Dani Alves, Corinthians e Cianorte: futebol não é pra pobre
O mundo caro de um futebol medíocre vem matando o amor do povão, que o abandona paulatinamente por falta de grana
O dia começa mal. Cedinho, Daniel Alves pega pena de ladrão de galinha por estupro e, inacreditável, os anos de cadeia diminuem porque ele depositou, antes do julgamento, 150 mil euros à vítima. O valor, baixíssimo para um crime impagável, virou atenuante, “uma vontade reparadora” nas palavras da sentença. Alguém sabia que isso era possível? Ou só eu no universo desconhecia a lei espanhola?
No final da noite, comendo suspeitíssimo cachorro-quente em uma avenida de Osasco, ouço pelo rádio da barraca que o ingresso para o jogo entre Corinthians e Cianorte, que acabara de acabar, teria custado 580 reais. Tá tirando, né?
Eu voltando da segunda jornada de trabalho, quinta-feira, quebrado, acordei seis da manhã, e o ingresso custo 580 reais? Houve quem pagou meia, completa o repórter. Fiquei aliviado ao calcular mentalmente que a meia custaria 290 reais. Eu e as pessoas nos ônibus que passam à minha frente na avenida, quase meia-noite, inclusive a tiazinha do dog, que fica “até cinco horas da manhã, meu filho”.
Sabe, é aí que coisa embaça, na moral. Não ia falar, tenho odiado debates, não sei se me entendem, mas vai minando o amor, saca? A pior forma de matar o amor não é de uma hora pra outra, mas minando. É o que já fizemos com o futebol brasileiro. E muito porque a grana entrou na jogada, tomou conta, elitizou, excluiu. Ou melhor, não é o dinheiro, que todo mundo quer; eu, pelo menos, quero; mas a forma como ele participa “da coisa do futebol”.
Lembrei do técnico que, dia desses, deu declaração histórica sobre “um monte de jogador meia boca cobrando salário de duzentos mil reais”. E empresários especulando no “mercado da bola”, enquanto a maioria, repito, a maioria dos moleques e cada vez mais meninas pobres deste país tem seus sonhos frustrados cotidianamente porque não podem pagar a “escolinha” – nunca um diminutivo significou tanto.
O problema, tiozão, não é o valor pago. É jogar mal e em geral não ter o mínimo de cidadania, de ética, de postura dentro e fora de campo, de consciência de mundo, do papel social da profissão, de política, de cultura, de nada. É assim que se chega facinho ao horror de pagar para atenuar uma pena de estupro, tendo estátua em praça pública na cidade natal.
O cachorro-quente vai piorando as coisas e entro naquele estado Belchior de “a minha alucinação é suportar o dia a dia, e meu delírio é a experiência com coisas reais”. Lembro que os advogados de Daniel Alves recorrerão da sentença. Sério? Acham que ele está pagando, digamos, caro demais?
O repórter continua lendo seu boletim e informa que o jogo do Corinthians contra o Cianorte não foi na cidade do time paranaense, mas em Cascavel, a 273 quilômetros, para onde foi quem, o pobre?
Penso nas minhas alunas e alunos de Jornalismo que querem cobrir esporte, e me preocupo. O futebol brasileiro não merece seu entusiasmo genuíno porque cada vez menos participa dos destinos fundamentais da nação, pela absoluta falta de competência e pela desconexão com a vida nacional do povão que o fez.
Mas esta não é uma nota triste, nem uma noite triste. Há um monte de coisas lindas na minha e na sua vida para amarmos de verdade, muito maiores do que seu time do coração, do que a seleção. Constato, e vou para casa feliz porque, apesar do cachorro-quente, comi; ao invés de pegar o busão sonolento, cheguei em casa no meu carro.
Minha esposa linda, que eu amo imensamente, abre o portão. Eu a beijo e digo “te amo, baby”. Subimos a escada abraçados, entro e beijo minhas filhas, que dormem. Amo o cheiro delas. Então venho escrever este texto, porque amo minha profissão.
E não pago nada, nem meia entrada, por essa imensidão de amor verdadeiro.