Silvio Luiz, o grande e insubstituível narrador do povão
Ao incorporar o humor e a liberdade vocabular, ajudou a libertar o jornalismo brasileiro, vassalo de modelos gringos
O narrador Silvio Luiz contribuiu para a libertação de uma postura pretensamente correta e preconceituosa ao narrar futebol, por meio de seu humor, ironia e informalidade na linguagem. Diferente do futebol, em que substituímos quem sai de campo, não há profissional à altura para repor a perda de Silvio Luiz.
Existem narradores populares, no sentido de conhecidos, e do povão, que incorporam a cultura e acabam sendo parte dela. Silvio Luiz reúne essas características, contribuindo para a libertação da postura pretensamente correta e do vocabulário que seria o ideal para a imprensa.
Nosso jornalismo, vassalo do europeu, no século 19, e do norte-americano, no 20, promove e reforça uma postura cerceadora, comportada, bobinha e preconceituosa que não tem nada a ver com nossa maneira de ser. Não somos sisudos e, como diz a música, falamos palavrão.
Vários narradores têm bordões, é questão de sobrevivência, uma marca autoral. Mas quantos têm o gosto, o jeito de pensar e sentir, o teor da cultura popular? Silvio Luiz tem. Ele não faz a linha institucional do “bem amigos da rede Globo”, nem o personalista “olha o que ele fez”.
Por isso meu bordão predileto é talvez o mais longo. Fico arrepiado só de lembrar Silvio Luiz dizendo, com a primeira letra alongada, “é mais um gol brasileiro meu povo. Encha o peito, solte o grite da garganta e confira comigo no replay”.
O sentido de amplitude, de está tudo dominado, é claríssimo: um “gol brasileiro”, de toda nação, porque representa um feito da cultura futebolística nacional, realizado por um indivíduo. É um gol do “meu povo”.
Isso sem mencionar seu humor, que reverbera o jeito de assistir futebol em casa, relaxado no sofá, esbravejando sozinho, ou no bar, tomando várias com os amigos. Torcedores riem, ironizam, Silvio Luiz também. Nesse sentido, parece insuperável a pergunta lançada aos pernas de pau sobre “o que que eu vou dizer lá em casa”.
Isso quanto ao humor. Mas tem a quebra do preconceito linguístico, o drible às formas e conteúdos que presumivelmente deveriam dar o tom. A informalidade da linguagem é assustadora aos jornalistas. Deve ser por isso que rap, funk e Silvio Luiz comunicam muito mais.
Para mim, ele é o maior, a melhor voz, o melhor astral, a ironia e o escracho, a liberdade da palavra chamando o craque brasileiro Careca, no campeonato italiano, de “Carecone”. Com sua morte, morre em mim o restinho do que sobrava de amor, respeito e saudade do futebol brasileiro, em franca extinção.
Diferente do futebol, praticado cada vez mais por indistintos pernas de pau, quando um profissional como Silvio Luiz sai de campo não há substituição à altura.