma socialização. Pensando em habilidades cognitivas, é possível ver benefícios na atenção, concentração, foco, reflexo, entre outros”, garante.

Todavia, a psicóloga destaca que os malefícios estão nos excessos, “Um jogador que fica ali por 8, 10 horas ininterruptas claramente terá prejuízos ao longo do tempo. Isso pode influenciar numa má alimentação, sedentarismo, problemas com sono. É importante que a pessoa se atente a isto”, alerta.

Outra problemática dos games é a sua constante associação à violência. Embora mais de 60% da população possui contato com os jogos, em sua maioria de tiro, a realidade não condiz com os jogos virtuais. “Não vemos esses percentuais todos fazendo na vida real o que fazem nos jogos. É fato que a irritabilidade é presente em alguns momentos de derrota, mas isso é inerente ao ser humano, vemos essa irritabilidade em esportes tradicionais também (futebol, por exemplo). Então essa violência está associada a outras questões”, afirma Naiara. 

A psicóloga ressalta que para além da possibilidade de ganhos financeiros, os jogos falam sobre regras, finanças, frustrações e perdas. “Assuntos que no geral são aversivos, chatos, porém ficam mais leves quando você vai pelo viés dos games. Do mesmo modo que o futebol tem uma veia de contribuição social muito pulsante, os games, quando bem aproveitados fazem o mesmo”, compara.

Jogos on-line como ferramenta de educação

Elienilson Reis, Produtor Cultural e Educador
Elienilson Reis, Produtor Cultural e Educador
Foto: Marcel Damaceno

Além dos jogadores que competem profissionalmente, existem pessoas que jogam por diversão e usam os games como ferramenta de educação. Este é o caso do baiano Elienilson Silva dos Reis, 41 anos de idade, morador do bairro de Marechal Rondon, da cidade de Salvador. “Para mim, os jogos eletrônicos podem ajudar os moradores das comunidades carentes, pois oferecem uma forma de abrir um mundo de possibilidades e, é também uma oportunidade de se conhecer coisas novas e lidar com a interação e a evolução da tecnologia na vida de todos nós”, explica.

O produtor cultural, consome jogos eletrônicos desde 1991, auge dos fliperamas, época em que existia um em cada esquina dos bairros de Salvador. Elienilson considera os jogos emocionantes e educativos, “Para mim, jogos eletrônicos representam um divertimento lúdico-educativo, capaz de levar a gente para um mundo de emoção só nosso”, expressa.

Elienilson acredita que os games podem diminuir o estresse, angústia, mudar o modo de se ver o mundo, além de possuírem a capacidade de educar. “Sou aquele rapaz que sempre guardava os 20 centavos para jogar no fliperama, e isto acabou gerando uma ligação com os jogos. Cresci, trabalhei e comprei um vídeo game. Como eu já era envolvido na arte e educação, através do teatro, fiz cursos para saber como usar os jogos eletrônicos para educar. A partir daí, conheci a Gamificação, que é uma pedagogia educativa através dos jogos eletrônicos”, afirma.

Trabalhando com arte e educação e dando aulas de teatro nos Centros de Atenção Psicossocial Familiar (CAPS), para pessoas com depressão, esquizofrenia, bipolaridade, entre outros, Elienilson percebeu que os jogos poderiam melhorar a saúde mental das pessoas. Com o passar do tempo, Reis levou para as salas de aula de escolas públicas o uso de jogos, promovendo oficinas, chegando assim na Gamificação. Depois de muito estudar sobre o tema, começou a trabalhar nas oficinas diversas temáticas com os jogos. “Nas escolas eu levo o vídeo game, os jogos, a televisão e promovo as oficinas. Com a gamificação se pode tudo, como por exemplo pegar um jogo de futebol e trabalhar matemática na sala de aula, ou explicar a cada aluno quantos pontos precisam para se classificar em um game. Lidar com jogos como Resident Evil, que aborda a infecção de vírus, e a partir disso trabalhar ciências e o vírus”, diz entusiasmado.

De acordo com o soteropolitano, a gamificação é um trabalho utilizado para educar os alunos, através de jogos eletrônicos. “Na medida em que os alunos vão respondendo perguntas do professor, ganham estrelas. É como se os alunos passassem de fase, assim como nos jogos. Essa ideia remete aos vídeos games. Dessa forma, o professor traz temáticas de jogos mais polêmicos e debate na sala de aula, educando os alunos em diversos assuntos tais como: etnias, sexualidade, entre outros. É um modo educativo e pedagógico que utiliza jogos para melhor interagir e educar pedagogicamente”., conta.

Elienilson Reis ministrando oficina
Elienilson Reis ministrando oficina
Foto: Marcel Damaceno

Sendo um morador da periferia, Elienilson acredita que os jogos eletrônicos ficaram mais fortes nas comunidades devido ao game Free Fire, jogo que promove a interação com players de diversas localidades.  “O jogo está ao alcance de muitas pessoas, através de um simples acesso pelo smartphone”, diz.

Além de trabalhar com os jogos em sala de aula, há dois anos, Elienilson narra jogos de FIFA e PES nas ligas que acontecem em bairros de Salvador. “Exerço, a função de narrar jogos de futebol eletrônico nas comunidades de Salvador, ganho uma ajuda de custo nos campeonatos dos quais participo. Me sinto parte do jogo, é uma emoção e alegria narrá-los”, celebra.

Elienilson  narrando jogo de futebol virtual
Elienilson narrando jogo de futebol virtual
Foto: Marcel Damaceno

Sobre o acesso da comunidade aos jogos e vídeos games, Elienelson comenta, “Os games e jogos são caros, na vida de quem está nas periferias as prioridades são outras. Mudar isso seria possível com a diminuição dos impostos. Aqui os valores dos jogos são a partir de 100 reais. É muito caro”, ressalta. Ainda assim, para o educador, os jovens de comunidades podem ganhar dinheiro com os jogos, pois hoje existem profissionais que começaram jogando no celular e a partir disso foram buscando outras possibilidades dentro do mundo dos games. 

Quanto aos viciados em jogos, Elienilson dá dicas para lidar com isso, “Respirar porque o vício as vezes é uma doença possível de se controlar. Conhecer gente nova também é importante. Não jogar próximo ao horário de dormir, pois isso pode estimular a insônia”, aconselha.

Liga da amizade

Joseilson Oliveira, fundador da Liga Cabula
Joseilson Oliveira, fundador da Liga Cabula
Foto: Filipe Oliveira

Por meio da tecnologia dos games, Joseilson Oliveira, 42 anos, morador do bairro da Estrada das Barreiras / Cabula, capital baiana, juntamente de um grupo de amigos, criou uma liga de games para reunir os parceiros e colegas de infância.

“É uma oportunidade de comunicação que potencializa quaisquer negócios, serviços e dinamismo nos trabalhos. Porém acho que a comunidade precisa explorar mais o lado empreendedor por meio das ferramentas tecnológicas, assim não nos tornarmos meros usuários. Antes de se tornar uma liga éramos de cinco a seis amigos que nos reuníamos aos finais de semana para jogar futebol virtual. A notícia se alastrou e a brincadeira cresceu”, comenta.

Em busca de mais espaço e autonomia, os amigos formalizaram a Liga Cabula em 2017, na garagem do Joseilson mesmo, “Fizemos uma copa do Mundo com 12 participantes. Hoje estamos na 36° edição do encontro mensal em um grupo com 35 membros”, explica.

Liga Cabula
Liga Cabula
Foto: Arquivo

De acordo com Oliveira, anualmente ocorre uma eleição para eleger o presidente da liga e mesa diretora. “Os integrantes pagam mensalidade e inscrição quando vão aos encontros. Todo recurso adquirido é direcionado para a manutenção e compra de equipamentos para a liga. Uma cota é dada como prêmio ao campeão. Usamos a plataforma on-line, arena 17, para gerenciar o torneio mensal e criar um ranking”, informa.

Contra a disseminação do ódio ou discriminação, Joseilson pontua que na liga existem algumas regras para evitar conflitos, sendo proibido mídias relativas à pornografia, ofensas com palavrões, racismo e preconceito. Sendo qualquer uma das infrações passíveis de banimento total da liga.

Joseilson Oliveira, que é Analista de Suporte em Tecnologia da Informação, diz que os jogos eletrônicos podem influenciar no dia a dia dos jogadores. “Os jogos são uma higienização mental. agregam valores a comunidade, possibilitam novas amizades, além de criar uma boa convivência. Os jogadores da liga são constantemente orientados sobre isso”, finaliza.

ANF
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