Jovens se livram de internação e processo fazendo rap no RS
Projeto extingue punição em troca de aula de hip hop e produção de música e clipe. Há bolsa para continuar estudando
Projeto Partiu Aula na Justiça, de Porto Alegre, teve taxa de não reincidência de 86% no primeiro ciclo, com 120 inscritos. No segundo, iniciado neste ano, nas três turmas, com 35 jovens formados, ninguém teve novos problemas com a lei. Iniciativa, inspirada no trabalho social do rapper Rafa Rafuagi, prova que é possível ressocializar jovens da periferia que entram em conflito com a lei.
Quinze jovens apreendidos por tráfico e atos infracionais similares receberam em 11 de abril o diploma de formação do projeto Partiu Aula na Justiça. Eles haviam sido detidos pela polícia, mas optaram pela alternativa que existe há dois anos em Porto Alegre: frequentar aulas de cultura hip hop, escrever um rap, gravar a música e o clipe, e se livrar do processo e de eventual medida socioeducativa de internação.
Nem chegaram a ficar internados provisoriamente. Ao aceitarem participar do Partiu Aula na Justiça, voltar para casa, com o compromisso de comparecer às aulas. Receberam transporte e alimentação para frequentar o curso durante cinco semanas, toda quinta-feira, no Centro Integrado de Atendimento da Criança e do Adolescente (CIACA).
O projeto alcançou 86% de não-reincidência nas doze primeiras turmas. “O índice de envolvidos em ato infracional de tráfico de drogas reduziu drasticamente”, comemora o defensor público Estevam Krieger Bento da Silva, envolvido no Partiu Aula na Justiça.
De 120 participantes no primeiro ciclo do projeto, 99 concluíram a formação, e somente 14 voltaram a ter registros de novas infrações. No segundo ciclo, iniciado neste ano, nas três turmas, com 35 jovens formados, ninguém teve novos problemas com a lei.
Um dos formandos do último ciclo, de 17 anos, quer agora “trabalhar, ficar rico e ir pelo caminho certo, nunca mais errar”. Ele canta funk, “mas gostei do rap também”.
Jovem quer rimar e ser orgulho da família
Formado nas primeiras turmas, Jeferson Rodrigues Fontoura, 20 anos, passou pelo Partiu Aula na Justiça e seguiu carreira no funk. Agora ele é o Menor J MC, cantor e compositor, com músicas e clipes como Visão de Cria, lançado há dois meses, e Lágrima Rola, do ano passado.
“Já passei por várias fitas, mas graças ao projeto, hoje minha vida mudou. Esse passado foi uma das minhas piores escolhas”. Nascido em Santa Cruz do Sul, considera sua infância boa. Foi criado pela mãe e estudou até a nona série. Até os 15 anos, jogou futebol em vários times.
Colorado, “estourei um joelho no Inter”. Em seguida, rompeu o ligamento do outro joelho. Sem grana para fisioterapia, parou com o futebol. “Acabei me desviando desse caminho. Mas hoje tenho emprego, minha família e tudo certo”. Ele trampa das 13 às 22 horas em uma cooperativa de crédito. “Meu sonho é ser MC e dar orgulho pra minha família”.
Partiu Aula na Justiça
O projeto é destinado a jovens de qualquer gênero, primários, detidos por tráfico de drogas e crimes afins, como porte de arma. Quem comete homicídio ou lesão corporal grave, não pode participar. “É um momento extremamente propício para uma abordagem diferenciada”, pontua Marlise Souza Fontoura, procuradora do Ministério Público do Trabalho, um dos criadores do projeto.
Quando um jovem é capturado pela polícia, imediatamente segue para o CIACA, que concentra três delegacias, representantes do poder Judiciário, do Ministério Público, entre outros envolvidos no destino de adolescentes detidos. Até exame de corpo de delito é realizado no local.
A opção de participar do Partiu Aula na Justiça é apresentada. Se o jovem aderir, fica em liberdade, e o processo, suspenso até a conclusão do curso. Para se formar, precisa, no mínimo, ter 75% de frequência. “Então o processo é extinto. É como se não tivesse existido”, resume o juiz Charles Maciel Bittencourt. Quem quiser seguir estudando, tem prioridade em vagas no Senac, com bolsa que equivale à metade do salário-mínimo.
Iniciativa começou com rapper
Quem começou as ações educativas que iriam se transformar no Partiu Aula na Justiça foi Rafael Diogo do Santos, o rapper Rafa Rafuagi, 35 anos, com longa caminhada e representatividade no rap nacional.
Rafuagi é ganhador de dois prêmios Hutus, extinto em 2009. No ano anterior, havia começado projeto contra o crack. Em 2013, iniciou o corre educativo, para minimizar a violência em escolas públicas. Percorreu mais de 50 cidades do Rio Grande do Sul e atingiu 30 mil jovens.
Diretamente envolvido na Construção Nacional da Cultura Hip Hop, que instituiu o Dia Nacional do Hop Hop e políticas públicas federais, participou da criação do Museu do Hip Hop de Porto Alegre. E atua na formulação de uma proposta nacional com base no Partiu Aula na Justiça.
Para Rafuagi, “o projeto está tendo êxito pela conexão com a cultura hip hop que os jovens têm. O projeto demonstra que é possível, que existe, sim, possibilidade de recuperação, inclusive fora do encarceramento”.
Tráfico visto como exploração do trabalho infantil
Um dos entendimentos que embasam as decisões do Partiu Aula na Justiça é a resolução 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo ela, o jovem traficante, antes de ser criminoso, é vítima de trabalho infantil. “Uma das piores formas, insalubre e periculoso”, lembra Rafuagi.
“O jovem, vítima de um contexto de exploração, ainda vai ser enclausurado? Seria demasiado. Fomos buscar a alternativa dentro do sistema, não apenas o aspecto pedagógico, mas também para fazer o jovem pensar sobre a vida e qual caminhada seguir”, diz o juiz Bittencourt.
Com orçamento de R$ 100 mil, o custo de cada atendido pelo projeto é de cerca de R$ 800,00. Segundo o juiz Bittencourt, para manter um jovem preso na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase), o valor ultrapassa R$ 20 mil ao mês. São 25 vezes mais do que o Partiu Aula na Justiça.
Segundo Pedro Jardel da Silva Coppeti, da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, o projeto é “uma iniciativa criativa que deve ser sempre saudada”. Sua atuação, que “destoa das consideradas rotineiras”, o deixa satisfeito. “É possível proporcionar uma visão de mundo diferente daquela em que estes jovens vivem, possibilitando o resgate de sua autoestima e de sua dignidade”.