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Luta das mulheres: O esporte na vida das soteropolitanas

O jiu-jitsu me ensinou a ter disciplina, coragem, sabedoria e, principalmente, paciência, diz Rebeca Franco Lima

18 mar 2022 - 05h00
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Rebeca Franco Lima
Rebeca Franco Lima
Foto: Cecília Ferreira

No Brasil, o preconceito de mulheres praticarem esportes existiu desde muito tempo. Nos anos entre 1930 e 1945, na era Vargas, período quando Getúlio Vargas governava o país, foi criada uma lei que proibia as mulheres de fazerem atividades esportivas.

Elas ficaram quase 40 anos sem poder praticar esporte, como boxe, jiu-jitsu, judô, entre outras modalidades.

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, dizia o decreto, a lei 3.199 de 14 de abril de 1941.

Uma lei que refere a mulher como incapaz de praticar esportes não condiz com a realidade da força feminina, pois, mesmo no período dessa norma, que foi revogada em 1979, elas já faziam esportes, mostrando luta e coragem para enfrentar os preconceitos.

E essa intolerância, como a discriminação e o machismo, ainda perdura nos dias atuais, mas não pararam as mulheres. Quantas personalidades do esporte são mulheres e quantas praticam esporte de luta?

Em Salvador, na Bahia, por exemplo, existem grandes mulheres que praticam esporte de luta, como é o caso da soteropolitana Rebeca Franco Lima, 32 anos, que faz jiu-jitsu por quase 10 anos.

A lutadora revela que no início da carreira não teve apoio dos pais, pois eles achavam que a arte marcial não era para menina.

“Naquela época, era uma atividade nova para mim. Eu fui encontrar o esporte aos 24 anos e não tive apoio da minha família, principalmente dos meus pais. Eles tinham preconceito, achavam que o esporte não era para menina, porque eu ficava muito roxa devido ao treinamento que é de contato”, conta.

Rebeca Franco Lima
Rebeca Franco Lima
Foto: Cecília Ferreira

Porém, nada disso a fez desistir. Ela continuou, e se apaixonou pelo jiu-jitsu. “Eu me apaixonei pelo esporte e por isso não abandonei a pratica esportiva. Eu fique mais focada em minhas prioridades, que era treinar, estudar e trabalhar. Tive que encaixar os horários da faculdade, do trabalho e do treino”, explica.

Rebeca faz questão de ressaltar a importância do jiu-jitsu e como o esporte transforma a vida das pessoas.

“O jiu-jitsu transforma a vidas das pessoas através da rotina. Quando você coloca o esporte na vida de crianças e adolescentes, oferece um norte para eles: como disciplina, determinação, hierarquia, respeito e coleguismo. O esporte faz você pensar no outro, pois se você machucar o seu colega de treino, você não vai ter como treinar. Você sempre tem que pensar no outro”, diz.

Ela, que é engenheira de produção e mora no bairro de Pernambués, pratica o esporte desde setembro de 2014, e fala que a ideia de entrar no esporte surgiu depois de conversas com os primos: “eles sempre falavam que eu iria me encaixar, que eu tinha o perfil para o jiu-jitsu”, lembra.

Entretanto, o que fez Rebeca de fato começar a praticar a arte marcial foi após ser demitida na empresa, a qual trabalhava na época. “Meu primo me vendeu um kimono, que ficou guardado no guarda-roupa até setembro. Depois que fui demitida da empresa, decidir entrar na academia que eu via todos os dias quando ia pegar o ônibus para ir faculdade”, fala entusiasmada.

Depois de estabelecida no jiu-jitsu, a atleta enfatiza que o esporte mudou a própria vida, pois ganhou foco e determinação para alcançar os objetivos.

“Muitas vezes eu me sentir perdida, entretanto o esporte mudou a minha vida. Lembro que quando eu estudava na faculdade e trabalhava faltava-me estímulo - eu não tinha vontade de sair da cama -, porém o esporte me despertou. Comecei acordar cedo para treinar e com isso eu tinha um motivo para viver melhor”, conta e completa:

“Essa arte marcial me salvou e me salva todos os dias. Realmente encontrei algo que amo fazer e não passo um dia sem. O jiu-jitsu me ensinou a ter disciplina, coragem, sabedoria, e principalmente, paciência”, fala com firmeza.

Além das dificuldades iniciais, Rebeca, que é faixa azul, conta sobre alguns problemas nesses anos de jiu-jitsu, pois teve que ficar um período afastada do esporte por causa do dedo quebrado numa luta que aconteceu em julho de 2017. Ela fraturou o dedo e somente depois de um tempo, retornou as atividades atléticas.

“Voltei ao treinamento aos poucos, já que fiquei com medo de machucar a mão de novo. Passei pelos treinos educativos e aeróbicos, mas não fazia o embate, a luta. Somente em janeiro de 2018 realizei a primeira luta sem kimono, o chamado ‘No Gi’. Para mim foi muito tenso. Foi o momento de superar o medo”, recorda.

Mas se no esporte tem o lado desafiador, também tem os benefícios, sobretudo para as mulheres, como destaca a Rebeca. Ela fala que a atividade esportiva oferece aumento da autoestima, aprendizado a respeito da defesa pessoal e melhora da coordenação motora.

E quando é mencionado a pratica esportiva por mulheres, Rebeca descreve que nunca sofreu nenhum tipo de preconceito, porém ressalta que a maioria da academia é composta por homens. “O machismo existe em todos os lugares, mas graças a Deus nunca vivi na pele o machismo dentro do tatame”, garante.

Ela ainda fala que o maior desafio da mulher fazer artes marciais é o primeiro treino, pois as academias são compostas, na sua grande maioria, por homens e isso acarreta receio e vergonha no momento do diálogo.

“Geralmente as mulheres ficam com receio de praticarem o esporte porque tem muito homem no treino. Elas ficam com vergonha, pois 90% da turma é praticada pelo gênero masculino. Em outras palavras, a mulher em si fica inibida de perguntar ou pedir para conversar com o professor para assistir uma aula experimental”, relata.

Todavia, ela salienta que as academias observaram essa problemática e começaram abrir mais espaços paras as mulheres.  “As academias começaram a abrir mais espaços para o gênero feminino, pois viram que elas se afugentavam com essa situação. Por isso, muitas equipes hoje estão dando o lugar merecido para as mulheres puxarem o treino, e isso as deixam mais confortáveis de entrarem em uma aula”, destaca.

A lutadora, que almeja disputar o campeonato brasileiro e o mundial, manda um recado para as mulheres que tem vontade, mas não tem coragem de praticar esporte.

“Para as mulheres que ainda não tiveram a coragem de entrar em um esporte independente se for de luta ou não, procure se informar na academia se tem só turma feminina, caso tenha, marque uma aula experimental. Caso não tenha, peça para conversar com o professor e sanar suas dúvidas”, fala firme.

Rebeca ainda frisa que, além de contribuições positivas para as mulheres, o esporte ajuda todos nas comunidades, como as crianças, pois vão ter compromissos esportivos e com isso não terão oportunidades de ficarem na rua, podendo aprender coisas ruins.

“Acredito que o esporte salva a vida de todos os sentidos, por exemplo:  aquela criança que é muito agitada e que não tem direção, o esporte ajuda, além de auxiliar também adolescentes e adultos. Só digo uma coisa: o esporte é uma terapia que faz as pessoas esquecerem os problemas”, diz.

Judô, um estilo de vida

“O esporte em geral é uma ferramenta transformadora do ser humano, assim como para a mulher”. Essa fala é de Nadya Soares Silva, mora na Barra, 55 anos, advogada, praticante de Judô.

A lutadora, que pratica judô desde os 14 anos de idade, enfatiza que a atividade esportiva tem significados importantíssimo na vida dela: significa equilíbrio espiritual, físico e mental, além da melhora da autoestima feminina.

“A pratica esportiva nos traz benefícios imensos a saúde do corpo e da mente, então depois que comecei a praticar judô a diferença para mim foi gritante, me transformou física e mentalmente”, afirma.

A judoca diz que no início da carreira esportiva, em 1980, muitas mulheres não tinham proximidades com o esporte de luta e revela que passou por algumas situações preconceituosas. “No início sempre tem uns olhares estranhos(sorrisos) ainda mais nos anos 80, que não era comum meninas nas artes marciais, então houve sim preconceitos”, explana.

Contudo, nada disso foi suficiente para fazer a Nadya a abdicar. “Nada disso foi suficiente para me fazer desistir e com o apoio dos meus pais foi fácil seguir em frente, porém sempre ouvia piadinhas sobre a minha feminilidade”, revela.

Nadya também diz que no esporte de luta tem muito machismo, mas acredita que isso pode mudar com mais espaços para as mulheres neste tipo de esporte.

“Tem muito machismo sim e, principalmente, nas artes marciais que sempre foram dominados pelos homens. Contudo, acredito que essa situação pode mudar apenas com espaço que deve ser sim ocupado pelas mulheres, em todas as suas camadas”, fala com firmeza.

E por causa desse preconceito, ela lembra de uma história que aconteceu quando tinha 16 anos de idade. A atleta estava andando na Avenida Sete de Setembro, centro de Salvador, e de repente foi atacada por um homem, porém ela conseguiu se defender e golpeá-lo:

“Um rapaz me atacou, agarrou os meus seios, mas eu consegui me defender. Dei um golpe e quebrei o braço dele. Foi um momento tenso. Eu acredito que aquele rapaz nunca mais fez aquilo com mais ninguém. Com o judô, a gente passa a ter força e segurança em três pontos: no corpo, na mente e espírito”, revela.

Silva destaca que sempre foi fã do estilo de vida dos japoneses e samurai, e viu no judô possibilidades de se aproximar deste costume.

“Sempre fui fã do estilo de vida dos Japoneses e dos Samurais, então vi no judô e nos seus fundamentos educacionais e filosóficos, a possibilidade de me aproximar deste mundo e depois me apaixonei”, revela.

Além de querer ser campeã mundial de veteranos, ela tem um grande sonho: “Eu gostaria muito de ter um projeto social para tirar crianças em condição de risco das ruas, e transforma-los em grandes campeãs na vida”, fala emocionada.

Nadya Soares Silva
Nadya Soares Silva
Foto: Vivian Silva

A lutadora, que é mãe de três filhos, compete na categoria de veteranos e diz que quando está lutando no tatame leva fé no trabalho, perseverança e Deus no coração.

Ela manda uma mensagem para as mulheres que querem entrar no esporte, mas não tem coragem: “que respire fundo, coloque a sua armadura de luta, se plante, tenha orgulho de ser mulher e que tem sim o direito de fazer e estar onde bem quiser. E seja muito feliz”, pontua.

A lutadora faz questão de falar que levanta a bandeira da mulher mais velha, madura na a arte marcial. “Atualmente, sou presidente de uma associação de judô master da Bahia, e sempre busquei essa bandeira da mulher nas artes marciais”, afirma.

Boxe também é para mulher

“Além da saúde, praticar esporte nos faz socializar e aprender também cuidar do próximo”. É o que fala a boxeadora Patrícia Leite Muniz, moradora do bairro de Pirajá, de 35 anos.

Ela diz que fazer esporte é muito importante, pois traz muitos benefícios e muda principalmente para as mulheres a forma de ver o esporte, isto é, faz entender que não é só homens que pode praticá-los.

Patrícia, que trabalha como assistente administrativa e pratica o boxe há mais de oitos anos, diz o motivo de ter escolhido o esporte de luta.

“Sempre fui amante do esporte, já que jogava bola na quadra da escola e ao frequentar uma academia para malhar, fui convidada a participar de uma aula de boxe. Daí foi amor ao primeiro treino”, diz sorrindo.

Muniz revela que antes de fazer o boxe, não tinha condicionamento físico, foco e reflexo, mas tudo isso mudou com o esporte. “Tenho mais disposição física, reflexo e atenção. Esses são alguns dos pontos em que posso destacar”, explica.

Com quase 10 anos de boxe, ela conta que não percebeu se sofreu algum preconceito por ser mulher no esporte. “Não sofri nenhum preconceito diretamente, mas era possível notar alguns olhares. Talvez não por preconceito, porém de surpresa e admiração ao ver uma mulher treinando boxe”, fala enaltecida.

Sobre o machismo, a lutadora explica que não ver no esporte de luta, mas que a mulher cria inseguranças por causa desse tipo de esporte. “Não consigo enxergar exatamente como machismo, mas talvez um bloqueio da própria mulher por não conhecer o esporte e achar que é simplesmente uma luta”, enfatiza e completa: “o maior desafio é encontrar outras mulheres dispostas a conhecer e praticar o esporte, pois existe uma certa dificuldade nos treinos com poucas mulheres para um sparring, por exemplo”, relata.

A boxeadora diz que se alguma mulher não tem força para praticar um esporte de luta, deveria antes de qualquer coisa “quebrar” qualquer preconceito, pois o esporte é para todos e todas e deveriam experimentar a atividade esportiva.

Patrícia revela que o seu maior sonho dentro do esporte é presenciar mais mulheres no boxe: “meu maior sonho dentro do boxe é presenciar um grande número de mulheres treinando e atuando, e até mesmo em uma academia apenas para mulheres com um treino diferenciado”, finaliza.

Patrícia Leite Muniz
Patrícia Leite Muniz
Foto: Sérgio Argolo

Benefícios da pratica esportiva

Com o número crescente de mulheres na atividade esportiva, a profissional de educação física, Natalícia Carvalho Da Silva, 31 anos, acredita que além de buscar saúde, qualidade de vida e lazer e uma boa forma física, as mulheres também procuram acabar com os preconceitos, com esse estereótipo de papéis entre homens e mulheres que foram determinados pela sociedade.

A educadora física faz questão de ressaltar que ver como algo super normal as mulheres praticando esportes de lutas, mas só que essa conquista demorou de ser aceita pela sociedade.

“Até hoje existe preconceito com as mulheres em praticar determinados esportes principalmente de luta, acho que já passou da hora de acabar isso, pois todos temos direitos de praticar esportes, independente do qual seja, já que o esporte não tem raça, sexo, cor. O esporte requer esforço e determinação do atleta”, pontua.

Fazer atividades de artes marciais é um grande ganho para os praticantes, de acordo com Natalícia, pois a prática de atividade física é fundamental para a vida e está relacionada com a manutenção e prevenção da saúde física e mental.

“Isso tudo gera inúmeros benefícios, além de proporcionar maior disposição para realização das atividades diárias e previne o desenvolvimento de doenças e hábitos de vida sedentários que comprometem a busca pela qualidade de vida e longevidade das pessoas”, conta.

A profissional ainda ressalta que além dos benefícios já citados, a prática esportiva tem um papel fundamental no desenvolvimento motor e cognitivo da criança até a fase adulta.

“Atividade esportiva proporciona interação e integração social, estimula o senso de coletividade, interfere de maneira positiva na forma física como fortalecimento de ossos e músculos e também oferece lazer, qualidade de vida, bem-estar entre outros”, afirma.

Além das contribuições físicas, o esporte também promove formação social, inclusão e cultura, como diz Natalícia Silva.

“Nas comunidades o esporte não está somente voltado a formação atlética, ele também se insere na formação social proporcionando inclusão, recreação, lazer, cultura. Dessa forma, contribui com a qualidade de vida de crianças, adolescentes e adultos, frente as adversidades de se residir em uma comunidade vulnerável e carente de políticas públicas”, finaliza.

ANF
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