Opinião: questão do Enem sobre Racionais MCs é mal formulada
Quatro das cinco alternativas poderiam ser assinaladas. Correções não explicam quais seriam seus aspectos incorretos
É fácil apontar uma alternativa correta. Difícil é explicar por qual ou quais motivos as outras estão erradas, coisa que corretores de plantão não costumam fazer.
Não vou nem discutir a premissa genérica e preconceituosa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) segundo a qual “as várias experiências narradas nos discos dos Racionais tratam no fundo de um só tema: a violência que estrutura nossa sociedade”. Admitamos que seja isso.
As correções extraoficiais apontam uma alternativa correta, mas nenhuma entra no espinhoso debate dos motivos pelos quais as outras seriam erradas. Não seriam.
A questão cita trecho do clássico Capítulo 4, Versículo 3, no trecho iniciado com “minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição” até “astral imprevisível, como um ataque cardíaco do verso”.
Alternativa correta, embora exagerada
A alternativa indicada como correta sobre a “tematização da violência” afirma que ela acontece “como procedimento metalinguístico, que concebe a palavra como uma forma de combate e insubordinação”.
Ok, está correto, embora o procedimento metalinguístico – a palavra falando dela mesma – aconteça somente no primeiro verso e no último.
Termos bélicos como crítica social
Uma alternativa descartada como errada afirma que a “tematização da violência” ocorre na “referência a termos bélicos, que sinaliza uma crítica social à opressão da população nas periferias”.
Esta alternativa está correta sobretudo porque a palavra “sinaliza” não significa uma referência direta, mas indica, sugere, dá a entender.
O enunciado seria melhor se, ao invés de “sinaliza”, fosse usado um termo direto, definitivo, categórico, como “faz” ou “realiza”.
Usar “sinaliza” torna a alternativa possível.
Versos invertem e relativizam representações
Outra alternativa seria errada porque a “tematização da violência” acontece “nas definições ambíguas do enunciador, que inverte e relativiza as representações de maldade e bondade”.
O enunciador, que é a voz poética, cria sim ambiguidades ao inverter e relativizar, ou seja, ao reconsiderar, repensar, reavaliar as representações de maldade e bondade.
O que significa “talvez eu seja um sádico ou um anjo”? Não relativiza? E “juiz ou réu, o bandido do céu”? Não inverte representações?
Toda a passagem citada na questão faz basicamente o que tornaria a alternativa errada: relativiza e inverte.
Resistência e dicotomia
Uma terceira alternativa errada – sempre segundo as apressadas correções extraoficiais, cheias de razão – seria a “tematização da violência” na “menção à imortalidade, que sugere a possibilidade de resistência para além da dicotomia entre vida e morte”.
Sim, queridas professoras e professores de cursinho, pop stars da ignorância alheia, o trecho citado tematiza sim a violência ao sugerir a possibilidade de transcender, de ir além da vida e da morte.
E “sugere”, não afirma definitivamente, ou seja, abre a possibilidade da alternativa estar correta.
Questão racional para conteúdo subjetivo
O problema principal da questão é que, diante da poesia, o gênero literário mais subjetivo, o estudante é obrigado a dar resposta única, fechada, exata, na qual estaria contida toda a verdade dos versos.
Isso destrói a própria natureza da literatura, que é – para usar uma palavra bonitinha, da teoria literária – plurissignificativa, ou seja, tem vários significados.
Da forma como foi enunciada, a pergunta sobre Racionais é uma boa questão para a prova de Matemática no Enem.