Criatividade tecnológica gera oportunidades em favelas de BH
Periféricos usam a tecnologia como meio de solucionar questões e realizar desejos que demandam investimentos financeiros nas comunidades
Quando a palavra é tecnologia, quem ouve geralmente associa à ideia de grandes indústrias robóticas, equipamentos sofisticados e modernos e até a máquinas e invenções ainda inimagináveis para a humanidade. Mas o que define tecnologia é um conjunto de instrumentos, métodos e técnicas que visam a resolução de problemas.
Sendo assim, favelados e periféricos usam a tecnologia como meio de solucionar questões e realizar desejos que demandam investimentos financeiros indisponíveis à comunidade. E a criatividade é a maior aliada dessas tecnologias. A TV Muro, localizada na periferia da cidade de Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, foi planejada em 1996 e hoje conta com uma estrutura compatível a de uma televisão de grande porte. Mas nem sempre foi assim.
O ator Francisco dos Santos, conhecido como Chiquinho, tinha o sonho de ter sua própria emissora de televisão. O pai dele trabalhava no cinema projetando os filmes em película. "Eu ficava querendo fazer uma gambiarra, planejando transformar o muro lá de casa em cinema", relembra o ator.
O projeto tinha o nome imaginário de Cine Muro e Chiquinho teve a ideia de colocar o aparelho de TV no muro e transmitir filmes por um vídeo cassete para que as crianças e adultos que passassem pelo local pudessem se deparar com a TV ligada. Com a projeção, a casa dele começou a ser conhecida como TV Muro.
Chiquinho conta que só tinha uma televisão de tubo e o aparelho de vídeo cassete. "Eu não tinha condições financeiras de comprar uma câmera", comenta. Mas isso estava longe de impedir a concretização do sonho. O ator ganhou um computador de tubo com o windows 95 instalado, mas ele não via nele nenhuma utilidade para a TV. Então conseguiu trocá-lo por uma câmera VHS: peguei a primeira câmera da minha vida e nem dormi de noite. Saí filmando a rua, o povo, os passarinhos e tudo que eu achava legal.
Foi então que teve o auxílio de um amigo para conectar o vídeo cassete à câmera e à TV. E assim iniciaram os programas de dentro da própria casa, ao vivo, e as gravações feitas na rua. Ele relata que usava um cabo de vassoura para ser o microfone e os tripés eram improvisados. E também emendava os cabos desgastados e juntava os quebrados para chegarem até o quarto onde foi colocada uma toalha colorida no fundo. "Lá em casa tinha muita coisa velha e essa engenhoca foi que transformou o sonho em realidade, isso em 1999", relembra.
A partir dos anos 2000 a repercussão da TV Muro levou o projeto ao reconhecimento nacional e Chiquinho foi entrevistado por vários programas de destaque da mídia. Com isso ganhou diversos equipamentos e conseguiu realizar o sonho de ser ator e expandir a TV.
Com o crescimento, a criatividade foi se desenvolvendo e Chiquinho criou o projeto Muro Brother, um estúdio semelhante a um reality show. "Montei uma equipe de amigos e dei função a cada um deles. Repórter, produtor, editor, cinegrafista", relata.
Em 2014 Chiquinho conta um fato que considera inusitado. Ele encontrou um aparelho de vídeo link no lixo. Não sabia a finalidade e procurou um amigo que entende sobre tecnologia que explicou que com o link era possível fazer transmissão sem fio num raio de 50 metros. "Ah, é o que eu precisava. Peguei aquele link e amarrei num cabo de vassoura, amarrei na bicicleta, puxei um cabo, alimentei o aparelho em uma bateria de moto de 12 volts e fui inovando", recordou.
A partir dali o ator transmitiu eventos de locais da cidade direto para o muro. Colocou um data show no muro para aumentar as imagens para os vizinhos telespectadores: até brinquei, agora vai ser TV Muro e TV Telão. E mesmo com equipamentos improvisados, a criatividade não se limitava. Ele começou a produzir filmes e fez um documentário sobre as lendas da cidade. Criou o Cine Muro, o Jornal Legal, Programa do Povo e tem projeto de novas produções de filmes em andamento.
Hoje a TV Muro é completa, com equipamentos modernos que só foram obtidos em 2019 através da participação de Chiquinho em um programa de TV, que junto a patrocinadores proporcionou a nova estrutura. "Foi um grande sonho de infância realizado hoje, em 2022", diz.
O ator revive a história para dar ênfase à origem: esse sonho meu nunca parou, comecei com várias coisas simples, arame farpado, cabo de vassoura e hoje eu tenho tudo. Ele reforça que mesmo com as novas tecnologias favorecendo os projetos, a ideia continua a mesma, a TV vai continuar no muro para o pessoal passar e assistir a menor TV do mundo.
Outros projetos inspiradores da região
Gambiologia
No Morro do Papagaio, zona sul de Belo Horizonte, foi fundado em 2008 o projeto Gambiologia. Ele propõe iniciativas que visam criar obras de arte e peça de design a partir de materiais reutilizados. O projeto foi pioneiro no Brasil em cultura maker, que é a prática de criação baseada na filosofia do "faça você mesmo" utilizando a tecnologia.
Desde então as ações não pararam. A Gambiologia realizou o projeto Favela Hacklab, um laboratório educativo de invenção instalado de forma itinerante em comunidades periféricas de todo o país. São oferecidas oficinas de conserto, instalações elétricas, marcenaria e exposições dos trabalhos artísticos dos alunos, workshops e consultoria.
Eventos como o Café Reparo promove o encontro colaborativo para conserto de coisas e troca de conhecimento. Os participantes levam eletrodomésticos, eletrônicos, roupas, peças decorativas, brinquedos bikes ou qualquer objeto precisando de reparo. E todos saem do evento com um item reconstruído, boas amizades e convites para o próximo café.
BH Recicla
A BH Recicla realiza coleta grátis de lixo eletrônico e outras sucatas. Plásticos, alumínios, vidros, papelão, borrachas entre outros são reaproveitados e descartados da forma correta para evitar a poluição do meio ambiente. O projeto ensina e incentiva a população quanto ao descarte correto de lixos e recolhe os itens gratuitamente, transformando-os depois em produtos novos e úteis.
Mais que criatividade. Reaproveitar utensílios e aparelhos contribui para a diminuição do aquecimento global e promove a sustentabilidade, além de resolver problemas como propõe a tecnologia.