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Sem arena e sintético, futebol segue raiz na margem do Tietê

Movimento de times e atletas amadores luta para tentar salvar um dos últimos redutos do futebol de várzea de São Paulo

17 fev 2022 - 08h00
(atualizado às 14h50)
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Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Bem ao lado da Marginal Tietê resiste um dos lugares mais intocados da cidade de São Paulo. É ali que cerca de três mil pessoas se reúnem todos os finais de semana em torno de uma única coisa: o futebol. Esqueça grandes arenas, gramados sintéticos e astros do esporte, o que se pratica nesse espaço é futebol de várzea.

Na altura do número 800 da rua Marambaia, no bairro da Casa Verde, zona norte, a via parece não ter saída. Mas um portão se abre do lado direito e um complexo de seis campos de futebol se espalham numa área de 417 mil m². O espaço foi ocupado por times de futebol amador a partir dos anos 1960.

Os clubes que estão lá há seis décadas estão em briga com a prefeitura, e pedem para que o lugar seja preservado e que a várzea seja tombada como patrimônio paulistano. O município, por sua vez, pretende entregar o terreno para iniciativa privada implantar um museu de tecnologia aeroespacial e um parque.

Este é o imbróglio mais recente, mas há 90 anos o terreno é um espaço de batalhas. As primeiras foram campais, na tentativa frustrada de revolução feita pelos paulistas em 1932. Derrotados, perderam o território onde fica o aeroporto do Campo de Marte e seus arredores para o governo federal. Depois, as disputas foram parar na Justiça. 

Durante mais de cinquenta anos, União e Prefeitura de São Paulo disputaram nos tribunais a posse da área. Somadas, as áreas do aeroporto, juntamente com o local onde estão os campos de futebol e a parte de mata atlântica preservada constituem um terreno de 2,1 milhões m².

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

As partes chegaram a um acordo no final do ano passado. O presidente Jair Bolsonaro e o prefeito de Ricardo Nunes (MDB) decidiram que o espaço de 1,8 milhão de m², onde ficam o aeroporto e a área de mata atlântica, ficará com o governo federal e o resto, 417 mil m², passará à prefeitura. Em troca, a administração municipal deixará de pagar uma dívida de R$ 25 bilhões que tem com o governo federal. 

Porém, toda essa negociação foi feita sem consultar quem utiliza o terreno há décadas e promete não sair dali. Formados pelos clubes e por atletas amadores que utilizam o local, o Movimento para a Preservação dos Campos de Várzea do Complexo Esportivo de Lazer e Cidadania do Campo de Marte luta para que a memória esportiva da cidade não seja apagada e que a especulação imobiliária não destrua um dos últimos redutos do futebol de várzea paulistano.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

“Isso aqui possui patrimônio histórico que precisa ser tombado para que não haja nenhum tipo de intervenção. A comunidade utiliza esse espaço há 60 anos, faz parte da vida deles. Casamentos e batizados já foram realizados aqui”, diz Otacílio Ribeiro, secretário da Associação dos Clubes Mantenedores do Complexo de Esporte, Lazer e Cidadania do Campo de Marte, que busca a preservação da área dos campos de futebol. 

“Um dos argumentos para nos tirar daqui é que o terreno deveria ser aberto a toda população e por isso irão fazer um parque. Mas quando é que foi fechado? Nós não somos contra que a prefeitura faça melhorias. Há muito espaço e dá para fazer diferentes equipamentos aqui como quadras de vôlei, basquete, áreas para pedalar, mas sem acabar com os campos que já existem”.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

No dia 9 de fevereiro, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Executiva de Desestatização e Projetos, publicou no Diário Oficial o edital de chamamento público para a apresentação de subsídios preliminares para a concepção, a estruturação e a implementação do projeto do futuro Parque Campo de Marte e Museu Aeroespacial que será concedido à iniciativa privada.

Por meio de nota, a prefeitura de São Paulo informou que essa fase do projeto de privatização “trata-se de uma ferramenta utilizada pela Prefeitura para melhorar a eficiência na elaboração da modelagem dos projetos de desestatização”.  

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

O receio da morte do futebol de várzea

No meio do futebol existem as expressões “futebol nutella” e “futebol raíz”. O primeiro se refere ao que se transformou o futebol nos últimos tempos, com arenas padronizadas, gramados artificiais e um jogo que prioriza mais aspectos físicos e táticos. O outro é o oposto disso, onde o drible, a malícia e catimba são valorizados e colocados como pontos essenciais do esporte. 

É nesse futebol raiz, cada vez mais raro pelo Brasil, onde campinhos de pelada perderam lugar para empreendimentos imobiliários, que os jogadores da várzea do Campo de Marte ainda acreditam. “O futebol brasileiro está do jeito que está, sem revelar mais craques, porque estão acabando com a várzea. São nesses campos que os moleques aprendem desde cedo a improvisar, a driblar, a enfrentar zagueiro violento”, reclama com ar saudosista José Carlos Jeremias, 83 anos, conhecido como Maurinho, fundador do Cruz da Esperança, clube que existe desde 1952 e foi um dos primeiros a ocupar o terreno.

“Tudo aqui era mato e encharcado, nem a Marginal existia ainda. Por isso o nome várzea, porque os campos ficavam na beira do rio. Fomos o segundo clube a chegar aqui e depois vieram outros. E ainda bem que vieram mais times para cá, porque se não fosse essa força e união dos times da várzea já teriam nos expulsado daqui”, relembra Maurinho.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Em frente ao Cruz da Esperança está o Paulista, outro clube que abriga em sua sede um bar, quadra de bocha, além do campo. Tendo em suas cores o preto, o branco e o vermelho, o time chegou ao terreno em meados dos anos 1970. Seus frequentadores estão apreensivos quanto ao futuro do local. Desde que o atual governador João Doria (PSDB) assumiu a prefeitura em 2017, que há intenção de transformar o lugar. Dentre diferentes projetos que já foram apresentados, um deles indicava que apenas dois dos seis campos seriam mantidos, sem especificar quais seriam extintos.

“A gente percebe como a especulação imobiliária já vem mudando a Casa Verde. Basta dar uma volta pela [avenida] Brás Leme e você vê que até o perfil dos moradores da região já começou a mudar para um pessoal mais classe média. Então um lugar como este, que reúne pessoas humildes, que têm como única diversão jogar bola, ocupando todo este espaço, não faz parte dos planos de mudança que estão querendo para o bairro”, diz Nelson Barbosa, 83 anos, ex-presidente do Paulista, interrompendo seu jogo de dominó num domingo pela manhã para atender a reportagem.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Frequentador há mais de quatro décadas dos campos de várzea do terreno, e ainda jogando algumas partidas mesmo aos 82 anos de idade, João Pedro Maia é uma das pessoas que sempre brigou pelo reconhecimento do lugar como um dos mais importantes para o futebol brasileiro. “Casagrande, Serginho Chulapa, Basílio, entre outros craques, jogaram aqui. Imagina quantos talentos a gente pode perder se isso aqui acabar um dia”, comenta.

Maia lembra que esse impasse e incerteza sobre a posse do terreno sempre preocupou os times locais, mas que agora a discussão de projetos por parte da prefeitura está fazendo os times e frequentadores do espaço se mobilizarem em um ato de resistência. “A gente sabe que um terreno desse tamanho do lado da Marginal é muito valorizado. Eu acredito que é possível fazer um parque bonito aqui dentro, com pista de atletismo e outras coisas sem mexer nos nossos campos”.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Otacílio Ribeiro concorda com amigo e junto com o movimento que encabeça quer que o espaço se torne um Clube da Comunidade, ação que já existe em diversos pontos da periferia da cidade de São Paulo onde unidades esportivas ocupam terrenos da municipais e a gestão do espaço é feita por entidades da comunidade local com reconhecida vocação no trabalho esportivo sob a coordenação da Secretaria Municipal de Esportes.

“Isso ajudaria a preservar o local e manter a vocação que ele tem há mais de 60 anos. Ajudaria também até a natureza porque permanecemos cuidando desse espaço de Mata Atlântica. Você sabia que aí dentro tem mais de 176 espécies de pássaros que só existem ali?”, indaga Otacílio, enquanto volta os olhos para o campo do Paulista para observar um quase gol. “Pelo amor de Deus! Esse eu fazia”.

Ponte
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